Aroldo Lacerda
 

 


A trilogia de Manoel Carlos — Por amor, Laços de família e Mulheres apaixonadas: a subjetividade contempôranea no discurso das telenovelas


Luciene dos Santos

Mestre em Comunicação Social pela UFMG, docente e pesquisadora do Departamento de Ciências da Comunicação do Centro Universitário de Belo Horizonte.


Resumo

Pretende-se, neste artigo, apontar inovações no tratamento textual de três telenovelas elaboradas por Manoel Carlos, para a emissora Rede Globo: Por amor (1997-1998), Laços de família (2002) e Mulheres Apaixonadas (2003). Por meio da análise do trabalho textual, indicaremos as estratégias utilizadas pelo escritor para construir o texto e elaborar uma forma discursiva. Nas três telenovelas, observamos uma mesma preocupação e estrutura narrativa comum na elaboração de questões que dizem respeito às relações humanas constituídas a partir do terreno da afetividade. Três questões estruturam as narrativas: o amor, a família e a paixão, todas situadas no cotidiano da classe média do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: telenovela, televisão, teledramaturgia.


Introdução

O presente artigo pretende apontar inovações no tratamento discursivo de três telenovelas escritas por Manoel Carlos, com direção de Ricardo Waddington, e exibidas pela emissora Rede Globo: Por amor, Laços de família e Mulheres apaixonadas. Identificamos, nessas narrativas, uma lógica discursiva ou um fio condutor que orienta a construção da(s) trama(s) e une as três telenovelas, permitindo que as classifiquemos como uma trilogia.

Embora os produtos ficcionais televisuais sejam identificados e reconhecidos por seu caráter de efemeridade, é possível apontar e sustentar a existência da trilogia acima referida. Não é comum, nas análises desses produtos, atribuir continuidade lógica na forma de tratamento discursivo, mesmo que sejam dos mesmos realizadores. Da mesma forma, observamos que as reflexões acadêmicas geralmente privilegiam produtos televisuais em exibição ou que foram objeto de exibição recente.

Tal situação talvez se explique pela lógica de exibição da televisão, que impõe não só um caráter de imediaticidade no tempo da exibição como também certa rapidez em relação ao tempo interno da diegese. Essa condição, na perspectiva de Nelson Brissac Peixoto, oferece um sentido de presentividade da imagem e a configura para um aqui e agora (1). Dessa forma, os produtos ficcionais televisuais são facilmente convertidos em produto de consumo imediato. Mesmo as minisséries, que costumam gozar de maior prestígio por serem consideradas um produto de maior sofisticação e elaboração estão submetidas à fugacidade do meio televisual (2).


Considerações sobre a produção de telenovelas

Estamos cientes de que um estudo do texto teledramatúrgico que não tome em consideração o fato de que esse gênero textual resulta de um processo de produção coletiva e que ele tem um caráter de inserção industrial pode revelar-se inviável em termos de análise discursiva. Não obstante, nossa proposta é estabelecer um recorte que seja capaz de indicar o trabalho específico do escritor que demarca as escolhas de estratégias e recursos literários utilizados. Reconhecemos que o escritor se encontra inserido numa rede sócio-histórica e que os discursos verificados numa forma simbólica não se referem especificamente a um dado, um texto ou um sujeito empíricos, mas se conforma com um processo discursivo em que as diversas possibilidades de discursos foram constituídas (3).

Discutir produtos comunicativos que se apresentam a partir do dispositivo técnico da televisão requer estar consciente do caráter de multiplicidade que ela impõe em termos de disposição estética, em termos dos elementos do contexto econômico e político, das diversidades de linguagens que se intercruzam no texto televisivo e dos diversos interesses, ideologias e, conseqüentemente, de um posicionamento em relação a constituições de representações de mundo que podem ser veiculadas nesse meio audiovisual.

