Pertencimento étnico e transgressão em Viola de Lereno, de Domingos Caldas Barbosa

Eduarda Rodrigues Costa*

Tu és Caldas, eu sou Caldas;
Tu és rico, e eu sou pobre;
Tu és o Caldas de prata;
Eu sou o Caldas de cobre.
Domingos Caldas Barbosa

Poeta causador de polêmica em seu tempo, Domingos Caldas Barbosa agitou a corte lisboeta com suas modinhas e lundus em pleno século XVIII. Apesar disso, seguiu, em grande medida, os moldes preconizados pela alta literatura e teve grande receptividade entre a nobreza, tanto que pertenceu à Nova Arcádia, adotando o pseudônimo Lereno Selinuntino. É necessário, porém, que se procure salientar o quanto este poeta foi avançado em seu fazer artístico, buscando demonstrar o pertencimento ao Brasil e o vínculo com a tradição africana. Esta identificação pode ser percebida tanto nos temas como na linguagem impregnada pela cultura afro-brasileira, quanto no ritmo do lundu que acompanhava suas cantigas.

Tomando como base para análise seu livro publicado em dois volumes Viola de Lereno, pretende-se focalizar os elementos identitários presentes em muitos de seus poemas. Para tanto, deve-se levar em conta as dificuldades impostas a esse escritor, um mestiço que se encontrava em Portugal, país colonizador de sua terra de origem, vivendo de favores no palácio do Conde de Pombeiro. A respeito de Domingos Caldas Barbosa, o escritor Oswaldo de Camargo acrescenta:

Um mulato que volta seu olhar para sua cor e escreve sobre isso. Não é a toa que Manuel Bandeira cita-o como precursor da poesia brasileira. Ele, um mulato, que foi chamado de orangotango por Bocage e de macaco por outros. Foi ridicularizado e humilhado por ter ousado entrar nos palácios, recitando e cantando o lundum, um ritmo de negros. Os intelectuais da época zombavam dele. Ele era satirizado pelos outros escritores. Tudo isso por assumir sua cor e ascendência. (CAMARGO, 2000).

A partir da compreensão do quanto o negro ou mestiço era estigmatizado naquele contexto pode-se reconhecer a ousadia de Domingos Caldas Barbosa em assumir sua etnicidade perante a corte metropolitana. E, deste modo, levando-se em conta a consciência possível da época, pode-se considerar parte da obra do autor como pertencente à literatura afro-brasileira. A abordagem do universo africano pode ser percebida em casos como este, no qual o ritmo utilizado para acompanhar os versos serve de título à cantiga:

Lundum

Eu tenho uma Nhanhazinha
A melhor que há nesta rua;
Não há dengue como o seu,
Nem chulice como a sua.

Ai céu!

Ela é minha iaiá,

O seu moleque sou eu.

Eu tenho uma Nhanhazinha
Muito guapa muito rica;
O ser fermosa me agrada,
O ser ingrata me pica.

Eu tenho uma Nhanhazinha
De quem sou sempre moleque;
Ela vê-me estar ardendo,
E não me abana c'o leque.

Eu tenho uma Nhanhazinha
Por quem chora o coração;
E tanto chorei por ela,
Que fiquei sendo chorão.
(BARBOSA, v. 2, 1944, p. 27).

No lundu acima, o eu lírico se refere à amada como “Nhanhazinha”, que se origina de iaiá, que por sua vez vem de sinhá, forma de tratamento dada às moças brancas daquela época, porém eram os escravos que faziam uso de tal alcunha. E colocando-se como “moleque”, termo que geralmente designava os escravos mais jovens, o poeta assume sua cor e declara-se cativo da amada. Além disso, apesar do tema tratar da dor de amor, percebe-se um tom de brincadeira utilizado pelo eu lírico perante o sofrimento causado pelo desprezo da sinhá. Outro elemento que caracteriza a escrita deste poeta é o ritmo dado pela disposição das palavras e, sobretudo pelo acompanhamento musical, fator imprescindível para a apreciação de sua arte.

Na mesma linha, em “Lundum de cantigas vagas”, o eu lírico se dirige a um “Xarapim”, que em tupi significa camarada, para novamente cantar o sofrimento amoroso. Trata-se, portanto de um lundu de lamento em que o homem chora por não ter o seu amor correspondido.

Meu Xarapim já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deu à casca
Metido nesta moenga.

Amor comigo é tirano
Mostra-me um modo bem cru,
Tem-me mexido as entranhas
Q’estou todo feito angu.

Se visse o meu coração
Por força havia ter dó,
Por que o Amor o tem posto
Mais mole que quingombô.
(BARBOSA, v. 2, 1944, p. 14).

Diferentemente de seus contemporâneos, Domingos Caldas Barbosa faz uso de um vocabulário impregnado de oralidade, extraído da linguagem cotidiana brasileira, repleta de termos oriundos da língua tupi, como o já citado “xarapim”. Sua atenção é voltada, sobretudo, para o universo afro-brasileiro quando, por exemplo, utiliza as palavras “angu” e “quingombô”, o mesmo que quiabo, próprias da culinária africana. Tais palavras são deslocadas de seu uso habitual para o discurso amoroso metaforizando a fragilidade do coração do eu lírico.

