HISTÓRICO
A companhia Espaço Preto é fundada em março de 2014, quando o ator e iluminador Preto Amparo convidou atores e artistas negros, estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais para participarem da criação de um espetáculo, investigando as linguagens e expressões cênicas do Teatro Negro e da Arte Marginal, como resultado do seu Trabalho de Conclusão de Curso. A cia. se articula em uma conjuntura acadêmica de sistemática negação e desqualificação das artes cênicas negras na estruturação pedagógico-curricular do curso em Teatro da UFMG, desafiando os referenciais epistemológicos hegemônicos, eurocêntricos e historicamente dominantes.
O primeiro espetáculo, Primeiramente Negra, com temporada única no Teatro Espanca1, foi o resultado de pesquisas e referências advindas das mais variadas produções negras: escritoras, sons, movimentos e imagens que alimentaram as reflexões. Além disso, o trabalho trazia as vivências de seus integrantes relacionadas à raça, que tanto os aproximava não só com o que acontecia dentro do espaço acadêmico, mas também fora dele. O espetáculo adotava a intermidialidade como uma de suas articulações poéticas. Em sua configuração espetacular, a conjunção de filmagens, projeções e profusa trilha sonora construía um espaço cênico multifacetado, permeado por situações fragmentadas e alimentado por memórias (coletivas e pessoais) do elenco. O espetáculo possuía uma dramaturgia fragmentada, micro cenas são postas uma em sequência da outra criando assim o todo, mas cada uma com sua autonomia e seu próprio desdobramento. Essa forma de criar cerca a maior parte dos trabalhos do grupo, talvez por ser composto por muitos artistas.
No ano de 2015, após aprovação em convocatória para a primeira temporada da Mostra in Minas2, foi realizado no Teatro João Ceschiatti, o segundo trabalho do grupo: O grito do Outro – O grito meu. A primeira versão do espetáculo trazia diversas referências, algumas nem tão firmes que aos poucos foram realocadas. Mesmo após esta apresentação um incômodo permeava a todos com relação ao arremate do trabalho este foi sendo lapidado até chegarmos a sua reestreia, em 2016, na Mostra Benjamin. Nesse momento, o grupo avança ainda mais na pesquisa das artes marginais, aprofundando o estudo corporal com o Hip Hop e RAP, trazidos pela atriz e preparadora corporal Elisa Nunes, entendendo a individualidade do movimento de cada um no jogo cênico. A musicalidade presente nessa criação traz a pluralidade de sons e ritmos negros, com referências musicais religiosas de matriz africana, o samba, funk. A escrita dramatúrgica feita pelos atores trazem as subjetividades desses corpos em discurso, Marcos Antônio Alexandre acrescenta em seu livro O teatro Negro em Perspectiva: Dramaturgia e cena negra no Brasil e Cuba (2017), que o grupo traz um “discurso incisivo e de cunho altamente político”, o que seria uma marca do grupo. Ademais, neste espetáculo a Cia. aprofunda seu processo colaborativo, em que os atores são cocriadores dos diversos elementos dramatúrgicos e cênicos. A interpenetração entre variadas sonoridades, ritmos e pulsações musicais potencializam situações/cenas sociais marcadas pelas afetações contemporaneamente urbanas, nas quais a justaposição de personas, temporalidades e atmosferas pluralizam os discursos do espetáculo.
Indo além da Universidade e do espaço central, no ano de 2015 e 2016, a Cia Espaço Preto fechou uma parceria no Centro Cultural de Venda Nova3, localizado na região norte de Belo Horizonte. Essa ocupação possibilitou uma troca direta com a comunidade o que reverberou no processo de criação da cena curta Mãe da Rua. Trazendo jogos e brincadeiras em sua condução dramatúrgica, também foram utilizadas letras de RAP como referenciais que traziam tensões diárias vividas entre as mães e seus filhos nas localidades de periferia. Nessa cena curta a Cia. focaliza suas lentes cênicas para o genocídio da juventude negra, a violência urbana institucionalizada e as privações sociais que crianças e adolescentes vivem, em uma conjuntura política que os marginaliza sistematicamente. A textualidade cênica incorpora jogos e brincadeiras tradicionais para erigir um discurso ambíguo, irônico polissêmico, a partir do qual são discutidas as infâncias assassinadas e a expectativa de vida constantemente ameaçada. Os signos, nesta estrutura teatral, se confundem e revelam a sua dupla face semântica: ludicidade e violência, brincadeira e morticínio, jogos infantis e guerras sociais.