Em relação às telenovelas, elas são reconhecidas como produto híbrido do ponto de vista textual, alicerçadas sobre o folhetim, com uso freqüente do melodrama e dialogando freqüentemente com outros terrenos da ficcionalidade, como aponta Borelli (4). Também não estamos distantes da observação de vários autores, de que classificar a telenovela simplesmente como folhetim, convocando seu alinhamento com a tradição literária, é perder de vista a especificidade de sua produção e as características próprias do audiovisual e do meio em que ela está inserida (5). Sabe-se que a produção de uma telenovela envolve vários profissionais, um trabalho de equipe alinhado em produção industrial e faz parte, inclusive, de uma grade de programação estabelecida comercialmente.

Lopes, Borelli e Resende (6)revelam que o processo de produção de telenovelas na Rede Globo normalmente tem início no momento em que a direção da emissora tem acesso às demandas do público, as quais são conhecidas a partir de pesquisas quantitativas (7) de audiência. Esse processo preliminar — de decisão do argumento e desenvolvimento do produto — envolve os setores comerciais, a direção geral e a hierarquia mais elevada da Central Globo de Produções.

Lisandro Nogueira, no entanto, argumenta que alguns escritores, por oferecer produtos de reconhecido valor comercial, gozam de prestígio junto à emissora e atuam como autores-produtores, o que lhes permite a escolha do elenco, da trilha sonora (embora com algumas restrições) e do trabalho de direção. Cabe ao escritor de telenovelas da Rede Globo especificar, no interior de uma produção cultural inserida numa indústria cultural e num modo de produção coletiva, determinados elementos que expressam um estilo — o que pressupõe a recorrência de determinados elementos entre diversas produções de mesma autoria. A constituição do estilo, por parte do autor, é que permite falar de um trabalho autoral, no sentido de creditar a determinado indivíduo a responsabilidade por conferir uma unidade formal à obra e expressar seu pensamento. Segundo a “teoria do autor”, desenvolvida pelos críticos e cineastas franceses da corrente cinematográfica da nouvelle vague, a competência técnica sustenta o diretor de cinema, reconhecido no âmbito dessa linguagem como autor; a personalidade distinta do profissional do cinema apresenta determinadas características de estilos recorrentes que constituirão sua escritura e a significação do cinema como arte expressa na possibilidade da mise en scène.

É notório que Manoel Carlos atingiu uma situação de prestígio na Rede Globo, pois foi capaz de oferecer uma proposta de formato para a telenovela que agradou aos telespectadores e garantiu bons níveis de audiência. E os meios de comunicação midiáticos sempre apontam a participação do escritor em outras fases do processo de produção das telenovelas tais como escolhas de atores e cenários e indicações de cenas, dentre outros.

Embora estejamos alinhados com o pressuposto apresentado por Lisandro Nogueira, ao reconhecer a correlação entre o trabalho de escrita da telenovela e outras especificações profissionais em outras fases da produção ou colocando em destaque o trabalho de Manoel Carlos no interior do sistema cultural industrial seriado das telenovelas, não estamos contudo creditando o conceito autoral no sentido historicamente atribuído ao cinema (8).


O trabalho do escritor de telenovelas

No processo de elaboração de uma telenovela, em geral, os direcionamentos do produto, definidores do formato, são de responsabilidade do escritor. Cabe ainda ao autor de telenovelas conceber a construção das tramas e os direcionamentos das temáticas principais que orientam as temáticas secundárias, traçando o destino dos personagens (sendo que as ações desses são construídas a partir de diálogos, situações e cenários representativos) bem como as intenções, paixões e desejos em função desse destino. A inter-relação dos personagens, os cenários em que vão transitar e o tempo que permitirá o desenvolvimento da trama são restritos às determinações do escritor (9).

