Palavras-chave: telenovela, televisão,
teledramaturgia.
Introdução
O
presente artigo pretende apontar inovações no tratamento
discursivo de três telenovelas escritas por Manoel Carlos, com
direção de Ricardo Waddington, e exibidas pela emissora Rede
Globo: Por amor, Laços de família
e Mulheres apaixonadas. Identificamos, nessas narrativas,
uma lógica discursiva ou um fio condutor que orienta a
construção da(s) trama(s) e une as três telenovelas, permitindo
que as classifiquemos como uma trilogia.
Embora os produtos ficcionais televisuais sejam
identificados e reconhecidos por seu caráter de efemeridade, é
possível apontar e sustentar a existência da trilogia acima
referida. Não é comum, nas análises desses produtos,
atribuir continuidade lógica na forma de tratamento
discursivo, mesmo que sejam dos mesmos
realizadores. Da mesma forma, observamos que as reflexões
acadêmicas geralmente privilegiam produtos televisuais em exibição
ou que foram objeto de exibição recente.
Tal situação talvez se explique pela lógica de exibição da
televisão, que impõe não só um caráter de imediaticidade no tempo
da exibição como também certa rapidez em relação ao tempo interno
da diegese. Essa condição, na perspectiva de Nelson Brissac
Peixoto, oferece um sentido de presentividade da imagem e a
configura para um aqui e agora (1). Dessa forma, os produtos
ficcionais televisuais são facilmente convertidos em produto de
consumo imediato. Mesmo as minisséries, que costumam gozar de
maior prestígio por serem consideradas um produto de maior
sofisticação e elaboração estão submetidas à fugacidade do meio
televisual (2).
Considerações sobre a produção de telenovelas
Estamos cientes de que um estudo do texto teledramatúrgico
que não tome em consideração o fato de que esse gênero textual
resulta de um processo de produção coletiva e que ele tem um caráter de
inserção industrial pode revelar-se inviável em termos de análise
discursiva. Não obstante, nossa proposta é estabelecer um
recorte que seja capaz de indicar o trabalho específico do
escritor que demarca as escolhas de estratégias e recursos
literários utilizados. Reconhecemos que o escritor se encontra
inserido numa rede sócio-histórica e que os discursos verificados
numa forma simbólica não se referem especificamente a um dado,
um texto ou um sujeito empíricos, mas se conforma com um
processo discursivo em que as diversas possibilidades de discursos foram constituídas (3).
Discutir produtos comunicativos que se apresentam a partir
do dispositivo técnico da televisão requer estar consciente do
caráter de multiplicidade que ela impõe em termos de disposição
estética, em termos dos elementos do contexto econômico e político, das diversidades
de linguagens que se intercruzam no texto televisivo e dos
diversos interesses, ideologias e, conseqüentemente, de um
posicionamento em relação a constituições de representações de
mundo que podem ser veiculadas nesse meio audiovisual.
Em
relação às telenovelas, elas são reconhecidas como produto híbrido do ponto
de vista textual, alicerçadas sobre o folhetim, com uso freqüente
do melodrama e dialogando freqüentemente com outros terrenos da
ficcionalidade, como aponta Borelli (4). Também não estamos
distantes da observação de vários autores, de que
classificar a telenovela simplesmente como folhetim, convocando
seu alinhamento com a tradição literária, é perder de vista a
especificidade de sua produção e as características próprias do
audiovisual e do meio em que ela está inserida (5). Sabe-se que a produção
de uma telenovela envolve vários profissionais, um trabalho de
equipe alinhado em produção industrial e faz parte, inclusive, de
uma grade de programação estabelecida
comercialmente.
Lopes, Borelli e Resende (6)revelam que o
processo de produção de telenovelas na Rede Globo normalmente tem
início no momento em que a direção da emissora tem acesso às
demandas do público, as quais são conhecidas a partir de pesquisas
quantitativas (7) de audiência. Esse processo preliminar — de decisão do
argumento e desenvolvimento do produto — envolve os setores
comerciais, a direção geral e a hierarquia mais elevada da Central
Globo de Produções.
