Poemas de recordação e outros movimentos

Aline Alves Arruda*

Escrevo esta resenha enquanto uma ocupação cultural em São Paulo acontece em um importante instituto tendo como tema Conceição Evaristo. Além disso, as notícias de que a escritora irá à Feira literária de Paraty propagam-se pela minha timeline do facebook. Isso revela o quanto a escritora está em alta, apenas contando alguns dos atuais e últimos dos seus “feitos”. Conceição é hoje uma das escritoras mais importantes para a literatura brasileira. Seus recentes prêmios são prova disso. O Jabuti para Olhos d’água é um deles. É mais que merecido então que sua obra seja reeditada e que novos livros sejam lançados. A editora Malê percebeu essa importância e tem investido nesse belo trabalho. Poemas da recordação e outros movimentos, antes, em 2008, lançado pela Nandyala, é agora reeditado pela editora carioca. Além dele, também Becos da memória, Ponciá Vicêncio e Insubmissas lágrimas de mulheres.

A começar pela nova capa, as novidades da edição deste ano são muito boas. A imagem da lavadeira trabalhando, em preto e branco, é marcante pela alusão ao ofício que remete à memória negra feminina brasileira e particularmente familiar de Conceição, que já nos narrou isso em entrevistas e textos ficcionais com traços reais. O mar tão azul ao fundo nos remete aos movimentos da memória negra ancestral, ao balanço das ondas que trouxeram os navios, insígnias da diáspora negra brasileira.

A nova edição traz 21 poemas a mais que a anterior e investe numa organização muito interessante, dividida em temas que são iniciados, no livro, por trechos em prosa da autora. Assim, os 65 poemas aparecem em 6 blocos que se iniciam com essas espécies de epígrafes, passagens que carregam o lirismo de Evaristo. O primeiro texto, por exemplo, que remete à capa, recupera a cena da mãe lavando roupa sob o sol. Poeticamente, o trecho alude às recordações da infância, “gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento” (p. 10). E seguem-se textos em verso sobre memória da infância.

Outro bloco de poemas é precedido pelo trabalho com o feminino, tema intrínseco à obra de Conceição, pela imagem da mulher, que, a despeito de permear todo o livro, nestes textos especificamente, grita “a sensação de cada mulher comporta em si a calma e o desespero” (p. 21). É nesta parte que estão os conhecidos poemas “Eu-mulher” e “Vozes-mulheres”, ambos publicados pela primeira vez na coletânea Cadernos Negros e presentes em análises diversas em trabalhos acadêmicos neste país e fora dele.

Dos poemas inéditos em livro impresso (alguns foram publicados anteriormente on-line) presentes nesta edição, chamam a atenção os que fazem intertexto com Clarice Lispector e sua obra. Conceição Evaristo já havia escrito um conto, “Macabéa, Flor de mulungu”, em que dialogava com o romance A hora da estrela e sua protagonista, Macabéa. Nos textos de Poemas da recordação..., esse diálogo aparece novamente em “Carolina na hora da estrela”, “Clarice no quarto de despejo”, dois dos poemas situados no penúltimo bloco. Neles, a autora nos coloca diante de Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector, revisitando duas escritoras contemporâneas e tão diferentes em suas singularidades biográficas e literárias. Uma perpassa a outra em cada poema a elas dedicados, como nos trechos:

“No meio da noite
Carolina corta a hora da estrela.
Nos laços de sua família um nó
- a fome.

[...]

E lá se vai Carolina
com os olhos fundos
macabeando todas as dores do mundo...” (p. 96)
 

“No meio do dia
Clarice entreabre o quarto de despejo

[...]

A fome nem em pedaços
alimenta a escrita clariceana”. (p. 97-98).

A escrita incisiva de Conceição também não fica de fora nos poemas que foram acrescentados a essa edição. A violência, característica comum aos textos da escritora, também aparece em vários poemas, como em “A menina e a pipa-borboleta”, que retrata poeticamente o duro tema do estupro e do aborto:

A menina da pipa
ganha a bola da vez
e quando a sua íntima
pele, macia seda, brincava
no céu descoberto da rua,
um barbante áspero,
másculo certol, cruel
rompeu a tênue linha
da pipa-borboleta da menina.

[...]

E depois, sempre dilacerada,
a menina expulsou de si
uma boneca ensanguentada
que afundou num banheiro
público qualquer (p. 51).

Assim, o rosário de “contas negras e mágicas” de Conceição Evaristo é desfiado, portanto, nos versos revivificados por esta edição 2017 de Poemas da recordação e outros movimentos. Somos brindados pelos textos inéditos que se juntam aos poemas clássicos da autora que vêm construir uma obra já consolidada e cada vez mais reconhecida e sentida, à altura do que a literatura afro-brasileira merece.

 

Referência

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.


* Aline Alves Arruda é Doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela UFMG e Mestre em Teoria da Literatura pela mesma Instituição. É Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, Campus Betim. Participa do Grupo de Pesquisa Letras de Minas. É coautora de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (Pallas, 2014). 

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