Entretanto, observamos que a produção das telenovelas obedece a um caráter específico fundado a partir dos anos 60, com o aparecimento do videoteipe. A possibilidade de gravar as cenas favoreceu a exibição diária e permitiu à emissora Rede Globo introduzir um processo industrial na realização de telenovela, no Brasil, comparável aos estúdios de Hollywood dos anos 30. Com a sofisticação desse processo industrial e a introdução de novos recursos tecnológicos, notadamente nos anos 90, as novelas sofreram grande mudança na Rede Globo. O capítulo diário, que até então ocupava 20 minutos na grade de programação, passou a ter 45 minutos de duração. As cenas externas, que eram raras, passaram a representar cerca de 30% do total de cenas (10). Ocorreram também modificações dos cenários, que eram em número total de oito a dez por telenovela, e passaram a ser de doze a quinze. Juntamente às mudanças apontadas, a partir da década de 90, a emissora passou a investir também na sofisticação das cidades cenográficas (11). Com tais modificações no processo de produção, o escritor passou a redigir cerca de 20 capítulos iniciais com o auxílio de colaboradores (12). O gerente de produção é quem transforma o roteiro em roteiro de produção, ou seja, transforma-o em roteiro técnico. Por isso, não é apropriado chamar o escritor de telenovelas de roteirista.

Após a estréia da telenovela, o escritor passa a produzir 6 capítulos por semana, cerca de um capítulo por dia. Cada capítulo possui entre 42 e 43 cenas, que totalizam em média 250 cenas, a serem gravadas por semana. A equipe que trabalha na elaboração da telenovela, seja na produção ou na pós-produção, não tem acesso a um roteiro fechado para ser interpretado e traduzido para uma linguagem própria do audiovisual (concepção plástica, enquadramentos, cortes, edições, produção de efeitos). Nem mesmo o trabalho do ator é inteiramente autônomo na construção e no desenvolvimento do personagem. Dessa forma, a(s) história(s) se submetem às determinações do escritor, que encaminha os destinos dos personagens e das tramas para a emissora de forma fragmentada. Portanto, a unidade formal do produto está na responsabilidade do escritor que pode, através de estratégias técnicas como o uso da escaleta, deter uma visão geral do produto (13).

No entanto, o escritor não tem o controle absoluto sobre essa unidade formal. Como não se encontra em condições de domínio exclusivo, na elaboração de uma telenovela, ele está sujeito a possíveis contratempos: atores que não aceitam seu papel, divergências com a equipe de produção da telenovela ou mesmo com o diretor responsável (do núcleo). O texto também é atravessado por interesses diversos da emissora, como o de posicionar a telenovela diante do público, como produto educativo e informativo para a sociedade brasileira: é o chamado marketing social. A partir de sugestões dadas por empresas de comunicação contratadas, a emissora informa aos escritores os temas de interesse da sociedade previamente estabelecidos por pesquisas. O público também, de certa forma, interfere: personagens podem ganhar ou perder destaque na trama de acordo com a audiência.

Pode-se inferir, portanto, que as adequações promovidas pelos escritores ao longo da exibição das telenovelas, embora atendam às expectativas comerciais da emissora e de outros profissionais envolvidos, são também mediadas pelo diálogo com a sociedade que, em certa dimensão comunicacional, apresenta-se com seus conteúdos simbólicos, produzidos nos quadros da experiência na cotidianidade. Para Edna Martins (14), a autoria, no caso da telenovela brasileira, resulta de um processo em que o interdiscurso e o intertexto entram em jogo na configuração das tramas apresentadas.

Não se pode negligenciar a evidência de que toda constituição discursiva emerge de uma intrincada rede sócio-histórica, em que os discursos se movimentam. Assim, Gregolin (15), a partir dos pressupostos teóricos levantados por Courtiene (16), afirma que a ordem do discurso é uma ordem do enunciável, em que o sujeito deve se sujeitar para se constituir como sujeito de seu discurso. Dessa forma, o enunciável é exterior ao sujeito enunciador e o discurso só pode ser construído num espaço de memória, no espaço de um interdiscurso, em que várias formulações discursivas “marcam por meio de enunciações que se repetem, se parafraseiam, opõem-se entre si e se transformam.” Para a autora, a materialidade das formas, verbais ou não-verbais, são vestígios que inscrevem a repetição na ordem do discurso, em que o enunciado foi determinado pelo enunciável. Nos discursos, não são indissociáveis o intradiscurso e o interdiscurso. Para a autora, a instalação da autoria “problematiza a evidência do sentido e permite pensar a complexa teia em que o sujeito se enreda, ocupando um lugar de enunciador, ao inserir-se nas séries da falas que o precedem” (17). Dessa forma, os discursos são construídos e desconstruídos no âmbito de uma rede de memória e de constituição social.