No ano de 2017, a Cia. ocupa a casa do Cachoeirinha, espaço em que vários artistas e grupos negros de Belo Horizonte usaram para ensaios de diversas artes. A criação da Cena curta “Ama” e que posteriormente se configurou como espetáculo, se deu em sua maior parte de construção nesse espaço. Ama é uma adaptação do texto Além do Rio (escrito em 1957 o texto resgata Medea, na peça Jinga mulher negra se encanta por um homem branco), de Agostinho Olavo. A adaptação do grupo faz um paralelo com as relações atuais dentro dos morros e favelas “pacificados” do país, trazendo noticiários das mídias, memórias e relatos das mães que perderam seus filhos no genocídio, e ressalta um ponto interessante que permeia as montagens do grupo: a figura feminina. O espetáculo Ama apresenta as Jingas contemporâneas e discute o mítico arquétipo de “Medea” no contexto periférico/urbano, considerando o contexto social-cultural-econômico-étnico a fim de denunciar, na encruzilhada Jinga/Medéa a arraigada “Ideologia do Branqueamento”, que determina os padrões não negros como referência para os modelos de beleza estética e de comportamento. A preparação corporal dos atores nesse trabalho se deu a partir da musicalidade, rítmica e movimento do pagode e samba, com condução da Elisa Nunes.
Para além da predominância feminina na companhia existe uma predominância da figura feminina nas montagens. Primeiramente Negra traz em sua construção a afirmação da força criadora de tudo, a força materna. O grito do Outro – O grito meu retoma alguns textos utilizados no espetáculo anterior e traz na sua amarração a construção de cenas cotidianas de machismo e exotificação desse corpo feminino negro. Mãe da Rua, por sua vez, desde o nome diz do seu recorte, o jogo com as palavras (a brincadeira mãe da rua e a figura de uma mãe) com a figura materna é forte e latente na construção da identidade negra. AMA inspira-se nas mães, avós e figuras tão comuns na vida dos atores. Tal característica confere uma linguagem bem particular às criações e uma unicidade a elas, como se cada criação fosse um membro de um grande corpo. Ainda que Ama seja a única criação do grupo com dramaturgia linear (o que é esperado tratando-se de uma adaptação de um texto linear), a forma com que a encenação é construída mantém a identidade do grupo e suas particularidades.
Os trabalhos cênicos da Cia Espaço Preto ocuparam espaços com temporadas nos teatros Francisco Nunes e Teatro Marília, além de participar de eventos importantes para a cidade de belo horizonte, assim como a Segunda Preta (2017); FIT – Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte (2018); Festival de Curitiba, no âmbito da Mostra Feijão Tropeiro (2019); Cenas Curtas do Galpão Cine Horto (2016 e 2017); dentre outros. Além disso, a dramaturgia do espetáculo O grito do Outro – O grito meu foi publicada pela Editora Javali no livro Teatro Negro (2018), além de uma análise dramatúrgica no livro feita pelo escritor e parceiro Marcos Alexandre em seu livro O teatro Negro em Perspectiva: Dramaturgia e cena negra no Brasil e Cuba (2017) editado pela editora Malê. Além disso, no segundo semestre de 2018, a Cia. foi indicada Prêmio Miguel Arcanjo como melhor grupo teatral.
A companhia Espaço Preto foi o primeiro grupo de Teatro Negro criado na Universidade Federal de Minas Gerais, e isso evidencia a importância do grupo não só como produtores de Arte Negra, mas, ainda, como pesquisadores e educadores das artes. Tal fato afigura-se profundamente relevante, pois a produção acadêmica de seus membros incorpora a vivência artística, a prática coletiva, as artes cênicas negras, bem como as discussões étnico-raciais como objetos de análise e reinterpretação histórica das lacunas presentes nos cursos de graduação em arte, na UFMG. Estes artistas-pesquisadores, continuando suas investigações e reflexões, adensam os processos criativos da própria cia. e se espraiam pela cidade de Belo Horizonte, ao atuarem em diversos espaços e projetos dedicados a arte negra.