Lisandro Nogueira, no entanto, argumenta que alguns
escritores, por oferecer produtos de reconhecido valor comercial,
gozam de prestígio junto à emissora e atuam como
autores-produtores, o que lhes permite a escolha do elenco, da
trilha sonora (embora com algumas restrições) e do trabalho de
direção. Cabe ao escritor de telenovelas da Rede Globo
especificar, no interior de uma produção cultural inserida numa
indústria cultural e num modo de produção coletiva, determinados
elementos que expressam um estilo — o que pressupõe a recorrência
de determinados elementos entre diversas produções de mesma
autoria. A constituição do estilo, por parte do autor, é que
permite falar de um trabalho autoral, no sentido de creditar a
determinado indivíduo a responsabilidade por conferir uma unidade
formal à obra e expressar seu pensamento. Segundo a “teoria do
autor”, desenvolvida pelos críticos e cineastas franceses da
corrente cinematográfica da nouvelle vague, a competência
técnica sustenta o diretor de cinema, reconhecido no âmbito dessa
linguagem como autor; a personalidade distinta do profissional do
cinema apresenta determinadas características de estilos
recorrentes que constituirão sua escritura e a significação do
cinema como arte expressa na possibilidade da mise en
scène.
É
notório que Manoel Carlos atingiu uma situação de prestígio na
Rede Globo, pois foi capaz de oferecer uma proposta de formato
para a telenovela que agradou aos telespectadores e garantiu bons
níveis de audiência. E os meios de comunicação midiáticos sempre
apontam a participação do escritor em outras fases do processo de
produção das telenovelas tais como escolhas de atores e
cenários e indicações de cenas, dentre outros.
Embora estejamos alinhados com o pressuposto apresentado
por Lisandro Nogueira, ao reconhecer a correlação entre o trabalho
de escrita da telenovela e outras especificações profissionais
em outras fases da produção ou colocando em destaque o trabalho de
Manoel Carlos no interior do sistema cultural industrial seriado
das telenovelas, não estamos contudo creditando o conceito autoral
no sentido historicamente atribuído ao cinema (8).
O trabalho do escritor de telenovelas
No
processo de elaboração de uma telenovela, em geral, os
direcionamentos do produto, definidores do formato, são de
responsabilidade do escritor. Cabe ainda ao autor de telenovelas
conceber a construção das tramas e os direcionamentos das
temáticas principais que orientam as temáticas secundárias, traçando o
destino dos personagens (sendo que as ações desses são construídas
a partir de diálogos, situações e cenários representativos) bem
como as intenções, paixões e desejos em função desse destino. A
inter-relação dos personagens, os cenários em que vão transitar e
o tempo que permitirá o desenvolvimento da trama são restritos às
determinações do escritor (9).
Entretanto, observamos que a produção das telenovelas
obedece a um caráter específico fundado a partir dos anos 60, com
o aparecimento do videoteipe. A possibilidade de gravar as cenas
favoreceu a exibição diária e permitiu à emissora Rede Globo
introduzir um processo industrial na realização de telenovela, no
Brasil, comparável aos estúdios de Hollywood dos anos 30. Com a
sofisticação desse processo industrial e a introdução de novos
recursos tecnológicos, notadamente nos anos 90, as novelas sofreram
grande mudança na Rede Globo. O capítulo diário, que até então
ocupava 20 minutos na grade de programação, passou a ter 45
minutos de duração. As cenas externas, que eram raras, passaram a
representar cerca de 30% do total de cenas (10). Ocorreram também
modificações dos cenários, que eram em número total de oito a dez
por telenovela, e passaram a ser de doze a quinze. Juntamente às
mudanças apontadas, a partir da década de 90, a emissora passou a
investir também na sofisticação das cidades cenográficas (11). Com tais
modificações no processo de produção, o escritor passou a redigir
cerca de 20 capítulos iniciais com o auxílio de colaboradores (12). O
gerente de produção é quem transforma o roteiro em roteiro de
produção, ou seja, transforma-o em roteiro técnico. Por isso, não é
apropriado chamar o escritor de telenovelas de roteirista.