Entretanto, mesmo admitindo a polifonia dos discursos e dos interesses econômicos e sociais que circulam e atravessam o texto de uma telenovela, pretendemos encaminhar nossa análise a partir do reconhecimento de que Manoel Carlos, ao atuar em diversas fases do processo de produção da telenovela, situa-se em condição de fundar um tipo de estrutura narrativa que demarca uma forma de representação sobre a cotidianidade e põe em destaque a subjetividade contemporânea — quando, por exemplo, coloca em discussão as relações afetivas através de seus persongens. E é nesse recorte análitico que pretendemos encaminhar nossa apresentação das idéias.


O tratamento da cotidianidade na trilogia

O que nos chamou a atenção nas telenovelas de Manoel Carlos foram as estratégias discursivas, ou seja, as formas de elaboração do enunciado que disfarçaram a distância que se pronuncia entre o mundo ficcional projetado ou idealizado pelo autor e o mundo da vida em que nos situamos e experienciamos as ações quotidianas. Acreditamos que essas estratégias acentuam mais do que as projeções imaginárias que habitualmente são relatadas pelos diversos estudiosos que sublinham os mecanismos de identificação dos telespectadores com os personagens que se apresentam na ficção. Na verdade, tais estratégias ocorrem no espaço de uma dimensão comunicacional que envolve competências de estratégias discursivas, mas também de produções de sentidos, tanto por quem produz os enunciados como por quem entra em contato com as enunciações. O espectador reconhece o podutor mas também se reconhece na produção e na interpretação dela. Os interlocutores instaurados no processo de criação e recepção da telenovela estão inseridos em práticas simbólicas, em quadros de experiências que apresentam um dado contexto social, cultural e ao mesmo tempo psicosocial.

Lopes, Borelli e Resende (18) chamam a atenção para o fato de que, embora reciclados e transmudados no campo literário e transformados em base de sustentação para a produção da ficcionalidade nos meios audiovisuais, os gêneros ficcionais partem de uma matriz grega determinada por regras que os classificam como tragédia, comédia e drama. Aristóteles delineou algumas regras básicas para orientar a produção ficcional que mantêm a atualidade, já que são preceitos ainda hoje utilizados tanto para a produção ficcional literária, quanto para o audiovisual, e que se constituem como chave de leitura para o público consumidor de tais produtos.

Tratando da fábula, Aristóteles estabeleceu que todo texto pertencente a esse gênero deve conter uma preocupação com o verossímil, optando por narrar fatos facilmente reconhecíveis pelo público. De acordo com Silva e Braga, se “na tragédia grega o universo familiar era formado pelo mito, nas formas mais contemporâneas de representações dramáticas como as telenovelas é a cotidianidade, a diferença de classes, a aproximação do personagem com o público que dá verossimilhança à trama.”(19)

