|
|
Matérias
Publicadas
Os
desenhos proféticos de um gênio versátil
Estado
de São Paulo - Arte e Lazer - Domingo, 20.01.2002
O
escritor, poeta e dramaturgo também desenhou durante toda a vida,
sobretudo no exílio
PARIS
- Quando Victor Hugo volta a Paris, expulso da Bélgica, em 1870,
o país está calmo. O período aventureiro de Hugo
(o exílio em Jersey, Guernesey e depois Bruxelas)
terminou. Mas as idéias de esquerda que, aos 48 anos, tinham cativado
esse ex-monarquista, esse burguês notável, ele jamais trairá.
Sua determinação é inabalável. Até
sua morte, será a grande voz da França e o defensor de todas
as causas generosas.
Dizem
que sua brutal conversão à esquerda, após o golpe
de Estado de Luís Napoleão, e depois da Comuna, fazem parte
do "plano de ambição" que Hugo sempre aplicou literalmente.
Foi sugerido que, para modelar sua formidável estátua, o
desafio heróico, lançado pelo poeta solitário no
rochedo de Guernesey ao soberano da França Napoleão
III, servia ao objetivo narcísico de Victor Hugo.
É
injusto. É verdade que o primeiro Hugo, até 1851, é
só um jovem sedutor, superdotado, um belo artista mas corrompido
por uma ambição voraz e, em suma, bem "conformista". Ao
contrário, o exílio em Guernesey impressionou - e
mais ainda porque Hugo se deixou fotografar, deixou crescer barba branca
de velho sábio, de profeta, e posa de boa vontade, nos negativos,
de pé sobre um rochedo, diante do oceano impetuoso, diante de Deus,
único personagem à sua altura...
Mas,
se planejado - ou por vaidade - temos de reconhecer que esse plano é
soberbo e que Victor Hugo paga um preço alto: na ilha de Jersey,
fica longe da velha Paris, capital do mundo, que ele adora. Fica sozinho,
entre o barulho ameaçador do mar, as violências do céu,
os hieróglifos das estrelas e seu gênio. A prova é
severa. E dura anos.
Além
disso, jamais vai parar de combater em favor dos fracos, dos deserdados,
dos proletários (uma palavra que ele ama). Não podemos em
nenhum momento colocar em dúvida a piedade, a compaixão,
o amor que ele tem pelos fracos, pelos oprimidos, pelas crianças.
No Senado, luta pela abolição da pena de morte. Reivindica
a anistia para os "membros da Comuna". Seus discursos são sublimes:
estão entre seus mais belos textos (junto com os artigos reunidos
com o título de Choses Vues, que são grandes obras-primas).
Assim,
em minha opinião, sua vida é realmente genial: inaugurada
no conformismo, no "carreirismo", na ambição mundana e burguesa,
ele quebra, de repente, em 1851, o suntuoso porta-jóias que tinha
preparado para sua própria estátua, e se lança na
tempestade política. E embora seja verdade que Hugo tem sempre
um olho no efeito que ele produz, pelo menos a imagem desse "rebelde"
absoluto, perdido em suas tempestades marinhas, preso à sua solidão,
esquartejado entre o futuro e Deus, é mais nobre que o do "Pair
de France", que só sonhava agradar aos poderosos. Ele descobriu,
em 1851, ao mesmo tempo uma verdadeira "generosidade política",
uma coragem indomável e provavelmente sua "verdade".
Profeta
- Falou-se muito sobre a vida, a ação, o personagem
"do século". É preciso dar uma olhada na obra que acompanha
essa vida "em passo de combate". Seus dons são imensos, suas visões
magníficas e muitas vezes proféticas (inventou não
só a "união européia", mas também o "euro").
Entendeu a dor inesgotável dos pobres, dos abandonados. Mas o que
pensar de sua obra?
Para
o século 19 francês, ele foi "o poeta". Todos os alunos da
escola laica (em plena expansão) aprenderam de cor suas estrofes.
