Maria do Rosário Imaculada dos Santos

Conceição Evaristo

De Imaculada nada tenho – começou assim a conversa de Maria do Rosário comigo –, mas não me sinto a primeira e nem a última das pecadoras, mesmo porque eu não acredito em pecados – continuou. Esse nome de santa mulher foi invenção do catolicismo exagerado de minha família. Mãe, tias, madrinha e também a minha avó, todas elas, não se contentaram só com o “Maria”. E me fizeram carregar o peso dessa feminina santidade em meu nome, finalizada por “Santos” generalizados e não identificáveis. Segundo uma das minhas primas, que recentemente reencontrei, a Terezinha de Jesus dos Santos, filha da minha tia, Rita de Cássia, o meu nome original seria “Maria do Rosário Imaculada das Graças Conceição dos Santos”. O padre, menos fiel à fé mariana, foi quem achou exagerado o sentido fervoroso de meu nome e não permitiu. Tenho fé em minha protetora, a “Maria”, mulher de fibra, que suportou ser a mãe do Salvador. A ela dou o meu voto, o de crença, não o de castidade... E a outros santos e santas também...

Maria do Rosário Imaculada tinha a fala tão fácil, que até duvidei que ela tivesse alguma história para contar, ou melhor, cheguei a pensar que o seu relato não traria novidade alguma. A porta da casa dela sempre aberta era um sinal visível da receptividade da dona para qualquer pessoa que por ali passasse. Mas resolvi arriscar. O sorriso dela foi tão encantador e respondeu ao meu boa tarde de uma maneira tão efusiva, que, para quem busca histórias, aquela atitude afiançava o desejo dela de conversar comigo. E quando, embora brincando, revelou o seu descontentamento com o próprio nome, me lembrei da mulher que havia criado um nome para si própria. Tive vontade de contar a história de Natalina Soledad, mas, naquele momento, o meu prazer era o da escuta. Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de um pouco de sua vida. Eis:

– Eu era bem menina ainda, tinha uns sete anos no máximo, mas tenho na memória a nitidez da cena. Minha mãe, eu e mais dois irmãos, um pouco maiores estávamos sentados do lado de fora da casa em que morávamos. Era uma construção pequena, mas abrigava muitos. Meus avós paternos, duas tias solteiras, um tio solteiro, dois meninos filhos desse tio solteiro, que meus avós ajudavam a criar, meus pais, eu e mais dois irmãos. Mais adiante, no mesmo terreiro, em outras casas também pequenas, moravam mais tios e tias, primos e primas crianças, uma bisavó materna e mais algumas pessoas, que eu nunca soube precisar o grau de parentesco sanguíneo entre nós. Todos respondiam pelo sobrenome “dos Santos” ou “dos Reis”, o que provocava sempre o seguinte comentário jocoso: quem não era do santo, era do rei... Do lado de fora da casa, nós estávamos a olhar o tempo vadio, sem nada para fazer, a não ser conversar os assuntos costumeiros, quando apontou lá na estrada um jipe. Levantamos rápido e juntos. Era tão raro passar por ali algum automóvel. As outras casas começaram a se movimentar também e, em poucos minutos, a nossa população familiar estava toda eufórica, assistindo ao gratuito espetáculo. Um jipe e um casal estrangeiro (depois, com o tempo, descobri, eram pessoas do sul do Brasil) em nossas paragens. Pararam em nossa porta, desceram, conversaram conosco e ofereceram aos grandes, caso eles permitissem, um passeio com a criançada. Foi permitido. Os dois iam à frente e a meninada atrás. Deram duas ou três viagens. Na última, só faltava eu e um dos meus irmãos, o maior, o Toninho. Subimos contentes e o carro, aos poucos, foi ganhando distância, distância, distância... Aflitos e temerosos, pois começava a escurecer, pedimos ao moço e à moça para fazer o caminho de volta. Eles apenas sorriram e continuaram adiante. Depois de muito tempo, noite adentro, eles pararam o jipe, puxaram violentamente o meu irmão, deixando o pobrezinho no meio da estrada aos gritos e continuaram a viagem comigo, me levando adiante. Nos primeiros dias, eu, na minha inocência, divagava entre o temor e a confiança. Nunca tinha escutado sobre casos de roubo de criança. Em casa, não tínhamos medos de perigos reais e sim de imaginários. Mula sem cabeça, lobisomem, almas do outro mundo... Cobras e bichos os grandes matavam. Inimigos homens não tínhamos, nem ouvíamos os grandes comentarem. Desavenças internas do grupo e externas ao clã familiar, para mim, criança pequena ainda, nunca haviam sido transformadas em crimes. Acho que, nos primeiros dias de estrada, acreditei, como meu irmão, nas primeiras horas do passeio, de que nada de mal estivesse realmente ocorrendo. E foi preciso que passassem muitos dias e muitas noites de viagem nas estradas, para que eu entendesse que a moça e o moço estrangeiros tinham me tomado de meus pais. E, quando alcancei a gravidade da situação, por muito tempo pensei que fosse acontecer comigo o que, muitas vezes, escutei os mais velhos contar. As histórias de escravidão de minha gente. Eu ia ser vendida como uma menina escrava.

