Cadernos Negros 38: tradição viva

Eduardo de Assis Duarte*

 

 

"Estamos no limiar de um novo tempo.
Tempo de África
vida nova, mais justa e mais livre
e,
inspirados por ela,
renascemos
arrancando as máscaras brancas,
pondo fim à imitação.
Descobrimos
a lavagem cerebral que nos poluía
e estamos assumindo
nossa negrura
bela e forte.

As diferenças de estilo,
concepções de literatura,
forma,
nada disso pode mais ser
um muro
erguido entre aqueles
que encontram na poesia
um meio de expressão negra.
Aqui se trata
da legítima defesa
dos valores do povo negro.
A poesia como verdade,
testemunha
do nosso tempo."

Cadernos Negros 1
1978

 

 

A série Cadernos Negros se faz presente na literatura afro-brasileira desde 1978, quando um abnegado grupo de poetas e ficcionistas lança em São Paulo o volume de número 1. O título remete à imagem do caderno como metáfora de plasticidade e contínua experimentação, em consonância com a mobilidade própria ao tempo de construções culturais provisórias e deslizantes. Mas algo há ali, nas páginas do pequeno volume de 1978, que seus autores bem expressaram e que nada tem de provisório: o compromisso histórico com a comunidade oriunda de mais de três séculos de escravidão, vítima cotidiana do racismo nada cordial instalado no Brasil desde a chegada dos primeiros tumbeiros. Compromisso político, pautado pelo respeito à memória de lutas dos antepassados e, ao mesmo tempo, atento ao contexto de desigualdade e exclusão social implantado pela ditadura civil-militar, então em processo de decomposição “lenta e gradual”, para ficarmos com o vocabulário da época. Presente este que desafiou a repressão ao fundar nesse mesmo ano, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, o Movimento Negro Unificado, em desafio explícito ao regime, à época comandado pelo general Ernesto Geisel.

A apresentação assinada pelos oito autores que integram a primeira edição soa como manifesto em que fica patente a vinculação do grupo – mais tarde nomeado sintomaticamente Quilombhoje – à tradição da literatura negra ocidental. Os trechos citados na epígrafe acima explicitam o diálogo com o projeto iniciado nos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século XX, através do New Negro Movement e, sobretudo, da Harlem Renaissance. Projeto que chega ao Caribe e à França, nos anos30, e, também ao Brasil, pelas mãos, entre outros, de Solano Trindade, em 1936, e Abdias Nascimento, em 1944.

Trata-se de escritos empenhados em confrontar a secular doxa europeia, responsável pela construção de uma “razão negra” em que africanos e seus descendentes foram reduzidos a seres infra-humanos, logo excluídos da civilização, conforme postula Hegel. Contra essa narrativa, que condena o negro a eterno atributo de inferioridade, insurgem-se as falas dos pensadores identificados às vítimas. Falas e reflexões empenhadas em desconstruir as verdades brancas tidas como universais e que se faz presente na ante cena de poemas e narrativas diaspóricasa que se vinculam os escritos afro-brasileiros. Já estes se propagam país afora em inúmeras iniciativas individuais, que, mais tarde,vão encontrar nos Cadernos um espaço de convergência e um meio de difusão e de arregimentação de novos leitores.

Ao longo de seus trinta e oito anos de existência, a série vem publicando volumes coletivos de poesia, nos números ímpares, e de contos, nos números pares. E não foram poucos os autores e autoras que nela encontraram guarita para suas experiências. Da mesma forma, não foram poucos os que dela partiram para vigorosas carreiras individuais, a exemplo de Cuti (pseudônimo do poeta, contista, ensaísta e dramaturgo Luiz Silva), com cerca de vinte publicações; bem como de Conceição Evaristo, agraciada com o Prêmio Jabuti 2015, cuja ficção vem ganhando público cada vez maior no exterior, com traduções para o inglês, francês, espanhol e italiano.

Por outro lado, a série cumpre o papel inerente a toda tradição – o de elo entre gerações –, conforme explícito desde o primeiro número, em que jovens estreantes compartilham o espaço com escritores mais velhos, como Oswaldo de Camargo e Eduardo de Oliveira. Com isto, pode-se dizer que os Cadernos vêm formando não apenas leitores identificados aos temas e procedimentos retomados a cada edição, mas também novos autores, moças e moços que encontram na publicação estímulo para seus primeiros experimentos literários. Tal convívio tem se mostrado profícuo ao longo dessas quase quatro décadas e, hoje, pode se ver aqueles jovens dos anos 70 acolherem os do século XXI, muitos vindos de regiões distantes do país; outros, chegados das periferias das grandes cidades, adeptos do rap e demais poéticas da oralidade, dispostos ao diálogo e atraídos pela materialidade do texto impresso.

Cadernos Negros 38 traz um conjunto de vinte e cinco narrativas curtas, assinadas por vinte e um autores e autoras. No entanto, observado o primeiro volume de contos da série – Cadernos Negros 2, publicado em 1979 –, vê-se que ali já se encontram nada menos que dezenove estórias, o que demonstra a permanência e a vitalidade do projeto da literatura negra enquanto produção coletiva, feita à margem do mainstream capitaneado pelo mercado editorial e demais instâncias de consagração literária.