Sem dúvida, elas são de rara virtuosidade. Às vezes,
são iluminadas de maneira fulgurante. Algumas coletâneas
continuam belas (Les Chatiments, La Légende des Siècles,
Les Contemplations). Ao lado disso, muito detrito.
É
verdade que, naquela época, a "modernidade poética" era
realizada longe de Victor Hugo. Em primeiro lugar, na Alemanha, onde quase
no mesmo momento explodiu o romantismo. Mas não se tratava do mesmo
romantismo. E a voz de Hugo parece convencional ou bem grandiloqüente,
se a compararmos ao esplendor quase invisível, no entanto incandescente,
dos poetas alemães como Holderlin e Novalis.
Depois,
na própria França, na geração seguinte à
de Hugo, vão se fazer ouvir duas vozes: em primeiro lugar, a de
Baudelaire, verdadeiro "criador da modernidade" e que rejeita o Hugo das
antigas retóricas. E sobretudo, o gênio absoluto, Rimbaud
(sem falar de Lautréamont).
Poderíamos
dizer o mesmo a respeito dos romances. Pouco tempo depois de Hugo, surgem
três romancistas geniais: Stendhal, Balzac e Flaubert. Diante de
O Vermelho e o Negro ou de Madame Bovary, nem mesmo Os
Miseráveis é comparável.
No
entanto, os romances e as peças de teatro ainda resistem aos ataques.
Melhor
do que a poesia. Um pouco exagerados de bons sentimentos, um pouco exagerados
de filosofia "humanista", de estereótipos, mas uma generosidade
criadora e sobretudo a capacidade rara de criar personagens tão
fortes que se tornam mitos (o corcunda e Esmeralda de Notre-Dame de
Paris; o bom presidiário Jean Valjean, que salva a pobre pequena
Cosette no belíssimo romance que é Os Miseráveis).
E,
finalmente, há todo um lado da obra de Hugo, mantida durante longos
anos na sombra e no silêncio, que se revela cada vez mais. Há
cerca de 15 anos, avalia-se sua importância: são os desenhos.
Durante
toda sua vida, Hugo desenhou. Principalmente nos longos períodos
de solidão de seu exílio. Desenhava com tudo o que lhe caía
nas mãos, fuligem, graxa, manchas de tinta dobradas, impressões
de rendas rasgadas, etc. São paisagens de tonalidade negra, a meio
caminho do real e do sonho. De uma beleza intransponível. E de
um modernismo que nem o surrealismo ultrapassou.
Os
burgos pendurados no flanco de montanhas abruptas, o mar, um navio no
mar enfurecido (Hugo escreveu romances marítimos muito belos e
exatamente foi possível nomeá-lo "o homem-oceano"), fortalezas
perdidas, imagens apagadas da História e das cinzas, dos céus
em delírio, o corpo desarticulado de um enforcado na ponta da corda...
É aí, e sobretudo aí, que Hugo merece ser considerado
como o grande autor romântico francês do século 19
e como o equivalente ou mesmo o "mestre" dos românticos da outra
margem do Rio Reno.
Última
volta que nos reservou Hugo: a mais bela obra desse poeta, muitas vezes
considerado o maior da França, não são seus versos.
São seus romances, com toda certeza, algumas peças de teatro,
mas, acima de tudo, seus discursos políticos, indignações
proféticas contra a infelicidade dos pobres. E são, enfim,
de maneira ainda mais enigmática, seus desenhos com fuligem, que
ele fazia para distrair sua solidão e aos quais esse homem tão
preocupado com suas posições não dava muita importância.
Ziguezague do gênio: desenhos proféticos, que parecem desenhar
os céus de nosso século 21, 200 anos após a morte
do "grande vidente".
(Tradução de Wanda Caldeira Brant)
Gilles
Lapouge
Correspondente
Início da tela
|