De acordo com Aristóteles, no desenvolvimento de uma narrativa, um acontecimento deve resultar de uma ação complexa, e para que uma mudança nos rumos da vida da personagem seja verossímil, na seqüência dos fatos é preciso que se utilizem os recursos da peripécia ou do reconhecimento. Como peripécia, o filósofo grego identifica a mudança da ação no sentido contrário ao que foi indicado sempre e como reconhecimento à passagem do estado de ignorância para o conhecimento, sendo que o mais belo dos reconhecimentos é o que provém da peripécia. A partir dessas considerações, observamos que, nas três novelas de Manoel Carlos, é a simplicidade das ações que gera mudanças de comportamento, ao contrário da direção comum das representações dramáticas que seguem a máxima de Aristóteles e nos apresentam sempre uma complexidade de situações para gerar um novo acontecimento. Subvertendo a premissa estabelecida pelo autor da poética, Manoel Carlos faz das ações simples, corriqueiras, do dia-a- dia, a chave das viradas de rumos dos personagens ou das situações vivenciadas por eles. Assim, é de uma quebra de cumplicidade (que os casais mais maduros geralmente apresentam) que os personagens de Atílio e Helena, em Por amor, separam-se, sem saber ao certo o que ocorre: o marido pressente que não compartilha de todas as experiências de sua esposa, falta a ela a entrega e o companheirismo necessários a um matrimônio longevo.

É de um sentimento de incompletude que surge o desejo de Helena, como também é chamada a protagonista de Mulheres apaixonadas, de separar-se do marido músico e buscar no passado uma grande paixão. São experiências comuns que nós vivenciamos em nossa vida diária, em que relações são desfeitas sem se submeterem a grandes explicações lógicas que justifiquem as separações, sem ao menos termos motivos ou queixas explicítas que pontuem o desgosto dessas relações, pelo menos no nível da consciência.

Percebemos, nesse caso, uma clara aproximação discursiva com as formas da vida. O viver elaborado a partir das experiências que perpassam o tempo do dia-a-dia não é feito de grandes episódios que marcam os acontecimentos, e as mudanças de direção desse viver não estão concatenadas numa seqüência lógica de fatos que as justifiquem. Vivemos num tempo fragmentado, entrecortado por experiências que na maioria das vezes não estão marcadas pela linearidade. Vivemos à mercê da sorte e de acasos. Submetidos a um tempo ininterrupto, que não nos confere nenhuma garantia de continuidade, somos surpreendidos a cada manhã por fatos novos e circunstanciais.

A ficção, ao contrário, elabora personagens que transitam por um tempo marcado por uma linearidade e uma lógica narrativa que dispõem os fatos e os acontecimentos numa precisão identificável pelos espectadores/leitores. A telenovela encontra-se no terreno da produção ficcional que, com suas regras, constrói e constitui um mundo em que personagens circulam e se movem em torno de ações envolvidas em uma trama e com uma direção temporal determinada.

Portanto, se a vida se move em ações e acontecimentos gerados no tempo do dia-a-dia, e se nela o tempo está sujeito aos acasos, às indeterminações e às possibilidades de ruptura, a ficção é controlada ou determinada por um narrador que conduz os destinos das personagens. Para Anna Maria Balough, a ficção possui um recorte temporal drasticamente reduzido, que a diferencia da vida real, posto que ocorre “um procedimento de seleção de momentos narrativos de base, uma forte condensação da temporalidade, uma singularização de determinados episódios” (20).

Na ficção, é preciso eliminar os tempos mortos, em que nada de especial acontece ou em que não se anuncia que algo de especial está para acontecer. Manoel Carlos trabalhou justamente com esses tempos mortos nas três telenovelas. Se, em Por amor, o folhetim ainda era a maior tônica de estruturação da narrativa, aos poucos, em Laços de família, a apresentação da cotidianidade através da exposição de situações corriqueiras, banais, foi crescendo até que, em Mulheres apaixonadas, o universo dessas situações era maior que o próprio universo das tramas folhetinescas. Pois se existe uma habilidade do autor em tratar temas universais que se apresentam na tradição do folhetim (filhos trocados, mulheres traídas, paixões em segredos), também há uma conformação de situações, lugares comuns, cenas banais que fazem parte de um contexto específico do viver e que muitas vezes não têm sido objeto de reflexão. Tampouco temos dispensado, a esses lugares comuns, a atenção de nossas experiências rotineiras.