Após a estréia da telenovela, o escritor passa a produzir 6
capítulos por semana, cerca de um capítulo por dia. Cada capítulo
possui entre 42 e 43 cenas, que totalizam em média 250 cenas, a
serem gravadas por semana. A equipe que trabalha na elaboração da
telenovela, seja na produção ou na pós-produção, não tem acesso a
um roteiro fechado para ser interpretado e traduzido para uma
linguagem própria do audiovisual (concepção plástica,
enquadramentos, cortes, edições, produção de efeitos). Nem mesmo o
trabalho do ator é inteiramente autônomo na construção e no
desenvolvimento do personagem. Dessa forma, a(s) história(s) se
submetem às determinações do escritor, que encaminha os destinos
dos personagens e das tramas para a emissora de forma fragmentada.
Portanto, a unidade formal do produto está na
responsabilidade do escritor que pode, através de estratégias
técnicas como o uso da escaleta, deter uma visão geral do produto (13).
No
entanto, o escritor não tem o controle absoluto sobre essa unidade
formal. Como não se encontra em condições de domínio exclusivo, na
elaboração de uma telenovela, ele está sujeito a possíveis
contratempos: atores que não aceitam seu papel, divergências com a
equipe de produção da telenovela ou mesmo com o diretor
responsável (do núcleo). O texto também é atravessado por
interesses diversos da emissora, como o de posicionar a telenovela
diante do público, como produto educativo e informativo para a
sociedade brasileira: é o chamado marketing social. A partir
de sugestões dadas por empresas de comunicação contratadas, a
emissora informa aos escritores os temas de interesse da sociedade
previamente estabelecidos por pesquisas. O público também, de
certa forma, interfere: personagens podem ganhar ou perder
destaque na trama de acordo com a audiência.
Pode-se inferir, portanto, que as adequações promovidas
pelos escritores ao longo da exibição das telenovelas, embora
atendam às expectativas comerciais da emissora e de outros
profissionais envolvidos, são também mediadas pelo diálogo com a
sociedade que, em certa dimensão comunicacional, apresenta-se com
seus conteúdos simbólicos, produzidos nos quadros da experiência na
cotidianidade. Para Edna Martins (14), a autoria, no caso da
telenovela brasileira, resulta de um processo em que o
interdiscurso e o intertexto entram em jogo na configuração das
tramas apresentadas.
Não se pode negligenciar a evidência de que toda
constituição discursiva emerge de uma intrincada rede
sócio-histórica, em que os discursos se movimentam. Assim,
Gregolin (15), a partir dos pressupostos teóricos
levantados por Courtiene (16), afirma que a ordem do
discurso é uma ordem do enunciável, em que o sujeito deve se
sujeitar para se constituir como sujeito de seu discurso. Dessa
forma, o enunciável é exterior ao sujeito enunciador e o discurso
só pode ser construído num espaço de memória, no espaço de um
interdiscurso, em que várias formulações discursivas “marcam por
meio de enunciações que se repetem, se parafraseiam, opõem-se
entre si e se transformam.” Para a autora, a materialidade das
formas, verbais ou não-verbais, são vestígios que inscrevem a
repetição na ordem do discurso, em que o enunciado foi determinado
pelo enunciável. Nos discursos, não são indissociáveis o
intradiscurso e o interdiscurso. Para a autora, a instalação da
autoria “problematiza a evidência do sentido e permite pensar a
complexa teia em que o sujeito se enreda, ocupando um lugar de
enunciador, ao inserir-se nas séries da falas que o precedem”
(17). Dessa forma, os discursos são construídos e
desconstruídos no âmbito de uma rede de memória e de constituição
social.