Neste número, destaca-se de início a presença de Cuti, um dos fundadores da série e partícipe de todos os números, à exceção do 17, publicado em 1994. O autor de Contos crespos (2008) comparece com dois escritos – “Incompatibilidade” e “Tratamento” –, em que retoma o leitmotiv da discriminação racial, invertendo, porém, a velha disposição da pirâmide social, e colocando os personagens negros em plano superior: um engenheiro, o outro dentista. O autor retoma uma prática bem sucedida em textos anteriores e oscila o tom da representação: se, em “Tratamento”, miniconto de poucas linhas, a ofensa racista de um vizinho despeitado leva ao embate físico; em “Incompatibilidade”, o ficcionista constrói o antagonismo entre o chefe negro e o subordinado branco com detalhes que remetem à infância em que ambos foram colegas de escola... Ao final, o adulto rancoroso se esconde para não receber o novo chefe em casa e, quando o leitor aguarda uma nova discussão, o humor irrompe de surpresa:

Júnior, vem cá! [...] Faz um favor pro papai. Vai lá fora e diz pro sujeito que apertou a campainha que eu não estou, que eu saí e só volto à noite.
[...]
Quem era?, perguntou-lhe.
O garoto, com um sorriso de quem tinha tido uma boa prosa, respondeu:
Era o amigo do senhor. Muito legal ele.
De que cor ele era, heim?
Não sei!
Como não sabe?, esbravejou.
Não sei! Não sei! Não sei!..., insistiu o menino, com toda convicção e plena consciência de que mentia.
E o que foi que você falou pra ele?
Eu disse: o meu pai mandou dizer que não está e que só volta à noite.
                                                                                                    (Cadernos Negros 38, p. 61-62).

Outros veteranos comparecem, a exemplo de Lepê Correia e Fausto Antônio. O primeiro constrói a crônica de um parto feito pelo personagem-título Nego Zau, com toda a perícia dos que aprenderam fazer fazendo. Já o segundo brinda seus leitores em primeira pessoa com uma tocante história de amor vivida por um casal jovem que se conhece desde criança, e guarda toda uma memória de desavenças e galos na testa.

Cadernos Negros 38 traz ainda escritos contundentes de autores estreantes, como Daniel Marques, que trabalha a tensão racial em suas relações com a desigualdade socioeconômica; ou de iniciantes já maduros na arte do conto, como Samuel Neri que, em “Mocorongo”, ficcionaliza o racismo entre os subalternos situados no universo da construção civil. Por sua vez, Jairo Pinto aborda a luta por moradia numa comunidade carente, ameaçada de expulsão; e Benício dos Santos traz a questão identitária para a Bahia, onde, apesar da evidente maioria negra na população, a assunção do cabelo afro faz sofrer e embasa o conflito do adolescente com a própria mãe.

Por fim, é preciso destacar a forte presença feminina, pois, dentre os vinte e um autores do livro, doze são mulheres, fato que vem confirmar uma tendência crescente na série, conforme demonstra FIGUEIREDO (2009). E, juntamente com a autoria, surgem os dramas do “segundo sexo” no país do racismo supostamente cordial. Alcildéa Miguel traz a questão para o universo escolar, na pele de uma professora rejeitada pelos alunos; a estreante Ana Fátima contrapõe a menina Ayó, em seu processo de iniciação na religião de matriz africana ao drama do garoto Pretonow, misteriosamente “desaparecido” em plena luz do dia; Cristiane Sobral brinda os leitores com a estória de Teresa, discriminada até pelos negros da própria igreja até reencontrar suas raízes – e o amor – no terreiro de Umbanda; Denise Lima enfrenta o desafio da primeira pessoa e constrói uma migrante negra em busca de trabalho braçal na metrópole; Hildália Fernandes faz o mesmo, penetra na subjetividade de uma africana trazida como escrava em 1855 para narrar sua busca pelo filho roubado logo após o parto;D’Ilemar Monteiro constrói uma narrativa de resiliência que emoldura o doloroso amadurecimento de uma jovem negra em busca de afirmação e respeito; já Fátima Trinchão opta por colocar em cena dois desafetos para destacar a fragilidade dos homens perante a força dos orixás; e Rosângela Nascimento retoma o universo religioso de matriz africana para mesclar a narrativa com a presença do fantástico.

Cadernos Negros 38 traz, portanto, uma seleção de contos que expressa a diversidade em termos de autoria e de temas abordados e, também, a vitalidade de uma produção crescente em todo o país. Escritos que têm nas antologias anuais do Quilombhoje exemplo de determinação e espaço de resistência dessas vozes. Vozes e falas lamentavelmente ainda pouco visíveis no sistema constituído pela literatura brasileira canônica.

Referências

RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (Org.). Cadernos Negros 38: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2015.

FIGUEIREDO, Fernanda Rodrigues. A mulher negra nos Cadernos Negros: autoria e representações. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-7TTGA8/disserta_ao_mestrado_backup_revisado_2.pdf?sequence=1>.

_________________________________________

* Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade de Letras da UFMG. Organizou, entre outros, Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (2007); a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011, 4 vol.); e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2014). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

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