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Victor
Hugo, "o mais lúcido caso de loucura da literatura"
Estado de São Paulo - Sábado,
21.07.2001 - Caderno 2
O
célebre autor de Os Miseráveis
soube fazer do marketing pessoal a estratégia para impor-se como
o número um das letras francesas no século 19, encarnando
como ninguém o individualismo da cultura moderna
"Victor
Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo", assim definiu Jean Cocteau
aquele que ocupou o pódio literário francês no século
19. Ele foi "o mais lúcido caso de loucura na literatura", conclui
Graham Robb, na mais abrangente e profunda análise da vida deste
gigante do auto-enaltecimento, "um megalômono com uma inabalável
crença na realidade de sua própria imagem", "dotado de magnífica
imaginação" segundo Baudelaire.
Victor
Hugo (1802-1885) julgava-se um messias temporal. Exigia adeptos que o
cultuassem como uma divindade. Anotava cada frase sua em diários
que registravam tudo, todas as suas sensações e impressões
(poeta de poderosas imagens e ritmo musical), acreditando que cada palavra
saída de seu cérebro vibrava um esplendor de inteligência
equivalente a outros gênios insanos que também se sentiram
faróis da humanidade e souberam causar impacto no mundo das artes.
Até na hora da morte, fazia publicidade de si mesmo. A imprensa
sofreu com os falsos alarmes das "últimas palavras" do mestre romântico.
"Como é difícil morrer!" Chegou a declarar. Cada palavra
dita era anunciada como a derradeira. Mas logo ele despertava do torpor
em que se encontrava e proferia outra máxima.
Afinal,
o que Hugo tinha de tão sedutor que magnetizava a todos? O que
fez com que ele fosse o número um das letras francesas? A biografia
que Graham Robb dedica ao escritor tenta responder essas questões.
Victor Hugo, mais do que ninguém em seu tempo, encarnou os valores
da Revolução Francesa e viveu a patologia do hiperindividualismo,
como fenômeno da cultura moderna, com elevada sofisticação
e técnica, aceitando ser um artista das massas, "cegado pelo próprio
ego". Nisso foi genial.
Ele
fez na literatura o que Napoleão empreendeu na política.
Ambos consolidaram os valores do individualismo, do hedonismo, do pragmatismo
utilitário, da ética do self-made-man. Não é
à toa que os dois tiveram os seus dias insulares, isolados da sociedade,
tendo apenas o oceano como espectador de suas genialidades. Viveram uma
tal aberração do desejo narcísico que tornou-se muito
difícil conviver com eles, no dia-a-dia. Ou as pessoas mais próximas
se anulavam ou enlouqueciam. Seu irmão Eugène morreu confinado
num asilo de loucos. Também Adèle, sua filha, teve o mesmo
destino.
Victor
Hugo julgava ter muito o que dizer e achava que não podia haver
desperdício de cada pérola saída de seu pensamento.
A obsessão de se julgar tão importante, o fazia, muitas
vezes, tornar-se ridículo.
Enquanto
passeava com sua amante oficial, a atriz Juliette Drouet, pelo Vale do
Loire (como um grande desocupado que era), recebeu a notícia da
morte por afogamento de sua filha, Léopoldine, em Villequier.
Ficou arrasado. "Interpretou a morte da filha como uma reprimenda divina:
adultério, negligência com os filhos, férias caras
no exterior com a amante, resultando no confisco eterno da filha." Mandou
um bilhete à esposa, se indagando: "Meu Deus, o que foi que eu
fiz?"
Com
ele, ficou comprovado que, quase sempre, só se garante o sucesso
pela via imoral. Depois de ter ido para a cama "com todos os regimes monárquicos
desde a queda de Napoleão", "voltou-se para a esquerda porque de
repente localizou a solução para seu desconforto moral".
Sua briga com Napoleão III (estritamente pessoal) tornou-se um
caso patológico. Mesmo depois de anistiado, insistiu em continuar
lançando dardos contra o ditador por uma questão de marketing.
Ele precisava se sobressair. Tornou-se uma lenda viva, o herói
solitário, defensor da liberdade, tendo um rochedo por companhia.
Não
teve nenhum escrúpulo para manter-se um vencedor. O grande romântico
tudo fez para deixar acesas as luzes da ribalta - e se aproveitou de seu
talento para obter vantagens materiais, boa mesa e fartura sexual. São
tantos casos hilários que Robb conta a respeito da falta de bom
senso de Victor Hugo, que sua biografia se torna divertida e patética.