Entretanto, mesmo admitindo a polifonia dos discursos e dos
interesses econômicos e sociais que circulam e atravessam o texto
de uma telenovela, pretendemos encaminhar nossa análise a partir
do reconhecimento de que Manoel Carlos, ao atuar em diversas fases
do processo de produção da telenovela, situa-se em condição de
fundar um tipo de estrutura narrativa que demarca uma forma de
representação sobre a cotidianidade e põe em destaque a
subjetividade contemporânea — quando, por exemplo, coloca em
discussão as relações afetivas através de seus persongens. E é
nesse recorte análitico que pretendemos encaminhar nossa
apresentação das idéias.
O tratamento da cotidianidade na trilogia
O
que nos chamou a atenção nas telenovelas de Manoel Carlos foram as
estratégias discursivas, ou seja, as formas de elaboração do
enunciado que disfarçaram a distância que se pronuncia entre o
mundo ficcional projetado ou idealizado pelo autor e o mundo da
vida em que nos situamos e experienciamos as ações quotidianas.
Acreditamos que essas estratégias acentuam mais do que as
projeções imaginárias que habitualmente são relatadas pelos
diversos estudiosos que sublinham os mecanismos de identificação
dos telespectadores com os personagens que se apresentam na
ficção. Na verdade, tais estratégias ocorrem no espaço de uma
dimensão comunicacional que envolve competências de estratégias
discursivas, mas também de produções de sentidos, tanto por quem
produz os enunciados como por quem entra em contato com as
enunciações. O espectador reconhece o podutor mas também se
reconhece na produção e na interpretação dela. Os interlocutores
instaurados no processo de criação e recepção da telenovela estão
inseridos em práticas simbólicas, em quadros de experiências que
apresentam um dado contexto social, cultural e ao mesmo tempo
psicosocial.
Lopes, Borelli e Resende (18) chamam a atenção para o
fato de que, embora reciclados e transmudados no campo literário e
transformados em base de sustentação para a produção da
ficcionalidade nos meios audiovisuais, os gêneros ficcionais
partem de uma matriz grega determinada por regras que os
classificam como tragédia, comédia e drama. Aristóteles delineou
algumas regras básicas para orientar a produção ficcional que
mantêm a atualidade, já que são preceitos ainda hoje utilizados
tanto para a produção ficcional literária, quanto para o
audiovisual, e que se constituem como chave de leitura para o
público consumidor de tais produtos.
Tratando da fábula, Aristóteles estabeleceu que todo
texto pertencente a esse gênero deve conter uma preocupação com o
verossímil, optando por narrar fatos facilmente reconhecíveis pelo
público. De acordo com Silva e Braga, se “na tragédia grega o
universo familiar era formado pelo mito, nas formas mais
contemporâneas de representações dramáticas como as telenovelas é
a cotidianidade, a diferença de classes, a aproximação do
personagem com o público que dá verossimilhança à trama.”(19)
De
acordo com Aristóteles, no desenvolvimento de uma narrativa, um
acontecimento deve resultar de uma ação complexa, e para que uma
mudança nos rumos da vida da personagem seja verossímil, na
seqüência dos fatos é preciso que se utilizem os recursos da
peripécia ou do reconhecimento. Como peripécia, o filósofo grego
identifica a mudança da ação no sentido contrário ao que foi
indicado sempre e como reconhecimento à passagem do estado de
ignorância para o conhecimento, sendo que o mais belo dos
reconhecimentos é o que provém da peripécia. A partir dessas
considerações, observamos que, nas três novelas de Manoel Carlos, é
a simplicidade das ações que gera mudanças de comportamento, ao
contrário da direção comum das representações dramáticas que
seguem a máxima de Aristóteles e nos apresentam sempre uma
complexidade de situações para gerar um novo acontecimento.