Além da temática amorosa recorrente em seus poemas, percebe-se também uma exaltação de sua nacionalidade no texto “Lundum em louvor a uma brasileira adotiva”, de modo que a musa desses versos é uma portuguesa que encantou o eu poético por possuir um “jeitinho brasileiro”. O eu lírico parece observar a moça que lava roupas nas margens do rio e, como num devaneio, relaciona os gestos da lavadeira ao molejo do corpo que dança o lundu. Nota-se, deste modo, que o elemento que caracterizava o “jeitinho brasileiro” para o poeta era esse ritmo africano comum no Brasil entre as camadas populares negras e que, em Portugal, ele levava aos salões da corte.

Eu vi correndo hoje o Tejo
Vinha soberbo e vaidoso;
Só por ter nas suas margens
O meigo Lundum gostoso.

Se o Lundum bem conhecera
Quem o havia cá dançar;
De gosto mesmo morrera
Sem poder nunca chegar.

Ai rum rum
Vence fandangos e gigas
A chulice do Lundum.

Quem me havia de dizer
Mas a coisa é verdadeira;
Que Lisboa produziu
Uma linda Brasileira.

Tomara que visse a gente
Como nhanhá dança aqui;
Talvez que o seu coração
Tivesse mestre d’ali.

Ai companheiro
Não será ou sim será
O jeitinho Brasileiro.

Um lavar em seco a roupa
Um saltinho cai não cai;
O coração Brasileiro
A seus pés caindo vai.

Ai esperanças
É nas chulices de lá
Mas é de cá nas mudanças.

Este Lundum me dá vida
Quando o vejo assim dançar;
Mas temo que continua,
Que Lundum me há de matar.
(Viola de Lereno, p. 51, v. 2).

Mesmo escrevendo em Portugal, o poeta não hesita em reconhecer o lundu como melhor que o fandango e a giga, ritmos europeus muito conhecidos, além de se dirigir à moça portuguesa com o tratamento “nhanhá”, assim como eram chamadas as brasileiras pelos escravos. Por fim, Caldas Barbosa assume a saudade das “chulices” ou dengues de seu país, mas reconhece poder encontrar tudo isso na figura da “brasileira adotiva” e, envolvido em sua fantasia e lembranças, parece confundir a portuguesa com o próprio lundu.

A partir de uma observação atenta é possível perceber duas vozes distintas presentes em Viola de Lereno. Uma é a encontrada nos lundus que, escritos sob influência do vocabulário das línguas africanas, eram cantados e declamados pelo poeta, revelando sua identificação com a cultura negra. A outra é encontrada nas cantigas cujo eu lírico é “Lereno de Selinuntino”, predominantemente construídas sob os moldes árcades reveladores dos ideais europeus, mas que, em casos especiais – como “Retrato de Lucinda” –, se distingue pela valorização não da mulher de pele alva ou rosada como seus contemporâneos cantavam, mas da mulher trigueira, de pele escura:

Não tens nas faces
Jasmins de rosa,
Cor mais graciosa
Nas faces tens.

Todas t’a invejam,
E há quem ser queira,
Assim trigueira
Como tu és.
(BARBOSA, 1944, v. 2, p. 10).

Nesse poema, a mulher afrodescendente se configura como objeto de desejo do eu lírico. Ela é exaltada como portadora de uma beleza suprema, provocadora de inveja nas demais moças da sociedade. O que se percebe é uma inversão de valores na qual os elementos comumente vistos como inferiores adquirem caráter elevado frente aos olhos do poeta.

Nesta mesma linha, “Retrato da minha linda Pastora” também faz remissão a uma estética feminina diversa da escolhida como padrão daquela época:

Engraçada por morena,
Tem redonda a face bela;
Não há boca como aquela,
Nem melhor, nem mais pequena.

São as mãos também morenas
As que à graça aumento dão;
As validas de Amor são
Podem tanto tão pequenas.
(BARBOSA, v. 1, p. 174).

Embora o livro se intitule Viola de Lereno, percebe-se a representatividade da voz que fala em seus lundus, voz de um audacioso inovador a quem não bastou utilizar a temática e o estilo clássico como seus contemporâneos. Caldas Barbosa foi além, trazendo para a poesia o seu caráter oral e musical, ressaltando a importância de elementos constitutivos de sua cultura, a afro-brasileira. Porém, mesmo nas cantigas em que é visível a postura do membro da Nova Arcádia – o poeta do amor e da beleza feminina –, podem-se reconhecer traços que diferenciam Domingos Caldas Barbosa dos demais escritores da época. Ao louvar os encantos da mulher afrodescendente e a beleza do seu país de origem, através da valorização vocabular, da culinária e da dança, o poeta registrou o universo africano como elemento constitutivo e não apenas influenciador da cultura brasileira num período ainda regido pelas leis escravocratas.

Referências:

BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 2v.

Entrevista com Oswaldo de Camargo, realizada por Milton César Nicolau em 10/12/200. Disponível em: <http://www.portalafro.com.br/literatura/oswaldo/oswaldo.htm>, acesso em: 19 ago 2005.

* Graduada em Letras pela UFMG.

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