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Bicentenário comemorado com festa
Jornal do Brasil - Sábado, 13.04.2002

"A vida é uma frase interrompida'', disse Victor Hugo. Um dos escritores mais importantes da história da França foi interrompido depois de 83 produtivos anos, vividos no coração do século 19, entre 1802, quando nasceu em Besançon, no Leste da França, e 1885, quando se foi, em Paris. Uma das raras encarnações do ideal utópico do século 19, autor de Os miseráveis e de Notre-Dame de Paris, estaria fazendo 200 anos. Mas em vez de comemorações meramente institucionais, na França o bicentenário é festejado nas ruas, nos cafés. Rápido esgotaram-se os suplementos especiais lançados nas bancas para comemorar a data, das revistas especializadas L'histoire e Magazine Littéraire aos jornais Le Monde e Le Figaro. Em lojas, camisetas, canetas, calendários. Em frente à Maison de Victor Hugo, o nš 6 da Place des Vosgues, no Marrais, bairro parisiense onde ele morava, há peregrinações como ao túmulo de um santo, quase uma hugomania.

Victor-Marie Hugo conjugou erudição (e admiração da crítica) e popularidade, como nenhum outro artista.

Autor de uma obra que, de tão conhecida, virou de musical da Broadway a desenho animado da Disney, conheceu a glória em vida. Foi sempre sucesso editorial e de bilheteria (Hernani, a primeira peça, de 1830, foi um recorde. Ela será reencenada na Place des Vosgues todas as noites de junho e julho). Morreu rico, vivendo de direitos autorais. À morte, era membro da Académie Française. Morto, teve o maior enterro que a França já viu, com um milhão de pessoas no cortejo que seguiu do Arco do Triunfo ao Panthéon. ''Isso se explica porque ele introduziu no romance um personagem inexistente até então: o povo'', diz ao JB, por telefone, de sua casa em Paris, Arnaud Laster, professor da Sorbonne e uma das maiores autoridades mundiais das obras do escritor. ''Isso mudou totalmente o estatuto do romance e a massa passou a se reconhecer no texto. E ele não fez isso pelo pitoresco, queria uma mudança social.''

Laster é um dos coordenadores do chamado Ano Victor Hugo. Só em Paris, há uma centena de eventos. A maior parte deles é bem à la française: simpósios, colóquios e debates. Mas a França vai respirar Hugo por todos os poros, de encenações de peças a concertos e rodas de leitura. E há ainda comemorações em 32 países. O 26 de fevereiro, o aniversário, foi apenas um ponto de partida. Há programação até 31 de dezembro.

Hugo não foi apenas o primeiro grande romancista do século 19, foi autor de cerca de 650 poemas (espalhados por 22 livros) e 14 peças de teatro. E sua obra não se resume às quase 20 mil páginas que deixou, que incluem ainda ensaios, cartas e outros documentos. Deputado da Assembléia Nacional e depois senador, exilou-se na Bélgica em 1851, por 19 anos, depois do golpe de estado de Luiz Napoleão. Só voltou a Paris em 1870, quando virou um ''visionário'': lutou contra a pena de morte (só abolida em 1984), pela liberdade de imprensa e a unificação da Europa.

Ao mesmo tempo, foi incentivador da fotografia, desenhista e pintor. Mas só nos últimos anos seu trabalho visual foi redescoberto. Agora, o diretor do Musée de l'Orangerie, em Paris, Pierre Georgel, e a curadora da Bibliotèque Nationale, Marie-Laure Prévost, preparam o Catalogue raisonné des dessins de Victor Hugo, que sai este ano. Parte de seus três mil desenhos pode ser vista no Museu Victor Hugo, na Maison de Victor Hugo e na exposição Victor Hugo: l'homme océan, que a Bibliothèque Nationale faz até junho. ''Balzac e Zola foram grandes no romance. Baudelaire, na poesia. Todos foram tão grandes quanto Hugo, mas nenhum com tanta multiplicidade'', diz Laster, admitindo o epíteto de ''multimídia'' para o mestre. Mas nenhuma arte bebeu Hugo tanto quanto o cinema. Por isso, a mostra Victor Hugo et le cinéma, no Forum des Images, em Paris, vai exibir parte dos 70 filmes baseados na obra e na vida de Hugo. Só de Os miseráveis, foram 20 longas-metragens.

No Brasil, as comemorações terão no simpósio Victor Hugo: Gênio sem fronteiras, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, o maior evento. ''A idéia era apresentar a dimensão de mediador cultural de Hugo'', diz a pesquisadora Junia Barreto, organizadora do simpósio. Arnaud Laster é presença certa no seminário, em que o músico francês Georges Vincent vai apresentar, pela primeira vez, uma versão musical do poema As vozes interiores, escrito por Hugo em 1837 e musicado pelo compositor Antônio Francisco Braga (1868-1945). Musicaram poemas de Hugo nomes como Gounot, Wagner e Lizst; a ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi, foi baseada na peça Le roi s'amuse; Maria Tudor, de Carlos Gomes, veio de Mary Tudor, de Victor Hugo.

A Feira do Livro de Belém, em setembro, trará para uma palestra o escritor Jean-Marc Hovasse, autor da mais completa biografia de Hugo já escrita, que teve seu primeiro tomo publicado em 2001 e que se completa este ano. No Rio, o Consulado Geral da França lançou em março o concurso Victor Hugo - 2002, que vai levar 20 estudantes brasileiros de francês à França em junho, e a Academia Brasileira de Letras promove em maio (mês da morte do escritor) um seminário sobre a relação de Hugo com a literatura brasileira. Relação que era explorada no livro Victor Hugo e o Brasil, do acadêmico Antônio Carneiro Leão, de 1960, que será reeditado pela Topbooks. Outro livro previsto para este ano é uma nova edição de Os miseráveis, que a Cosac & Naify deve lançar em agosto.

Hugo exerceu uma influência no Brasil maior do que se imagina. Em 1815, D. João VI convidou uma missão francesa para fundar a Academia de Belas Artes do Brasil. Estavam abertas as portas para tornar o país uma zona de influência francesa. A juventude endinheirada da ex-colônia estudava em Paris e, com o início do Romantismo, Victor Hugo tornou-se seu herói e influenciou as mudanças processadas no Brasil no período, baseadas em parte no ideário político do poeta francês: do Romantismo ao abolicionismo e outros ideais republicanos. Apesar disso, um dos maiores fãs que o francês teve no Brasil foi D. Pedro II. Leitor de toda obra que lhe chegasse às mãos, o imperador conheceu o ídolo em 1877, em Paris.

Hugo nunca veio ao Brasil, mas há textos dele que citam o país, como o poema ''Gare!'', de 1865, que retrata sua paixão pela brasileira Rosita Rosa, ou o romance Os trabalhadores do mar, em que cita o Rio. Ele observava o país de longe. Em 1871, publicou na Bélgica um artigo que parabenizava o país pela assinatura da Lei do Ventre Livre.

Alexandre Werneck


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