A incompletude diante da vida que os homens experimentam aparece nos personagens protagonistas — Atílio, Miguel, Pedro, César e Téo. Todos procuram por um amor ideal e nenhum se satisfaz, no final se confrontam com a possibilidade de uma mulher com defeitos, ambigüidades morais e capazes de atitudes cruéis e egoístas, mesmo evocando altruísmo e renúncia. Esse traço por uma caracterização psicológica e filosoficamente existencial confere um sentido diverso ao tradicional par romântico e herói dos romances folhetins e do gênero melodramático que os folhetins usurparam, que geralmente é caracterizado como a matriz literária do modelo de representação das telenovelas e de outros gêneros audiovisuais. Maria Carmem Jacob destaca que na novela Mulheres apaixonadas o ato de confrontar-se com a mentira e a traição do marido gerou na personagem Helena sentimentos de crueldade e egoísmo a ponto de dizer que “não sou uma heroína, sou uma mulher comum” (21). Constatação que reforça nossa análise de que a forma de enunciação proposta pelo autor retira o caráter tipificado das personagens ficcionais das telenovelas e as aproxima de um dizer cotidiano sobre a vida. A relação entre espectadores e realizadores das obras ficcionais não é de forma alguma estática, mas circula, no dizer de França e Guimarães, por textos que se movem constantemente (os discursos, as narrativas, as representações).

A forma como são enunciados os diversos textos, que de modo similar às crônicas não se atêm a grandes acontecimentos ou dramas, mas privilegiam pequenas rotinas e sentimentos que na sua simplicidade são esmiuçados e tratados com a profundidade necessária, leva-nos a pensar na existência humana, com sua precariedade, e na miserabilidade, que concede muitas vezes importância a pequenas questões e renega os verdadeiros problemas da humanidade. O amor, a família e a paixão e as diversas formas de experimentá-los são as verdadeiras temáticas que Manoel Carlos se dispõe a discutir nas três telenovelas.

Em Por amor, a trama central são os desvarios que uma mãe é capaz de cometer em nome de um amor materno que pretende suprir o sofrimento da filha. A ausência de moralidade e respeito aos outros em função da suposta felicidade da filha amada é o conflito gerador da trama e das subtramas que envolvem outras personagens e núcleos. O amor é o tema central e se apresenta sob diversos aspectos e tipos: egoísta, ciumento, invejoso, fraterno, maduro e companheiro, ingênuo, covarde e preconceituoso, ardente, platônico, obsessivo, infantil, aventureiro, romântico, homossexual, o amor-paixão, o amor-amante, o amor dos/e por bichos de estimação, o amor que tudo suporta e, por fim, os diversos tipos e formas de traições no amor.

A mesma situação de mãe que se sacrifica em função da filha surge na trama central de Laços de família, representada pela protagonista Helena, com a diferença de que, no caso ora em análise, já não se trata de preservar exclusivamente uma família, mas a família. Garantir a felicidade dos filhos e mantê-los afastados dos prováveis sofrimentos que a vida promove é tarefa da mãe que deve colocar seus interesses e desejos em segundo plano e priorizar a harmonia do lar. Tal projeto é constantemente ameaçado por conflitos gerados por ameaças externas: a presença da meia-irmã que se interpõe entre mãe e filha e revela a fragilidade da filha; a nora ambiciosa que atormenta o equilíbrio da família unida; a paixão arrebatadora da mãe por um jovem e rico médico que atrai a atenção da filha; a ameaça da tia-madrasta do rapaz que aponta a inconsistência da relação entre mãe e filha; o primo e a ligação com o passado — os segredos do passado que ameaçam a imagem da mãe devotada; o amor-paixão do filho pela vizinha — uma garota de programa e as conseqüências que sofre o rapaz ao assumir essa relação. A família é apresentada em várias versões nas subtramas que se entrelaçam a essa família central: a família decadente da zona sul que leva a filha mãe solteira a buscar sustento em programas sexuais e a hospedar uma colega em sua casa (para auxiliar nas despesas); a família patriarcal do sul do Brasil, também em decadência pela doença seguida de morte do patriarca; a família classe média alta, culta e equilibrada, de um livreiro viúvo que vive com a mãe e seus dois filhos jovens; a família rica representada por Alba e seu jovem marido sustentado por seu dinheiro, seus sobrinhos-filhos e seus velhos amigos inseparáveis que constantemente convivem com a família em seus habituais momentos de intimidade; a família gentil e equilibrada da veterinária; a família humilde de Ivete — secretária da clínica de estética de Helena e que agrega os amigos sem família; a família desajustada do médico-pai solteiro e, por fim, o haras — a família que se forma a partir da reunião dos que não possuem família.