Subvertendo a premissa estabelecida pelo autor da poética, Manoel
Carlos faz das ações simples, corriqueiras, do dia-a- dia, a
chave das viradas de rumos dos personagens ou das situações
vivenciadas por eles. Assim, é de uma quebra de cumplicidade (que
os casais mais maduros geralmente apresentam) que os personagens
de Atílio e Helena, em Por amor, separam-se, sem saber ao
certo o que ocorre: o marido pressente que não compartilha de
todas as experiências de sua esposa, falta a ela a entrega e o
companheirismo necessários a um matrimônio longevo.
É
de um sentimento de incompletude que surge o desejo de Helena,
como também é chamada a protagonista de Mulheres
apaixonadas, de separar-se do marido músico e buscar no
passado uma grande paixão. São experiências comuns que nós
vivenciamos em nossa vida diária, em que relações são desfeitas
sem se submeterem a grandes explicações lógicas que justifiquem as
separações, sem ao menos termos motivos ou queixas explicítas que
pontuem o desgosto dessas relações, pelo menos no nível da
consciência.
Percebemos, nesse caso, uma clara aproximação discursiva com as
formas da vida. O viver elaborado a partir das experiências que
perpassam o tempo do dia-a-dia não é feito de grandes episódios
que marcam os acontecimentos, e as mudanças de direção desse viver
não estão concatenadas numa seqüência lógica de fatos que as
justifiquem. Vivemos num tempo fragmentado, entrecortado por
experiências que na maioria das vezes não estão marcadas pela
linearidade. Vivemos à mercê da sorte e de acasos. Submetidos a um
tempo ininterrupto, que não nos confere nenhuma garantia de
continuidade, somos surpreendidos a cada manhã por fatos novos e
circunstanciais.
A
ficção, ao contrário, elabora personagens que transitam por um
tempo marcado por uma linearidade e uma lógica narrativa que
dispõem os fatos e os acontecimentos numa precisão identificável
pelos espectadores/leitores. A telenovela encontra-se no terreno
da produção ficcional que, com suas regras, constrói e constitui um
mundo em que personagens circulam e se movem em torno de ações
envolvidas em uma trama e com uma direção temporal
determinada.
Portanto, se a vida se move em ações e acontecimentos
gerados no tempo do dia-a-dia, e se nela o tempo está sujeito aos
acasos, às indeterminações e às possibilidades de ruptura, a
ficção é controlada ou determinada por um narrador que conduz os
destinos das personagens. Para Anna Maria Balough, a ficção possui
um recorte temporal drasticamente reduzido, que a diferencia da
vida real, posto que ocorre “um procedimento de seleção de
momentos narrativos de base, uma forte condensação da
temporalidade, uma singularização de determinados episódios”
(20).
Na
ficção, é preciso eliminar os tempos mortos, em que nada de
especial acontece ou em que não se anuncia que algo de especial
está para acontecer. Manoel Carlos trabalhou justamente com esses
tempos mortos nas três telenovelas. Se, em Por amor, o
folhetim ainda era a maior tônica de estruturação da narrativa,
aos poucos, em Laços de família, a apresentação da
cotidianidade através da exposição de situações corriqueiras,
banais, foi crescendo até que, em Mulheres apaixonadas, o
universo dessas situações era maior que o próprio universo das
tramas folhetinescas. Pois se existe uma habilidade do autor em
tratar temas universais que se apresentam na tradição do folhetim
(filhos trocados, mulheres traídas, paixões em segredos), também
há uma conformação de situações, lugares comuns, cenas banais que
fazem parte de um contexto específico do viver e que muitas vezes
não têm sido objeto de reflexão. Tampouco temos dispensado, a
esses lugares comuns, a atenção de nossas experiências
rotineiras.
A
incompletude diante da vida que os homens experimentam aparece nos
personagens protagonistas — Atílio, Miguel, Pedro, César e Téo.
