A poética afro-identitária em Ritmo humanegrítico, de Cuti
Bruna Carla dos Santos*
Cena
um beija-flor de dedos
seduz o pandeiro
ainda no casulo
a borboleta menina
sinuosiando a ladeira
cria coreografias
e logo abre asas
de porta-bandeira.
Enigma da mutação
negro é o branco
que se pintou
ou
branco é o negro
que desbotou?
lábios, cabelos, narinas
o que se expandiu ou se estreitou
da primatavó?
ou do primatavô?
Cuti
Depois de centenas de poemas e contos vindos a público na série Cadernos Negros e em editoras independentes, Luiz Silva, pseudônimo Cuti – conforme estampado na capa de seus livros – chega-nos com nova antologia poética, agora publicada pela maior casa editorial do país. Com o ritmo da vida contemporânea, Cuti traz para seus leitores os poemas de Ritmo humanegrítico (2024). De início, já cabe refletir sobre os sentidos emanados da junção linguística presente no título. E já de início a indagação nos leva à tradição de uma poesia negra pulsante, jamais inerte ou contemplativa, sempre de olhos atentos ao aqui e agora oriundos de um passado que não passa.
Em seu processo criativo, Cuti cria e recria palavras e transforma-se num ourives, em seu modo particular de inventá-las para expressar ideias de forma lúdica e com humor. Assim, por meio do neologismo, o poeta propõe a junção dos vocábulos humano, negro e crítico, recurso frequentemente utilizado por ele não só no título, mas também nos poemas, a fim de registrar a habilidade de estar em consonância com o seu fazer poético e com o mundo.
O livro está dividido em cinco partes: “esperanças esparsas”, “nas veias explosivos?”, “retinto”, “quem cura é colo”, e “o beco tem saída”. Com mais de 150 textos tocantes, o livro perscruta e explora o ritmo de agora na dinamicidade humana em que o negro está inserido, com vistas às suas raízes identitárias nas quais o passado e o presente se ressignificam. Com um olhar atento e reflexivo sobre o que nos cerca, Cuti mergulha no seu tempo e no seu país: política, identidade, questões relacionadas ao mundo digital das fake news, à felicidade imediatista, às fantasias que a internet proporciona e a necessidade narcísica de estar sempre em destaque por meio de likes. Isso está estampado, nos poemas como “Navegar sem juízo”, “Chama dinâmica” e “Virtualidades”, como se pode ler neste último citado:
sei que é fake
tua felicidade no face
mas compreendo
tua necessidade de enfeite
esse imenso esforço
para que alguém
como és
te aceite (p. 17)
Neste texto, o poeta aponta o que percebemos nas redes sociais: um excesso de alegria aparente a partir de fotos compartilhadas, expostas na mídia. Para nos sugerir isso, Cuti articula a sua linguagem ao jogo com a palavra e o sentido de fake, a fim de dizer que a felicidade expressa ali é “falsa”, pois sabemos que o significado real do termo está nos perfis criados com dados e imagens de terceiros, com o objetivo de se passar por uma outra pessoa ou para manter-se no anonimato. As rimas finais auxiliam o percurso formal do poema, apontando também os duplos sentidos dos jogos: fake/face, enfeite/alguém, és/aceite, evidenciado do final de cada verso, que desloca o leitor à percepção dos conflitos gerados nas redes.
O autor se apropria do sentido de fake para ressignificá-lo no âmbito da felicidade exposta nos dias atuais como algo falso, forçado ou fugaz: “sei que é fake/ tua felicidade no face”. O poema toca na ferida da alegria forçada vigente nos espaços virtuais, na necessidade de passar para outro um brilho no rosto: “compreendo tua necessidade de enfeite esse imenso esforço”. A partir deste ato o eu-lírico expõe a “necessidade” que move toda encenação: “para que alguém como és te aceite”.
No livro, vários escritos reforçam o vínculo da produção autoral com o projeto da literatura negra(o)-brasileira: “abolição”, “racísmetro” “racismentário”, “colorismo”, “nos búzios”, “ogunhessência”, “diasporáfrica” e “indignação antiga”, como também no poema abaixo.
nos búzios
houve, há e haverá
escravos da casa-grande
lapidando palavras
não compõem tais pérolas
o opelê
deste meu jogo de ifá
destino do povo
sem gaguejar:
sonho se abre
com palavras-martelo
picareta
enxada
pá (p. 157)
Em uma nota na revista Geledés sobre o poeta e seu Ritmo humanegrítico o jornalista Ronaldo Vitor da Silva diz que o trabalho de Cuti demonstra
que o passado colonial e escravista ainda precisa ser enfrentado. Frente a isso, seus poemas conectam temporalidades distantes para encontrar na história um recurso de sobrevivência e possibilidade num mundo aos frangalhos (Silva, 2024).
