A consciência da negritude
Maria do Rosário Alves Pereira*
A produção literária de Adão Ventura pode ser dividida em três fases. Em 1971, publicou seu primeiro livro, Abrir-se de um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Essa primeira etapa de sua obra trabalha mais o plano do significante, apresentando um refinamento linguístico e poético que por vezes chega ao hermetismo.
De 1978 a 1981, há uma certa abertura na poesia de Adão, o que poderia configurar uma segunda fase em sua obra. Seus livros principais nessa etapa são Jequitinhonha (poemas do vale), de 1980, e A cor da pele, publicado no mesmo ano. O primeiro é marcado pelo resgate da cultura mineira em uma tentativa de valorização dos elementos populares. Já o segundo configura a construção de uma poesia negra que foge à folclorização e a um apelo cultural vigente no imaginário coletivo, marcado por estereótipos; é a busca de uma identidade não mais construída sob uma perspectiva do branco, mas, ao contrário, é o ponto de vista interno de quem conhece e vivencia os estigmas da pele e contra eles se rebela. A linguagem caracteriza-se pelo abandono do excesso de metáforas dos primeiros textos e busca uma comunicação mais fácil e direta com o leitor. Um livro que, de uma certa forma, complementa o sentido de A cor da pele, publicado em 1992, é Texturaafro. Nessa obra, a temática predominante ainda é o negro e a questão identitária que perpassa o volume anterior.
A terceira fase, marcada pela publicação de Litanias de cão (2002), procura trabalhar uma perspectiva política e social referente não apenas ao negro, mas à problemática social brasileira num sentido mais amplo.
A cor da pele é composto por três partes que se complementam e que podem ser lidas separadamente ou em conjunto, como um grande poema narrativo. No livro 1, Das biografias, o título já assinala para um caráter pessoal que aparecerá nos poemas, porém pode assinalar também para uma “biografia geral do negro”, pois a condição da negritude que permeia o eu enunciador desses textos pode ser aplicada não apenas a um único indivíduo (a voz central do texto ou mesmo o autor), mas a todo um grupo social localizado no mesmo contexto sócio histórico-cultural. O primeiro poema já exemplifica isso:
Um
em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes amarraram-me ao tronco
de uma nova África.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis.
(A cor da pele).
O eu-lírico que se anuncia em primeira pessoa almeja uma ruptura com os valores brancos em busca de uma nova ordem simbólica. As correntes e muros que aparecem no texto são signos emblemáticos do aprisionamento: remetem à submissão e ao preconceito histórico vivenciado pelos negros. É esse preconceito que os amarra a um destino fatalista, impedindo-os de serem considerados cidadãos.
Em outros poemas, como “Eu, pássaro-preto”, o termo preto, tradicionalmente concebido com uma carga negativa, assume uma nova significação, pois passa a ser significar motivo de orgulho, manifestação de foca e resistência:
eu,
pássaro preto,
cicatrizo queimaduras de ferro em brasa,
fecho corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.
(A cor da pele).
Pássaro preto remete a ave que ficava no alto das palmeiras à porta dos quilombos e avisava sobre a aproximação de alguém estranho, mas remete também à metáfora do negro em busca de sua liberdade. O signo é ressignificado, pois o território cultural a que ele pertence não é o mesmo território do branco, no qual assume uma carga semântica negativa. Ao contrário, a simbologia aqui é de resistência, pois o pássaro preto fecha o corpo, e de proteção (monto guarda na porta dos quilombos). Emblemático também é o ferro em brasa que aparece no poema: utilizado para ferir e marcar (ou melhor, estigmatizar) os negros, esse instrumento simboliza sua subjugação. No entanto, o pássaro preto cicatriza as queimaduras provocadas.
Em seu livro Texturaafro, publicado em 1992, “Adão Ventura continua praticando um poema de textura seca, implícita, sem derramamentos”, utilizando as palavras de Duílio Gomes nos fragmentos críticos que aparecem no final da obra. O livro parece manter o mesmo tom e temática já expressos em A cor da pele. É dividido em quatro partes, nas quais os assuntos são mais ou menos definidos: na primeira, aparecem poemas abordando a questão de uma descendência comum aos afro-brasileiros, uma raiz cultural que os mantém interligados; na segunda, as figuras emblemáticas da resistência e do orgulho negro, como Chico-Rei e Zumbi, são exaltadas; na terceira parte, o autor problematiza a condição de indigência em que ainda vivem muitos negros: a favela, por exemplo, seria a nova senzala do século XX. Na última parte do livro, aparecem as figuras familiares ao poeta: pais e avós se tornam material poético.
De qualquer modo, a situação histórica de opressão do indivíduo negro é constantemente retratada ao longo da obra, a exemplo de Comensais, que aparece na parte I do livro:
A minha pele negra
servida em fatias,
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.
(Texturaafro).
A história do Brasil é permeada pela exclusão dos afro-descendentes e sua submissão aos “senhores de punhos rendados” que estão no controle do sistema econômico, político e social do país há 500 anos. É o negro que, com a exploração de sua força de trabalho, ajuda a alimentar o sistema vigente, mas nem por isso tem sua cidadania assegurada de forma plena.
De acordo com o que foi exposto, pode-se afirmar que Adão Ventura foi um dos autores que contribuiu de modo relevante para a consolidação de um sistema literário afrodescendente. Em seus poemas, o eu-lírico que se enuncia assume um posicionamento próprio, único, de um indivíduo que tem consciência da negritude e, mais ainda, admite e valoriza sua identidade. O passado histórico é ponto de partida para reflexões e, ao mesmo tempo, para o resgate e valorização de uma ancestralidade negra. Retomando as palavras de Cuti, “hoje é amanhã e ontem, dentro e fora do ser humano” (Cadernos Negros 4, 1981, p. 27). Por isso esse passado é, também, elo com um presente em que ainda persistem velhas correntes do aprisionamento, mas que, ao mesmo tempo, aponta para um futuro em que a conscientização fará diferença.
Referências:
BERND, Zilá. Em torno da literatura negra brasileira. In: Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: v.49, 1988.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CUTI, Luiz Silva. “Lembrança das lições”. In: Cadernos Negros 4. São Paulo: Edição dos Autores, 1981.
IANNI, Octavio. Literatura e consciência. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Ed. comemorativa do Centenário da Abolição da Escravatura. São Paulo: USP, n° 28, 1988.
SANTOS, Jussara. Afrodicções: identidade e auteridade na construção poética de três escritores negros brasileiros. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Belo Horizonte: 1998.
VENTURA, Adão. Abrir-se de um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Belo Horizonte: Ed Oficina,1970.
VENTURA, Adão. A Cor da pele. Belo Horizonte: Edições do Autor, 1980.
VENTURA, Adão. Jequitinhonha (poemas do vale). Belo Horizonte: Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais,1980.
VENTURA, Adão. Textura Afro. Belo Horizonte: Editora Lê, 1992.
VENTURA, Adão. Litanias de cão. Belo Horizonte: Edições do Autor, 2002.HH
* Maria do Rosário Alves Pereira é doutora em Literatura Brasileira pela UFMG e professora do CEFET-MG. Integra o grupo interinstitucional de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”, vinculado ao NEIA-UFMG. Coautora de Linhas cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011).