Todos procuram por um amor ideal e nenhum se satisfaz, no final se
confrontam com a possibilidade de uma mulher com defeitos,
ambigüidades morais e capazes de atitudes cruéis e egoístas, mesmo
evocando altruísmo e renúncia. Esse traço por uma caracterização
psicológica e filosoficamente existencial confere um sentido
diverso ao tradicional par romântico e herói dos romances
folhetins e do gênero melodramático que os folhetins usurparam,
que geralmente é caracterizado como a matriz literária do modelo
de representação das telenovelas e de outros gêneros audiovisuais.
Maria Carmem Jacob destaca que na novela Mulheres
apaixonadas o ato de confrontar-se com a mentira e a traição do
marido gerou na personagem Helena sentimentos de crueldade e
egoísmo a ponto de dizer que “não sou uma heroína, sou uma mulher
comum” (21). Constatação que reforça nossa análise de que
a forma de enunciação proposta pelo autor retira o caráter
tipificado das personagens ficcionais das telenovelas e as
aproxima de um dizer cotidiano sobre a vida. A relação entre
espectadores e realizadores das obras ficcionais não é de forma
alguma estática, mas circula, no dizer de França e Guimarães, por
textos que se movem constantemente (os discursos, as narrativas,
as representações).
A
forma como são enunciados os diversos textos, que de modo similar
às crônicas não se atêm a grandes acontecimentos ou dramas, mas
privilegiam pequenas rotinas e sentimentos que na sua simplicidade
são esmiuçados e tratados com a profundidade necessária, leva-nos
a pensar na existência humana, com sua precariedade, e na
miserabilidade, que concede muitas vezes importância a pequenas
questões e renega os verdadeiros problemas da humanidade. O amor,
a família e a paixão e as diversas formas de experimentá-los são
as verdadeiras temáticas que Manoel Carlos se dispõe a discutir
nas três telenovelas.
Em
Por amor, a trama central são os desvarios que uma mãe é
capaz de cometer em nome de um amor materno que pretende suprir o
sofrimento da filha. A ausência de moralidade e respeito aos
outros em função da suposta felicidade da filha amada é o conflito
gerador da trama e das subtramas que envolvem outras personagens
e núcleos. O amor é o tema central e se apresenta sob diversos
aspectos e tipos: egoísta, ciumento, invejoso, fraterno, maduro e
companheiro, ingênuo, covarde e preconceituoso, ardente,
platônico, obsessivo, infantil, aventureiro, romântico,
homossexual, o amor-paixão, o amor-amante, o amor dos/e por bichos
de estimação, o amor que tudo suporta e, por fim, os diversos tipos
e formas de traições no amor.
A
mesma situação de mãe que se sacrifica em função da filha surge na
trama central de Laços de família, representada pela
protagonista Helena, com a diferença de que, no caso ora em análise,
já não se trata de preservar exclusivamente uma família, mas a
família. Garantir a felicidade dos filhos e mantê-los afastados
dos prováveis sofrimentos que a vida promove é tarefa da mãe que
deve colocar seus interesses e desejos em segundo plano e
priorizar a harmonia do lar. Tal projeto é constantemente ameaçado
por conflitos gerados por ameaças externas: a presença da
meia-irmã que se interpõe entre mãe e filha e revela a fragilidade
da filha; a nora ambiciosa que atormenta o equilíbrio da família
unida; a paixão arrebatadora da mãe por um jovem e rico médico que
atrai a atenção da filha; a ameaça da tia-madrasta do rapaz que
aponta a inconsistência da relação entre mãe e filha; o primo e a
ligação com o passado — os segredos do passado que ameaçam a
imagem da mãe devotada; o amor-paixão do filho pela vizinha — uma
garota de programa e as conseqüências que sofre o rapaz ao assumir
essa relação. A família é apresentada em várias versões nas
subtramas que se entrelaçam a essa família central: a família
decadente da zona sul que leva a filha mãe solteira a buscar
sustento em programas sexuais e a hospedar uma colega em sua casa
(para auxiliar nas despesas); a família patriarcal do sul
do Brasil, também em decadência pela doença seguida de morte do
patriarca; a família classe média alta, culta e equilibrada, de um
livreiro viúvo que vive com a mãe e seus dois filhos jovens; a
família rica representada por Alba e seu jovem marido sustentado
por seu dinheiro, seus sobrinhos-filhos e seus velhos amigos
inseparáveis que constantemente convivem com a família em seus
habituais momentos de intimidade; a família gentil e equilibrada
da veterinária; a família humilde de Ivete — secretária da clínica
de estética de Helena e que agrega os amigos sem família; a
família desajustada do médico-pai solteiro e, por fim, o haras — a
família que se forma a partir da reunião dos que não possuem
família.