Vemos isso explicito no poema “nos búzios”, no qual Cuti nos mostra, a partir do verso “houve, há e haverá escravos da casa-grande lapidando palavras”, que a subserviência, a opressão e várias atitudes advindas da escravização perpassam a questão da temporalidade do passado colonial, que ainda é algo contínuo com o verbo haver demonstrando estes tempos no passado, presente e futuro. Porém, vemos que ao mesmo tempo em que o eu-lírico afirma que “há escravos da casa-grande lapidando palavras”, veremos que estas palavras ou ações lapidadas na casa-grande não entram em seu jogo de búzios trazendo a significação do título:
não compõem tais pérolas
o opelê
deste meu jogo de ifá
Isso aponta para o fato de que o discurso da casa-grande não tem mais lugar no presente – e no futuro – construídos por uma nova consciência negra: “não compõem tais pérolas o opelê”. E ainda: o destino do seu povo será escrito de outra forma, sem gaguejar. Neste jogo que está aberto para os seus a voz é nítida, sem rodeios e sem dificuldades, voz que se abre como o sonho de liberdade “com palavras-martelo”, portadoras da justiça a partir da quebra de toda subalternidade presente desde a colonização. Palavras que remetem a Xangô, "orixá justo e bondoso, embora seja sério e tido como um justiceiro contra aqueles que não se comportam de maneira justa” (Neves, s/d).
Desde o título “nos búzios” aponta para uma história a ser escrita com “picareta, enxada e pá” – símbolos de luta e resistência tanto na escrevivência dos ancestrais, como signos da presença das divindades de matriz africana. Como aponta o poeta, este novo jogo passará por um novo ritual como no candomblé, que tem a expressão "cabeça feita" como signo de iniciação na religião, que envolve a raspagem da cabeça do iniciado e a realização de um pequeno corte no centro:
cabeça feita na pedra
ferro
água e vento
o músculo robustece o tempo
criar é o fundamento (p. 157)
Em Ritmo humanegrítico, Cuti não deixa de lado a escrita combatente, verdadeira marca registrada e base de uma história de luta e identidade negro-brasileira. E constrói uma verdadeira poesia da urgência ao tocar no racismo estrutural em uma de suas mais execráveis manifestações: o encarceramento indiscriminado de jovens pobres e negros:
racistócio
com desculpa de proteger
segue prendendo
inocentes e bandidos
encarcerar é negócio antigo
mesmo com a dor doendo
preso não vota
rende uma nota
trabalha de graça
dá lucros e dividendos
neste acordo entre amigos
ou matar
(abate, na boca dos sanguinários
governantes tarados
por órgãos frescos
para o clandestino mercado)
razões da delinquência?
presunção de inocência?
esquece
gira sem compaixão, justiça ou ciência
a roda da crueldade, fé- natismo e lucro
o horizonte querem
cada vez mais gotejante e rubro (p. 156).
Como enfatiza Maria Nazareth Soares Fonseca, na orelha do livro, “a seleção poética de Cuti afia as estratégias construídas com a palavra, e o trabalho com a linguagem explicita mecanismos de denúncia e questões problemáticas do mundo atual”. Interessante pensar que, mesmo diante de tantas situações difíceis das quais Cuti trata em seus poemas, o autor não deixa de nos apresentar uma cura, seja ela por meio do “respeito”, da palavra e da “proteção”:
Proteção
Pela estrada conturbada
a poesia nos defende
do assalto à mão amada. (p.172)
Poesia: palavra livre, que pulsa e cura.
Belo Horizonte, dezembro de 2024.
Referências
SILVA, Luiz. Ritmo humanegrítico: Antologia poética. Companhia das Letras, 2024, p.272.
SILVA, Daniel Neves. Xangô"; Brasil Escola. Disponível em:<Xangô: características, filhos, oração, saudação> Acesso em:12 dez. 2024 (p. 1-9).
Como é o jogo de Opelê. Disponível em: Opelê - Um Jogo Com As Mensagens Dos Odús | iQuilibrio. Acesso em: 11 dez. 2024 (p. 1-5).
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* Bruna Carla dos Santos atualmente é doutoranda pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Cefet-MG, no qual estuda três escritores ligados a literatura afro-brasileira/ Lima Barreto, Luiz Silva (com pseudônimo Cuti) e Adão Ventura. É Mestre em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais com o tema da memória afro-brasileira nas obras das escritoras Ana Cruz e Conceição Evaristo. Além disso, tem especialização em Língua Portuguesa: Teorias e Práticas de Ensino de Leitura e Produção de Textos pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. É integrante dos grupos de estudo Núcleo de Estudos Interdisciplinaridades e Alteridade - NEIA e Grupo de Estudos de Estéticas Diaspóricas - GEED.