Prefácio de A palavra em preto e branco

Franciane Conceição da Silva*

 
Desde criança, sou apaixonada pelas palavras. Quando gosto de um vocábulo o repito várias vezes, gosto de ouvir o seu som, sentir o seu ritmo. Fico imaginando, muitas vezes, a palavra em movimento. Penso se o significado combina com o significante. Tenho preferências por alguns vocábulos, tais como, afeto, alumbramento, gargalhada, poesia... Acredito que poesia seja a minha palavra preferida. Gosto de ler, ouvir, ver, sentir, viver a poesia. O meu encantamento primeiro pela poesia aconteceu quando eu tinha uns quatro ou cinco anos de idade, período em que morei numa fazenda com nome de cobra: Fazenda Cascavel. Nessa época, meu pai, Ramiro, costumava ir todos os domingos à feira da cidade vizinha. Quando ia para a feira, ele levava o dinheiro contado para comprar os alimentos necessários à nossa subsistência. Porém, toda vez que sobrava uns trocados, meu pai aproveitava para comprar um livro de Literatura de Cordel.

Quando via o livrinho, eu me preparava para o ritual que tanto me embevecia: primeiro, acompanhava a leitura do livro feita pelo meu pai. Ele lia em voz alta, com a sua voz grave e imponente de homem da roça. Eu ouvia encantada, encostada em um canto, a história lida. Meu pai, absorvido pela leitura, quase nunca se atentava da minha presença. E eu não queria mesmo me fazer notar para não quebrar o encanto. Depois da leitura paterna, era o momento da minha mãe, Luciene, ler o livro. Não necessariamente no mesmo dia, mas era sempre assim: primeiro o meu pai lia, depois a minha mãe. Eu, menina curiosa e inebriada pelas palavras, acompanhava ainda mais encantada a leitura feita por minha mãe. Ela lia com uma voz doce e mansa. Lia com expressividade e ritmo. Era uma atriz “performando” para a sua única espectadora, que a olhava com olhos cheios de alumbramento. Acredito que o meu encanto pelas palavras, meu amor pela literatura e, mais tarde, a decisão de fazer o curso de Letras, em alguma medida, foram influenciadas por essa fascinação que os versos de cordel, ainda na minha meninice, provocaram em mim.

Esse alumbramento, que a poesia de cordel me provocou, veio à tona, mais uma vez, quando li a obra A palavra em preto e branco, cuidadosamente lapidada pela talentosa poetisa Lílian Paula Serra e Deus. Nesses versos em preto e branco, moldados com destreza pela autora iniciante, há um pacto com a verdade, um chamado ao cultivo dos bons sentimentos e pela preservação das coisas bonitas. As palavras de Lílian Paula ecoam pela construção de um mundo melhor. Nesse mundo, que a autora nos convida a construir, não é permitido fazer a indigesta dieta de engolir sapos. A fim de se derrotar a hipocrisia é preciso dizer a verdade, por mais dolorosa que ela seja. Em um mundo em que a verdade prevalece, não é preciso escolher entre um lado ou outro do rio. E quando nos vimos divididos entre dois caminhos, eis que surge uma terceira via: a poesia.

Entre Deus e o Diabo, Rosa.
Entre Eva e Darwin, o mundo.
Entre pedra e caminho, Drummond.
Entre profano e sagrado, Adélia.
Entre texto e teoria, poesia.

O fazer literário de Lílian Paula Serra e Deus está contaminado pela prosa e poesia de escritores/as brasileiros/as, que vão sendo referenciados em um verso aqui, outra acolá. Nos poemas de A palavra em preto e branco, junto à voz de Lílian Paula, ouvimos o eco de muitas outras vozes: Guimarães Rosa, Adélia Prado, Mário de Andrade, Paulo Leminski, Elisa Lucinda. Nos versos dessa jovem escritora mineira há uma dose de Quintana, talvez um Manoel de Barros, ou, quem sabe, um Manuel Bandeira. Entre essas tantas vozes, uma ressoa: Carlos Drummond de Andrade. No poema “Lírio”, percebemos essa influência de Drummond na produção da poetisa:

Quando nasci, um pai, desses que profetizam o destino dos filhos, disse:
– Vai, Lílian! ser lírio na vida.
Certidão de batismo, registrada em cartório:
– Vai, Lílian, ser lírio na vida! 

Não sei se bom ou ruim,
Não sei se pétalas demais ou de menos,
O que sei é que quem nasce com vocação para lírio, não tem
espinhos para se defender do veneno que se esconde atrás do
perfume de alguma outra flor.

A relação amorosa e todos os conflitos que a envolvem é um tema recorrente nos poemas de A palavra em preto e branco. No poema “Amor de Silicone”, o eu lírico feminino deseja ser a única mulher na vida de “seu homem”. Os olhos de seu companheiro se desviam para outros corpos, outros lábios, outros seios. A voz poética sente-se desprezada. Sente-se como um “copo descartável quando o sonho era de, no mínimo, ser taça de cristal”. Se em “Amor de Silicone”, o eu lírico feminino é representado como uma mulher frágil, insegura, dependente, em muitos outros poemas do livro, a voz poética é de uma mulher transgressora, insubmissa, uma mulher que se recusa a seguir as imposições do patriarcado e as normas determinadas pelo status quo. Podemos ouvir essa voz insubmissa do sujeito poético feminino nos versos de “Carteira assinada”:

          Meu lugar nunca foi esse.

