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Hugo, o autor universal
Estado de São Paulo, Domingo 27 de maio de 2001 - Caderno 2

Nova biografia do autor francês chega ao Brasil, juntamente com a montagem do musical 'Les Misérables', inspirado naquele que é seu romance mais popular. Hugo foi também um dos autores mais adaptados para o cinema e exerceu grande influência sobre a literatura brasileira, em especial sobre o poeta Castro Alves

Em Um Coup de Dés, o célebre poema de Mallarmé, de 1897, um "Mestre" muito parecido com Victor Hugo afunda sob as ondas, cercado pelos destroços de seus alexandrinos. Mallarmé dividia a poesia francesa entre o antes e o depois de Victor Hugo; ele o via como um homem que confiscou de todos os poetas o direto à auto-expressão, e contra quem se ergueu toda a poesia moderna, a começar pela sua. A poesia de Hugo parece estar, de modo irreversível, associada ao verso patriótico, de banco escolar, aquela poesia oficiosa que os alunos, para se mostrarem aplicados, devem saber de cor.

Fazendo o jogo contrário ao de Mallarmé, André Breton incluiu Hugo entre os profetas do surrealismo. Visto hoje como símbolo da poesia oficial francesa, Hugo foi em seu tempo, ao contrário, um escritor bastante teimoso. Sofreu muito por isso. "Pequenas injúrias me matam", escreveu. "Sou como Aquiles: vulnerável pelo calcanhar."

Como Voltaire, Chateaubriand, Malraux ou Sartre, o biógrafo Graham Robb nos mostra que Victor Hugo, além de escritor, foi não só um político, mas um símbolo nacional. Faz parte de uma das mais típicas tradições francesas, a do escritor engajado, para quem a arte deve contaminar a existência. Parte da pompa e da suntuosidade que caracterizam a poesia de Hugo, Robb especula, pode ser atribuída à celebridade precoce e à imagem respeitável que, desde cedo, a ele se colou.

Victor Hugo tem hoje seu nome confundido com o século 19. Foi o mais popular escritor francês de sua época e ainda hoje é, provavelmente, o mais popular dos escritores franceses. Já aos 14 anos, Hugo escreveu: "Eu quero ser Chateaubriand, ou nada." Desde cedo, queria ser um nobre das letras. Queria também ser o chefe do movimento romântico na França. E se tornou.

Paul Claudel disse que a poesia de Hugo seria a prova mais cabal da força da inspiração. E nessa tese está tudo o que a idéia de inspiração pode carregar de positivo (a liberdade, a fúria, a impulsividade), mas também de negativo (a eloqüência, a submissão aos clichês, o gosto pela retórica). Profundo e rasteiro, luminoso e cansativo, repetitivo e desafiador, eis Victor Hugo, um poeta que sintetizou os contrastes do século que lhe coube viver.

Busca romântica - A biografia de Graham Robb expõe um Victor Hugo que, em sua vida pessoal, pagou um alto preço pela busca romântica. Sinais estavam por toda parte. Seu irmão, Eugène, enlouqueceu e passou longo tempo trancafiado num asilo, definhando e ouvindo o grito de mulheres imaginárias.

No século 19, predominava a idéia de que a doença mental era hereditária - e por isso Hugo, ao pensar no irmão, se considerava sempre em risco. E esse risco veio dispor de uma prova irrefutável na doença verdadeira que atingiu, mais tarde, a filha do escritor, Adèle II.

A mulher de Hugo, Adéle Foucher, tornou-se amante do amigo com que tinha laços mais tempestuosos, Saint-Beuve - e o crítico literário talvez tenha sido, de fato, o pai de Adèle II. Ferimento que Victor Hugo compensou entregando-se a uma paixão secreta pela atriz de segunda classe Juliette Drouet, num laço que perdurou por quatro décadas. Já na primeira carta de amor, Juliette lhe enviou junto uma conta de lavanderia no valor de 7 mil francos... Em público, sem nenhuma piedade, ela reclamava do estado de suas roupas de baixo e dizia que Hugo lhe passava pulgas...

O mito Victor Hugo era suportado, a essa altura, por um homem inteiramente vulnerável. "Hugo já não era apenas uma pessoa de carne e osso com várias máscaras, mas uma empresa financeira de egos", Robb escreve. "Sou apenas uma porta sempre aberta e um coração que nunca se fecha", o próprio Hugo se descreveu, de modo mais suave.

Decadência e glória estiveram associadas a seu nome. Dizia-se que não era inteiramente humano: que conseguia comer meio boi de uma única sentada, que seu poderoso ouvido captava o som das formigas e que, conforme seu barbeiro, seus pêlos cegavam a lâmina da navalha três vezes mais rápido do que uma barba normal. "Havia uma imensa fome de heróis, que Hugo satisfazia até os limites da imodéstia", o biógrafo escreve.

Talvez para compensar as crueldades da vida, Hugo entregou-se à política, sempre com uma posição ambivalente, que a princípio resultou numa atitude conservadora; contudo, a política ditatorial de Luis-Napoleão Bonaparte, que o levou ao exílio, terminaria por reformar essa posição.

Sacerdote - Expatriado, muito do Hugo duro e veemente começou a ruir, ou pelo menos a mostrar seu avesso - e a fraqueza se expressou, por exemplo, em sua iniciação no espiritismo de mesa. Logo se tornaria, enfim, um republicano - embora jamais tenha perdido o semblante de sacerdote. Apesar do abismo que os separou, Mallarmé chegou a dizer que Hugo foi o verso em pessoa - o problema é que, a partir de Mallarmé, já não é do verso, mas de outra coisa que se trata.

Foi no exílio, ainda, que terminou uma de suas obras mais célebres, Os Miseráveis. Quando voltou à França, mesmo envolvido numa intensa carreira política, continuou uma obra prolixa e inquieta - mas tornou-se mais popular ainda por causa de seus inflamados discursos. Já era, a essa altura, uma celebridade, reverenciada e aplaudida a cada ato. O nome de Hugo virou, enfim, sinônimo de pompa e eloqüência - valores que o século 20 rebaixou à categoria de graves defeitos e que associou ao vazio e à ostentação.

Em sua biografia, Graham Robb defende Hugo justamente naqueles aspectos em que ele costuma ser mais atacado. Bate-se, por exemplo, contra a idéia de que a forma tradicionalista dos versos de Victor Hugo possa ser entendida como a submissão a "uma construção artificial, concebida por pedantes maliciosos para obstruir a livre expressão das idéias".

Era ao contrário, segundo ele, "uma criação espontânea do inconsciente coletivo". Continua: "Atribuir o verso alexandrino de doze sílabas, por exemplo, ao autor de um manual seria o mesmo que tentar identificar o detentor dos direitos autorais de um mito grego." A tese do biógrafo corresponde e reforça o mito de que alexandrinos completos e até poemas inteiros se formavam na mente de Hugo enquanto ele dormia.

José Castello


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