Em
Mulheres apaixonadas, a trama central é descaracterizada em
função da relevância que todas as personagens assumem ao serem
priorizadas suas ações: as várias paixões que nos são
apresentadas — a juvenil, entre um adolescente e sua professora; a
homossexual, entre duas adolescentes; a obsessiva, da esposa pelo
marido; a violenta, do marido pela esposa; a pueril, entre jovens com os
dilemas do sexo; a pecaminosa (a moça rica e mimada e o padre
devotado); a platônica (a jovem que deseja o vizinho casado); a
paixão entre o patrão e o serviçal; a paixão entre primos; a
paixão ciumenta; a aventureira; a descompromissada; a paixão
arrebatadora (entre pessoas de níveis sociais diferentes); a
escondida (de homem casado e sua amante); a paixão na terceira
idade; a paixão-amor do passado; a paixão entre colegas de
trabalho; a paixão que se compra (entre um jovem e uma mulher
madura); a paixão dos ex-amantes (entre casais separados) e, por
fim, o confronto da paixão com o convívio diário. Carmem Jacob, em
sua análise sobre a telenovela Mulheres apaixonadas, afirma
que o autor:
valoriza o lugar da escola e da família, explorando as mais
diferentes configurações. Quando os personagens não estavam
inseridos num núcleo familiar, as redes de solidariedade dos
ambientes de trabalho e das instituições de formação foram
exploradas com destaque, valorizadas como experiências essenciais
na vida contemporânea. A família foi privilegiada, mas não foi
apontada como exclusiva instância de amparo, solidariedade e
formação da moral e dos costumes. As redes de solidariedade dos
amigos íntimos, estas sim foram destacadas como se devessem ser
uma das bases essenciais da formação dos laços sociais na
atualidade. Redes que teriam a obrigação de oferecer e regular as
regras e os modos de aprendizagem do amor solidário, do amor não
individualista, do amor regido por códigos morais. (22)
É
interessante observarmos como a autora relaciona os temas família,
amor e laços sociais — que são os mesmos responsáveis por
estruturar as três telenovelas em análise — como destaques no
discurso elaborado pelo escritor em Mulheres apaixonadas.
Os questionamentos elaborados, a partir da apresentação de Por
amor e Laços de família, foram amarrados numa lógica
discursiva e, em Mulheres apaixonadas, a apresentação das
questões amor, família, paixão aparecem sustentando experiências
marcadamente contemporâneas, destituídas quase das experiências
oníricas das estruturas folhetinescas que em geral permeiam as
telenovelas.
Resumé
Le
présent article vise à indiquer des innovations dans le traitement
le texte trois feuilletons télé élaborés par Manoel Carlos, pour
émetteur Filet Globe: Por amor (1997-1998), Laços de família
(2002) et Mulheres apaixonadas (2003). À travers une exposition
analytique concernant le travail littéral, nous indiquerons les
stratégies utilisées par l'auteur pour construire le texte et
d'élaborer une forme discursiva. Dans les trois feuilletons télé
nous observons une même structure narrative et préoccupation dans
l'élaboration de questions qui disent respect aux relations
humaines constituées à partir du terrain de l'affectivité. Trois
questions fondamentales structurent les récits: l'amour, la
famille et la passion, toutes elles placées dans cotidianidade de
la classe moyenne de Rio de Janeiro.