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Intelectual engajado, na vida e na obra
Estado de São Paulo, Domingo 27 de maio de 2001 - Caderno 2

Ao defender e lutar por suas idéias, ele ajudou a forjar a imagem do poeta como visionário

Victor Hugo, que teve o centenário da morte comemorado em 1985, não é há muito tempo leitura de cabeceira, ou escrivaninha, dos intelectuais e escritores. Para a maioria deles, o bardo gigantesco só desperta interesse quando há alguma tarefa à frente: pesquisa sobre época, o romantismo, história, enfim. Mas ele continua a ser uma presença forte, mesmo entre pessoas que jamais ouviram seu nome. Há uma piada, a respeito de algum jogador de futebol brasileiro que, ao passar diante de Notre-Dame, arrotou erudição diante do colega boquiaberto: "Aqui é a catedral onde viveu o corcunda do mesmo nome." Não sei se a piada tem autor, de qualquer forma, ela ilustra muito bem a situação de Hugo, que influenciou o mais popular dos poetas brasileiros, Castro Alves, e encantou Pedro II. Tanto o imperador quanto o poeta baiano admiravam o autor de Os Trabalhadores do Mar (versão de Machado de Assis, o que já justifica a leitura) como artista e paladino dos fracos e oprimidos, posição simpática pelo furor sincero com que desempenhou o papel.

Mais de cem literatos traduziram Hugo no Brasil. É bastante conhecido o entusiasmo de Hugo pela abolição dos escravos, pela campanha republicana - o que complica a devoção de Pedro II. Tanto na literatura como na política, o que transborda, o que marca: a preocupação social, a solidariedade sem fronteiras, que fala mais alto do que os versos condoreiros, do que as hipérboles verbais hoje fora de moda. Mas veja-se, tanto na literatura como na vida do intelectual engajado, essa grande tradição francesa, ele ajudou a forjar a imagem que se tem corriqueiramente do poeta, como o iluminado, o visionário, aquele que defende suas idéias e batalha por elas.

Estabelece-se, assim, um vínculo entre a obra e a vida, coerência que se perde já com Rimbaud, também iluminado e visionário, mas de personalidade cindida, assim como a realidade deixava de ser unívoca em direção ao modernismo e nem um pouco humanitário.

O tratamento do político na arte mudou de maneira radical. Hoje, um autor de dificílima compreensão como o judeu romeno de língua alemã Paul Celan é considerado mestre supremo e seus poemas rarefeitos a melhor expressão dos tempos em que as ideologias ruíram sob as duas guerras mundiais e os totalitarismos. O humanitário de Os Miseráveis, a beleza moral do Corcunda soam apenas demagógicos, nesse sentido, portanto contrários às intenções explícitas do autor. No entanto, a contradição é uma das vantagens da arte sobre outros exercícios humanos. A quantidade de adaptações das obras de Hugo para o teatro, o cinema e a televisão mostram que ele continua a dizer certas coisas para os tempos atuais.

Mesmo usado para compensar a má consciência do público pelo espetáculo de massa, não será possível a ninguém negar que o ponto da solidariedade permanece brilhante. Apenas agora queremos saber quais são as suas implicações.

Moacir Amâncio


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