Durante anos, vivi com o casal que me roubou de minha família, em uma casa grande, que parecia uma fazenda. Nos primeiros tempos, sofri muito, chorava noite e dia. Choro gritado e choro calado. Um dia, resolvi buscar o caminho de volta. Peguei a estrada, ou melhor, uma das estradas que dava para a casa deles. Caminhei muito até cair extenuada de cansaço e fome. Devo ter desmaiado, pois, quando acordei, estava no quartinho onde eu dormia. Ao meu lado, estava uma cesta com frutas, biscoitos e uma xícara de café com leite. De tempos em tempos, o casal viajava e deixava uma moça, também estrangeira, cuidando de mim. Eles nunca me bateram, mas me tratavam como se eu não existisse. Jamais perguntaram o meu nome, me chamavam de “menina”. Um dia, me deram um cachorro e disseram ser um presente de aniversário. E me informaram, ainda, que era o mês de maio, mês de Maria, época que completava um ano da minha chegada à casa deles. No outro ano, fizeram a mesma observação e me deram uns cadernos e lápis, dizendo que a moça amiga deles ia me ensinar a ler. Gostei da novidade, eu havia começado a freqüentar a escola, na vilazinha em que eu havia nascido, lá no Brasil.

A moça, que me ensinou a ler, me ensinou outras coisas, mas nunca me perguntou nada sobre o tempo antes de eu chegar ali. Eu tinha um desejo enorme de falar de minha terra, de minha casa primeira, de meus pais, de minha família, de minha vida e nunca pude. Para eles, era como se eu tivesse nascido a partir dali. Todas as noites, antes do sono me pegar, eu mesma me contava as minhas histórias, as histórias de minha gente. Mas, com o passar do tempo, com desespero, eu via a minha gente como um desenho distante, em que eu não alcançava os detalhes. Época houve em que tudo se tornou apenas um esboço. Por isso, tantos remendos em minha fala. A deslembrança de vários fatos me dói. Confesso, a minha história é feita mais de inventos do que de verdades...

Aprendi a ler e, como prêmio, ganhei um rádio, que ficava ligado noite e dia. O rádio me ligava ao mundo externo. Foi quando descobri que o casal não era estrangeiro, eu estava no Brasil, bem no sul, quase na Argentina, aí sim, outro país. Contudo, eu estava muito longe de minha terra. Nada podia fazer. Continuei, então, a minha vida, que se resumia no meu quarto e nas brincadeiras com Jesuszinho, o meu cachorro, nome que eu escolhi. Pouco trabalho era o meu. Cuidava de varrer a casa quando a moça não ia, limpava o meu quarto, que pouco sujava. O casal sempre mais ausente do que presente. Cresci sozinha. Das coisas de mulheres, o sangue que perdemos, quando me aconteceu pela primeira vez, da moça que me ensinou a leitura também tive a explicação. – Você agora é uma mulher! – Não entendi. Eu achava que eu já era mulher desde sempre. Tudo se confundiu naquela época, junto ao sangue que me escorria. Pensei em minha mãe. Eu ainda sabia, na memória, o jeito do rosto dela. De minha mãe ouvi, várias vezes, ela dizer que tinha uma menina mulher e dois meninos homens. Agora a moça, por conta do sangue que de mim corria, me dizia que eu já era mulher. Também, naqueles mesmos dias, ouvi o casal falar para essa tal moça que eu deveria estar com os meus doze anos e que já fazia sete anos de minha chegada à casa deles. O que o casal não imaginava é que eu também fazia a minha contagem do tempo. Só que os meus termos eram outros. Eu sabia que, ali, eu já tinha feito sete aniversários, longe dos meus. E para mim não se tratava da minha chegada à casa deles e sim da minha impotência diante deles, que haviam me tomado, ou melhor, me roubado de meus pais.