Crédito da foto: Jenfs Martins.
Referências
ALEXANDRE, Marcos Antônio. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
AMPARO, Pedro Guilherme Silva. Arte Marginal em cena: A experiência da Cia Espaço Preto na construção de uma dramaturgia negra. 18f, Artigo – Escola de Belas Artes, Curso de Graduação em Teatro, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
BENEVENUTO, Assis; Souza Vinicius; ALEXANDRE, Marcos (org.). Teatro Negro. Belo Horizonte: Editora Javali, 2018.
MONTEIRO, Elisa Nunes. Ruído em Movimento: A trajetória de uma educadora negra no curso de Dança – Licenciatura. Monografia (Licenciatura em Dança), UFMG, 2018.
NASCIMENTO, Anderson Ferreira do. O teatro negro proposto pela Cia. Espaço Preto ou a formação de um ator–pesquisador–docente negro. Revista DAPesquisa, Santa Catarina, v.13, n. 20. 2018.
ESPETÁCULOS / FICHAS TÉCNICAS
Primeiramente Negra: Concepção: Espaço Preto // Elenco: Ana Martins, Anair Patrícia, Anderson Ferreira, Andréa Rodrigues, Guilherme Diniz, Lúnia Martins, Michele Bernardino, Pedro Amparo, Rainy Campos e Sitaram Custodio // Direção: Pedro Amparo // Dramaturgia: Arthur “Arock” Diniz e Pedro Amparo // Cenografia: Coletivo Oré // Figurino: Guilherme Pires // Iluminação: Cesar Frank e Pedro Amparo // Técnico de luz: Cesar Frank // Técnico Multimídia: Marcelo Padovani // Arte gráfica: Bruno Pirata e Coletivo Oré
O grito do Outro - O grito meu: Concepção e direção: Cia. Espaço Preto // Orientação dramatúrgica: Marcos Alexandre // Elenco: Ana Martins, Anair Patrícia, Anderson Ferreira, Andréa Rodrigues, Elisa Nunes, Guilherme Diniz, Michele Bernardino, Rainy Campos, Sitaram Custódio e Will Soares // Preparação Vocal: Rainy Campos // Preparação Corporal: Elisa Nunes // Cenário e Figurino: Anderson Ferreira // Iluminação: Pedro Amparo // Trilha: “Tambor funk” – GA Barulhista, Will Soares “Tu tá com fome”.
AMA: Realização: Espaço Preto // Atuação, figurino e cenário: Anair Patrícia e Anderson Ferreira // Dramaturgia: Anair Patrícia, Anderson Ferreira e Andréa Rodrigues // Direção: Anair Patrícia, Anderson Ferreira e Sinara Teles // Preparação Corporal: Elisa Nunes // Iluminação: Andréa Rodrigues.
Mãe da Rua: Concepção e Direção: Cia Espaço Preto // Atuação: Anderson Ferreira, Andréa Rodrigues, Guilherme Diniz e Michele Bernardino // Trilha original: M.A CLÃ. Figurino: Anderson Ferreira // Dramaturgia: Anderson Ferreira, Andréa Rodrigues, Guilherme Diniz e Michele Bernardino.
CONTATO
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Notas
[1] O Teatro Espanca! está localizado no hipercentro de Belo Horizonte, a baixo do viaduto Santa Tereza. É um espaço ocupado por diversas ações artísticas e culturais, além das atividades feitas pelo grupo.
[2] Mostra InMinas acontece a partir da união de grupos e artista que têm como objetivo de buscar espaços e unir forças para as produções artísticas de Minas Gerais.
[3] Centro Cultural de Venda Nova foi inaugurado em agosto de 2007. Localizado na região norte de Belo Horizonte, é um espaço de fomentação a cultura e cidadania e que estimula iniciativas de interação de grupos de região e outras localidades para apresentarem seus trabalhos.