Terra fecunda, negra literatura 

Luiz Henrique Silva de Oliveira*

Terra: camada superficial do globo onde nasce a vida; pedaço de chão ao qual o ser humano costuma chamar de seu; país, região, local de afeto e identidade; corpo carregado de história, memória e experiência; mundo de palavras. Serendipidade.

Negra: palavra associada à cor e a pessoas; coloração da terra fértil e de corpos múltiplos; identidade de um coletivo populacional diverso e oriundo de África; essência e afeto, herança e partilha; tonalidade específica de uma escrevivência individual e coletiva; mundo de palavras. Sororidade.

Não. Não é usual escrever uma resenha ateando ao vento palavras e significados colhidos em impressões de leitura. Mas também me parece pouco seguir a lógica bem comportada da resenha crítica para tentar rascunhar algumas linhas sobre o último livro de Cristiane Sobral, Terra negra, publicado no ano de 2017 pela editora Malê, do Rio de Janeiro. E há uma razão para isso: os poemas, desde suas primeiras páginas, apontam para a inquietação, cujo resultado só poderia ser um livro maduro, forte, decisivo no conjunto da obra da escritora, talvez porque seja o mais diverso entre os anteriores na abordagem da experiência humana. Isso sem, contudo, esquecer as particularidades e experiências que singularizam Sobral nesta terra sem fim e de palavras, que é a própria literatura.

O tom incisivo (panfletário para os amantes de poesia cor-de-rosa) divide espaço com a doçura, a compreensão, o amor, a indignação, a raiva, o desejo de justiça. É que os poemas são compostos pela dura matéria existencial da autora e de seu coletivo. Aliás, ela faz questão de colocar-se em posição de irmandade em relação aos seus e às suas. Falar de si é falar de malungos/brothers cuja trajetória aponta para a da personagem e seus antepassados. Falar de si é falar de sistas e suas legítimas demandas e especificidades.

A maternidade, em sentido amplo, ou seja, a capacidade de gerar, é um tema bastante explorado no livro, talvez convocando a vocação da própria terra: “mãe era feminista sim/ cuidava dos próprios filhos/ dos filhos dos vizinhos/ mãe cuidava das noras/ praticava sororidade” (p. 22). A amplitude do cuidado materno salienta o local de enunciação e a identidade de gênero como marcas políticas da estética de Sobral. A mãe, matriarca, referência na comunidade, dialoga com a centralidade do feminino em diversas comunidades africanas e com o papel de inúmeras mulheres que são em essência arrimos de família no Brasil.

Mas há também a afirmação do gostar-se negro em oposição ao racismo velado ou aparente do nosso cotidiano. Soma-se ao racismo o preconceito de gênero, o qual fabrica diuturnamente “belas, recatadas e do lar”, epíteto, aliás, refutado pelo eu-lírico: “resolvi rasgar a folha branca onde escrevi /minha vida/ pintei o meu mundo de preta assumida/ e comecei a pretar” (p. 72). Resultado desta postura, a voz poética assume seus desejos mais legítimos: “amanhã, estaremos vivas/ com as unhas pintadas de vermelho/ os lábios beijando nossos pretos em praça pública/com prazer [...]/ que reine a resiliência [...]/mulheres inteiras que sabem gozar/sabem gostar da vida” (p. 73).

O combate ao racismo e ao machismo são outros dois importantes motes desta terra escura, fecunda de versos, que Cristiane Sobral nos oferece. “Macho egocêntrico e boçal/ não samba na minha pista/ preto machista/ não canta de galo no meu quintal” (p. 41).

Assim,Terra negra, nos deixa o gosto “do beijo na boca/bom, bom, bombom” (p. 33). Cristiane Sobral, não tenha dúvida, só dádiva: no nosso céu, também vemos “estrelas na boca” (p. 33). A terra é ampla; a escrevivência, negra. Há muito, a autora não lava mais os pratos. “Dama da noite” (p. 36), a poesia de Sobral lava, isso sim, a nossa alma.

 Belo Horizonte, 2 de dezembro de 2017.

 

Referência

 SOBRAL, Cristiane. Terra negra. Rio de Janeiro: Malê, 2017. 106 p.

* Luiz Henrique Silva de Oliveira é doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG e professor do CEFET-MG. Autor de Poéticas negras: representação do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984) (2014). No momento, pesquisa as relações entre edição e afrodescendência.