Quando estava completando quase oito anos que eu tinha sido roubada, a moça que trabalhava para esse casal chegou, um dia, me dizendo que tinha uma notícia para mim. A imagem de minha família, ou melhor, o desejo de um encontro com os meus me tomou por inteira. Pensei que o milagre tivesse acontecido. Tendo, com o passar dos anos, aprendido a controlar as minhas emoções, fiz, contudo, silêncio. Eu sabia que ela só me daria a notícia no final da tarde. E, enquanto esperava, me imaginei viajando naquela mesma noite em busca de minha terra. Uma cidadezinha chamada Flor de Mim. Só uma preocupação me doía, o Jesuszinho. Como eu ia levar o meu cão predileto, que, de tão predileto, era o único que eu tinha. No final da tarde, a notícia me foi dada. Uma bomba estourou sobre mim. O casal havia se separado, cada um ia seguir para uma cidade diferente. Uma tia deles, não sei se da mulher ou do homem, viria me buscar e me levaria com ela. Como viria de jipe, se eu quisesse, poderia levar comigo o meu cachorro. Tonta pelo efeito da bomba, fui deitar. No outro dia, cedinho, com meus poucos pertences mais o Jesuszinho, fui levada por uma senhora loira e desconhecida, pela segunda vez, por um caminho que eu ignorava aonde ia dar. A moça, que com o consentimento do casal me ensinara a ler, da porta me acenou, com gesto abreviado, a metade de uma despedida. Chorei para dentro, mais uma vez. Eu sabia que não estava indo para a minha cidade, Flor de Mim. E estava deixando uma pessoa. Por força de não ter ninguém dos meus por perto, eu tinha me afeiçoado a ela. A moça que trabalhava com o casal e que se chamava Berta Calazans.

Nessa segunda casa, junto à família Souza Pacelli, tive de me adaptar a um estilo totalmente contrário ao que eu tinha vivido nos anos anteriores. De Flor de Mim, lugarejo de vivência de minha primeira infância, fui para uma cidade chamada Alto dos Vales do Sul, levada pelo casal. Ali, a vida tinha um quê interiorano também. De Vales do Sul fui encaminhada para a Cidade de Frei Cardoso. Lá, encontrei um movimento intenso, assustador. Carros, bondes, bicicletas, vozes altas e desmedidas. Jesuszinho não aguentou, morreu. Eu trabalhava imensamente, aprendi a cozinhar, a passar e a cuidar de crianças. O rádio, que eu levara, acabou perdendo a função. Recebi ordens para não o ligar, para não gastar luz e não me distrair no trabalho. Aguentei esse inferno durante sete anos e só tinha um objetivo: o de juntar dinheiro e voltar para Flor de Mim. Mas o tempo foi passando. Dali, saí para outra casa e mais casas. Nunca mais soube do casal que me roubou de meus pais. Nunca entendi qual foi a intenção deles.

Às vezes, fico pensando qual teria sido a causa maior da demora do meu regresso. Em dado momento de minha vida, ganhei autonomia, podia ir e vir. Acho que a coragem me faltou. Um temor me perseguia. Será que a cidade Flor de Mim ainda existia? Será que os meus ainda existiam? Será que, se eu chegasse por lá, eles ainda me reconheceriam como sendo uma pessoa da família? O tempo passando e Flor de Mim parecendo murchar em meus desejos.