Prefiro comigo-ninguém-pode às rosas, que
pra mim cheiram vermelho demais.

Nasci pra dormir quando os olhos fecharem.

Sentir quando a fome vier.
[...]
Me deixe cuspir. 

Cuspir nessa vida metrificada que
mensalmente insiste em me engaiolar. 

Suma com seus relógios porque eu não nasci para ponteiros.
Afaste de mim essa vida carteira assinada.
Porque hoje eu decido o quão livres os meus
versos devem ser.

Lílian revela em seus poemas as muitas facetas do feminino. Em seus versos, ela representa mulheres que não aceitam amarras, buscando viver livremente. Representa mulheres que não querem se casar e/ou ser mãe e também mulheres que querem o casamento e a maternidade, desde que isso seja uma escolha, não uma imposição. A maternidade é um tema recorrente nesses versos em Preto e Branco. O sujeito lírico feminino diz da alegria de ser mãe, da beleza que é poder gerar um filho, dos aprendizados que surgem com a maternidade. Ao mesmo tempo, a voz poética fala dos desafios e cansaços que vêm com a maternidade:

Eu estou cansada do trabalho que é ser mulher,
cansada do trabalho eterno do parto, 
cansada da mãe que não mais adormece em mim.
[...]
Se tivesse outra chance pra escolher entre
o gloss e o barbeador...
Eu ficaria com o batom vermelho.
Eu rezaria para os anjos.
Eu dormiria bem tarde, nos braços do pai,

pra despertar no outro dia e descobrir que
toda mãe já acorda, com a benção dos anjos,
cansada demais.

Ainda tratando da temática da maternidade, podemos destacar o poema “Mãe”. Nesse texto, a figura materna é representada como uma presença-ausente, ou seja, mesmo que a mãe não esteja presente em um plano físico, o eu lírico exalta a figura materna, dizendo do privilégio de ter sido fruto de um abençoado ventre: “Bendita sou eu entre as mulheres/ Por ter sido um fruto do vosso ventre/Amém”.

Se nos versos de Lílian Paula Serra e Deus, a figura materna é representada como uma presença-ausente, Deus, pai celestial, é onipresente, sendo referenciado em vários de seus poemas. O Deus ao qual o eu lírico se refere, em algumas circunstâncias, é tão humano quanto nós. Esse Deus nos faz lembrar o “Poema do Menino Jesus”, de Fernando Pessoa. O Menino Jesus, do poeta português, “é uma criança bonita, de riso natural. Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças d’água, colhe as flores, gosta delas, esquece”. O Deus do eu lírico de A palavra em preto e branco é negro e “come brigadeiros”.

Os poemas de Lílian Paula Serra e Deus nos fazem repensar sobre a nossa existência. A palavra em preto e branco nos faz refletir sobre as nossas fraquezas enquanto seres humanos. Convida-nos a pensar sobre o quanto somos egoístas e medíocres, o quanto tornamo-nos cegos diante das dores do/a outro/a:

– Sabe filho, a gente já explodiu o mundo duas vezes,
duas explosões mundiais: de um lado o poder, do outro a ignorância.
– E quem ganhou mamãe?
– A ignorância.
– Tsunâme é uma onda gigante que engole gente igual o lobo faz, mamãe?
– É sim.
– Então por que você diz que o lobo não é mau?
– Porque lobo não devora lobo, meu filho.

Em seus poemas, Lílian rasga o verbo e abusa dos predicados. Ela escreve palavras negras em papel branco, mas não acredita em hierarquias de branco sobre negro ou vice-versa. Ela crê em um futuro em que não precisaremos escolher entre o preto ou o branco, em que ler um livro escrito por uma mulher negra será prática rotineira. Um futuro em que indivíduos pretos e brancos sejam valorizados pelo que são e não de acordo com a quantidade de melanina que possuem na pele. “Quem sabe um dia o discurso em cores / e não mais em preto ou branco?” Os desejos de Lílian, representados em seus poemas, podem parecer utópicos demais. Mas o que seria dessa vida sem utopia?

Os poemas desse livro promoveram um reencontro comigo mesma: reencontrei a menina de minha infância, que seduzida pela literatura de cordel, aprendeu a ler sozinha, apenas para poder desfrutar daquelas histórias que tanto a seduziam. Espero que os leitores e leitoras de A palavra em preto e branco possam ser tomados/as pelo mesmo alumbramento que esses poemas provocaram em mim.

A poesia de Lílian Paula Serra e Deus surge, assim, como uma possibilidade de escape, como um oásis em meio ao deserto, a tranquilidade que se busca em meio ao tumulto da vida moderna. Lílian Paula busca, através das palavras, construir pontes que se elevam bem acima da “Superfície do Caos”, abrindo estradas e iluminando caminhos.

Depois de ser iluminada por essas palavras em preto e branco, deixo aqui um singelo convite: devorem os poemas desse livro que já nasce grande. Saboreiem cada verso e, quem sabe, a gente possa aprender: “Pra onde vai o ser humano? /Quantos já venderam a alma ao dinheiro? /E quem vai pagar pelas almas que não querem se afogar?”. Mergulhem nos versos e reversos de A palavra em preto e branco. Mergulhem sem medo. Apreciem sem moderação.

Referência

DEUS, Lílian Paula Serra e. A palavra em preto e branco. Vitória: Clock-book, 2017.

* Franciane Conceição da Silva é Mestre em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa – UFV, Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. É organizadora do livro Literaturas africanas: narrativas, identidades, diásporas (2016).

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