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Nem o modernismo reduziu fascínio por sua obra
Estado de São Paulo, Domingo 27 de maio de 2001 - Caderno 2

Ao morrer, em 1885, tornou-se uma lenda e desde então seus livros estão por toda parte

A prosa de Victor Hugo é célebre pelas longas digressões, sendo a mais famosa a divagação sobre os despejos dos esgotos, de Os Miseráveis.

Robb observa que esse livro pode ser lido de duas maneiras: como o grande drama histórico do século 19 e como uma autobiografia oculta de Victor Hugo.

Mas, como o romance termina em 1833, descreve uma França que apenas começava a sentir a influência de Hugo. Ao voltar à França depois de duas décadas de exílio, Victor Hugo encontrou uma Paris remodelada por Haussmann. A multidão o aclamou na Gare de Nord.

O mito continuou a agir, o homem se sobrepondo à obra. Dizia-se, por exemplo, que às vésperas dos 70 anos Hugo tinha em média um encontro sexual por dia - com um total de 40 parceiras diferentes no curto espaço de cinco meses, contava-se. Ele viu, com horror, a eclosão da Comuna de Paris, que chegou a descrever como "uma coisa monstruosa". Não tendo se envolvido diretamente, contudo, parecia não correr perigo.

Apesar disso, na noite de 27 para 28 de maio de 1871, uma multidão se reuniu diante de sua casa para gritar "Morte a Victor Hugo! Enforquem-no!" As janelas foram quebradas - configurando uma imagem que não parecia compatível com a do autor de Os Miseráveis, um longo romance sobre as vítimas da ordem social. Nove meses após o retorno à França, começou seu quarto exílio.

"Victor Hugo era para a França o que a rainha Vitória era para a Inglaterra", Graham Robb afirma, e talvez não cometa um grande exagero. Como escritor, sem dúvida, envelheceu - o modernismo foi veloz demais, forte demais, e Hugo foi uma das figuras que ele despedaçou.

Seu nome, além disso, alcançou tal fulgor que, sozinho, passou a obscurecer a obra, a dificultar sua leitura, a impedir o acesso a ela. A maioria das cidades francesas deu o nome de Victor Hugo a alguma coisa, o biógrafo recorda. A frase de Jean Cocteau ("Victor Hugo era um louco que achava que era Victor Hugo") parece mais realista do que nunca: um abismo separa dois homens, dois Hugos - e o Hugo público estará sempre a obscurecer o Hugo humano. Em pleno século 19, sua figura veio antecipar os hábitos da cultura de massa: sua imagem foi estampada em pratos, em gravatas, em mata-borrões, em selos. "Victor Hugo como sua própria lata de lixo", Robb sugere.

No fim da vida, um visitante inglês o descreveu como "um velho de aparência jovial, com um chapéu mole, um sobretudo a tiracolo, andando lépido com passadas largas, transmitindo um ar de elegância às roupas desleixadas".

Paul Verlaine jamais se esqueceu do dia em que, muito abalado, se encontrou com Hugo e este, para tranqüilizá-lo, recitou algumas poesias do próprio Verlaine. "Que sublime, astucioso demônio!", descreveu.

Hugo morreu em 1885, de uma congestão pulmonar. Seus restos foram expostos no Arco do Triunfo e transportados para o Panthéon. Tornara-se uma lenda e, desde então, seus livros estão por toda parte. Notre-Dame de Paris (hoje mais conhecida como O Corcunda de Notre-Dame), Os Miseráveis, Hernani tornaram-se artefatos duros e resistentes que invadiram a era pós-moderna, e cujo poder de sedução parece muito distante de se esgotar.

José Castello


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