Em Mulheres apaixonadas, a trama central é descaracterizada em função da relevância que todas as personagens assumem ao serem priorizadas suas ações: as várias paixões que nos são apresentadas — a juvenil, entre um adolescente e sua professora; a homossexual, entre duas adolescentes; a obsessiva, da esposa pelo marido; a violenta, do marido pela esposa; a pueril, entre jovens com os dilemas do sexo; a pecaminosa (a moça rica e mimada e o padre devotado); a platônica (a jovem que deseja o vizinho casado); a paixão entre o patrão e o serviçal; a paixão entre primos; a paixão ciumenta; a aventureira; a descompromissada; a paixão arrebatadora (entre pessoas de níveis sociais diferentes); a escondida (de homem casado e sua amante); a paixão na terceira idade; a paixão-amor do passado; a paixão entre colegas de trabalho; a paixão que se compra (entre um jovem e uma mulher madura); a paixão dos ex-amantes (entre casais separados) e, por fim, o confronto da paixão com o convívio diário. Carmem Jacob, em sua análise sobre a telenovela Mulheres apaixonadas, afirma que o autor:


valoriza o lugar da escola e da família, explorando as mais diferentes configurações. Quando os personagens não estavam inseridos num núcleo familiar, as redes de solidariedade dos ambientes de trabalho e das instituições de formação foram exploradas com destaque, valorizadas como experiências essenciais na vida contemporânea. A família foi privilegiada, mas não foi apontada como exclusiva instância de amparo, solidariedade e formação da moral e dos costumes. As redes de solidariedade dos amigos íntimos, estas sim foram destacadas como se devessem ser uma das bases essenciais da formação dos laços sociais na atualidade. Redes que teriam a obrigação de oferecer e regular as regras e os modos de aprendizagem do amor solidário, do amor não individualista, do amor regido por códigos morais. (22)

É interessante observarmos como a autora relaciona os temas família, amor e laços sociais — que são os mesmos responsáveis por estruturar as três telenovelas em análise — como destaques no discurso elaborado pelo escritor em Mulheres apaixonadas. Os questionamentos elaborados, a partir da apresentação de Por amor e Laços de família, foram amarrados numa lógica discursiva e, em Mulheres apaixonadas, a apresentação das questões amor, família, paixão aparecem sustentando experiências marcadamente contemporâneas, destituídas quase das experiências oníricas das estruturas folhetinescas que em geral permeiam as telenovelas.

Resumé

Le présent article vise à indiquer des innovations dans le traitement le texte trois feuilletons télé élaborés par Manoel Carlos, pour émetteur Filet Globe: Por amor (1997-1998), Laços de família (2002) et Mulheres apaixonadas (2003). À travers une exposition analytique concernant le travail littéral, nous indiquerons les stratégies utilisées par l'auteur pour construire le texte et d'élaborer une forme discursiva. Dans les trois feuilletons télé nous observons une même structure narrative et préoccupation dans l'élaboration de questions qui disent respect aux relations humaines constituées à partir du terrain de l'affectivité. Trois questions fondamentales structurent les récits: l'amour, la famille et la passion, toutes elles placées dans cotidianidade de la classe moyenne de Rio de Janeiro.