Namorei, casei, descasei algumas vezes. Filhos nunca tive, evitei e, as vezes em que engravidei, não deixei chegar ao término. Não queria ter família, tinha medo de perder os meus. Muitas águas rolaram e, de muitas, nem a misteriosa nascente eu conhecia. Nunca entendi, por exemplo, como recebi, um dia, o meu registro de nascimento. Tudo certo, constavam os nomes de meus pais. O documento chegou a mando da tal tia, parente do casal, que me roubou de minha família. Tive a impressão de que eu era vigiada, pois tudo se deu muito tempo depois de eu ter deixado a casa dessa senhora. E, apesar de me sentir, o tempo todo, me movendo sobre um rio de desconhecidas e perigosas águas, continuei nadando, para continuar vivendo. De vez em quando, eu mudava de cidade também. A minha escolha por nova moradia obedecia a um roteiro previamente escolhido. Sempre a procura estava direcionada para as bandas de minha terra natal. Aos poucos, eu ia cumprindo um percurso que me encaminhava à direção de volta. Um dia, aconteceu um fato que provocou um retorno a mim mesma, 35 anos depois. Foi então que voltei para minha cidade, Flor de Mim, e aqui estou há 20 anos. Veja, moça, como isso se deu:

Na época em que o reencontro aconteceu, eu andava lamentando as desgraças da vida. A lembrança do dia em que fui roubada voltava incessantemente. Às vezes, com todos os detalhes, ora grosseiramente modificada. Na versão modificada, eu-menina era jogada no porão de um navio pelo casal que tinha me roubado de casa. Além do constante retorno a essa dor, eu estava vivendo o final do meu segundo casamento. Só um motivo me mantinha viva: os meus estudos. Estava concluindo o 2° grau e me preparando para seguir adiante, apesar do desânimo que me acometia algumas vezes. E foi na ambiência dos estudos que surgiu minha salvação a partir de um ciclo de palestras sobre “Crianças desaparecidas”. Quando soube do evento que ia acontecer, adoeci, perdendo os primeiros dias da jornada. Só no último dia consegui levantar da cama, mesmo assim, tomada por uma sensação de desfalecimento e febre. Uma força maior me comandava, entretanto. A força do desejo dos perdidos em busca do caminho de casa. Fui para escutar, eu não sabia nem dizer da minha perda. Nunca tinha relatado minha história para ninguém. Inventava sempre uma história sobre as minhas origens. Uma espécie de vergonha me consumia. Vergonha e culpa por ter me apartado dos meus. Nesse dia, cheguei ao local da palestra, no momento em que algumas pessoas começaram a contar casos de desaparecimentos, sequestros, sumiços e fugas de crianças. Mais angustiada fui ficando com tudo que ouvia. Parecia que estavam contando a minha história, em cada acontecimento da vida de outras pessoas. Eu não estava suportando mais, o ar me faltava, tinha a sensação de que ia morrer. Foi então que resolvi sair da sala, mas, quando levantei, ouvi uma voz que me pareceu familiar. De chofre, reconheci. Era o tom da voz de minha mãe, a síntese de todos os sons de uma curta infância junto aos meus. Ri da minha perturbação. O que estaria a minha mãe fazendo ali no colégio? Mais resoluta fiquei na minha determinação de sair. Precisava ir embora. Eu estava fazendo uma brincadeira de mau gosto comigo mesma? E me pus de pé. Lá na frente, o corpo que imitava a voz de minha mãe acintosamente contava uma história acontecida na família dela. A história de uma irmã que ela nem conhecera, pois tinha sido roubada ainda menina e nunca mais a família soubera qualquer notícia. Não consegui sair e, entretanto, não fiquei. Não me assentei também, apesar dos pedidos. Depois, eu soube que soavam à minha volta. Fui ajuntando os pedaços do relato que eu pude escutar, em meio a uma profunda tontura. Porém, não era o relato de minha irmã que havia nascido depois de minha partida forçada que eu ouvia. Não era a fala dela que me prendia. E sim o jipe. Lá estava o jipe ganhando distância, distância, distância... Lá estava o meu irmão chorando no meio da estrada e eu indo, indo, indo... Quando acordei do desmaio, a moça do relato segurava a minha mão. Não foi preciso dizer mais nada. A nossa voz irmanada no sofrimento e no real parentesco falou por nós. Reconhecemo-nos. Eu não era mais a desaparecida. E Flor de Mim estava em mim, apesar de tudo. Sobrevivemos, eu e os meus. Desde sempre.

(In: Insubmissas lágrimas de mulheres, p. 38-47).