Muitos não o levaram a sério, mas ele se projetou de uma
tal forma que tiveram de engolir a sua fama, tendo de conviver com ele
como um incômodo necessário. Hugo foi conveniente para a
França da Terceira República. Afinal, não era bobo:
soube ficar milionário, tendo sido talvez o primeiro escritor a
viver inteiramente da literatura.
O
escritor conhecia o seu público, a multidão cínica
que se deixava iludir com o "me engana que eu gosto". Não só
se tornou a maior celebridade literária do seu tempo, como também
provou ser bom de voto. Amava o povo, de um amor altamente demagógico.
Prisioneiro do sucesso, calculou com precisão cada etapa de sua
carreira, até a apoteose final, seu regresso triunfal a Paris,
sentindo-se o próprio Voltaire.
O
romantismo - como primeira manifestação cultural pós-Revolução
Francesa - evidenciou o desvio de propósitos e o ímpeto
de todas as transgressões que culminariam no equívoco do
modernismo. Muitos dos artistas que vieram depois do romantismo fizeram
da liberdade o leit-motiv de suas vidas e foram muito infelizes. A liberdade
romântica não foi caminho para uma verdade de vida, mas um
perigoso atalho de ilusionismo e destruição. O pathos do
romantismo teve conseqüências históricas gravíssimas.
Hitler, por exemplo, foi uma dessas conseqüências.
Victor
Hugo - Uma Biografia é a história de uma tragédia
pessoal, que nos faz muito pensar sobre como a expressão artística
pode destruir pessoas de gênio, quando a arte produzida torna-se
instrumento de poder, de autopromoção e perversão
e não da afirmação da dignidade da pessoa humana.
Os artistas modernos fracassaram, quase todos, porque foram profundamente
imorais.
Era
irreal demais a "disneyização" de seu universo mental, a
hugolândia que queria para o mundo. Seu esoterismo de tendência
new age expressava a miscelânea de concepções acerca
do sentido da vida. Suas experiências espíritas na ilha de
Jersey também fazem parte das hilaridades de seu estado de confusão
espiritual.
"Jovens
escritores falavam em dar a vida por ele", "Eu gostaria de poder engraxar
as botas de Hugo todas as manhãs", disse outro fã. Até
o nosso D. Pedro II fez questão de ir venerá-lo pessoalmente,
em Paris, em 1878. "Victor Hugo era um altar no qual as idéias
liberais deviam ser cultuadas" - escreve o biógrafo.
Muitas
de suas obras chocam pela "gritante falta de realismo", "um apelo demasiado
violento à imaginação". Muitas passagens repetitivas
e hiperbólicas, são cheias de chavões-comuns. Chegou
a escrever estorinhas para crianças. O título de uma delas
dá uma idéia do nível destas fábulas: O Rei
Mau e a Pulga Boa. Stalin vibrou com Quatrevingt-treize. Goethe
considerou Notre-Dame de Paris (1831) "o mais abominável
livro já escrito". O papa Pio IX inseriu Os Miseráveis no
Index dos Livros Proscritos. Mas Graham Robb (também autor de uma
premiada biografia de Balzac) reconhece, contudo, que Os Miseráveis
é uma obra-prima. "É impossível sermos a mesma pessoa
depois de lê-lo." É um romance de grande impacto.
O
exílio foi penoso para a família, que, aos poucos, foi abandonando
Hugo. Arruinado pela libidinagem, viu morrer três de seus quatro
filhos, e Adèle encerrada num manicômio de luxo. A esposa,
a amante, todos se foram. Ficou com os dois netos, que também torraram
parte de sua fortuna. Nos dias 22, 23, 25, 26 e 27 de junho de 1878 teve
um banquete sexual com Blanche Lanvin. Logo em seguida foi acometido por
um brando derrame. Achou uma pena a humanidade perdê-lo. "A morte
é impura. É humilhante expirar." Oscar Wilde chegou a visitá-lo
pouco antes de morrer.
Num
poema chegou a escrever: "Parece-me que afinal devo estar errado em alguma
coisa", mas depois, meditando melhor sobre sua performance neste mundo,
declarou: "Creio que me saí bem. Minha consciência me diz
que estou certo. E se o futuro provar que estou errado, sinto muito pelo
futuro."
Hermes
Rodrigues Nery
VICTOR
HUGO - UMA BIOGRAFIA, de Graham Robb. Record, 674 págs., R$ 70,00.
Hermes Rodrigues Nery é autor do romance O Dilema de Páris
e membro da Academia de Letras de Campos do Jordão
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