Corpo-linguagem em aprendizagem – o Caderno-goiabada
de Nina Rizzi

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

 

 

 

 

porque alguns nomes
são tão desdizíveis
como marido e esposo

êxtase, precipício

porque desse nome
calcanhar ou punho
é tecido destino

 

fio em desfio
pronto a não-ser

 

porque de um outro nome

seu nome
pura renda

alcanço a delicada e violenta
potência de dizer

anchova

 

Nina Rizzi

2022

 

 

Livro de receitas, diário, processo de escrita criativa e de descoberta de si mesma, de um corpo-voz; poesia, questionamento de fronteiras – dos meios, da forma, do status quo –, ou ainda experimento sensorial em que língua e linguagem se dobram na intenção de romper os limites impostos ao feminino. Fala-se aqui do Caderno-goiabada, publicado em 2022, pela Edições Jabuticaba: o mais recente trabalho da poeta, tradutora, editora, professora e historiadora Nina Rizzi, nascida em Campinas e hoje residente em Fortaleza.

Esse Caderno não se define tão facilmente, tendo em vista a complexidade tipológica-formal que o compõe e o modo como se opera o corpo histórico de Maria Antônia da Silva – protagonista, narradora e autora/poeta –, que carrega consigo o peso do abandono do marido, que saiu de casa para comprar açúcar e retornou 20 anos depois:


[...] O verão se foi e ele não voltou. Não me sinto livre. E se partisse com as crianças? Deixei na caixa de correios um papel para ele. Um poema como um espelho, um poema que escrevo numa tentativa de me dizer o que ele diria:

 

passei por barbacena
longos minutos. vinte talvez
ela insiste dizer que foram anos. vinte com certeza
eu tava caminhano,
era ´inda claro quando saí
mas em dia de solstício
daí que logo escurece.

[...]

e tantos anos de feijão com arroz
cuma mesma maria, as goiaba que detesto
dá uma vontade de andar só...
ah, barbacena num é assim
tão bonita nem tão feia

É essa história que vai me contar, benzinho? (p. 21-23)

 

Neste excerto, escuta-se a voz inicialmente solitária de Maria, que confessa, no itálico1 desta e de outras páginas, as consequências da fuga do marido. Por outro lado, no poema forjado por ela como voz masculina, produz-se a justificativa fracassada para o desvio, supostamente dita pelo companheiro que a deixou. É a personagem escritora, no entanto, que impõe o tom e o sentido ao que se “conta”: na fala arrastada, oral desse homem, Maria nos faz perceber ironicamente a perversidade praticada por ele.

Desse ponto em diante, uma nova mulher passa a se revelar, entre as receitas descritas no preparo do alimento para o marido – na rigidez dos cálculos e das medidas prontas para o Tiramissú, o Petit Gateau, o Irish Coffe (signos da opressão) –, às receitas com goiaba que ela tanto aprecia (signo da libertação). Entre uma forma e outra, na linguagem das receitas, dos diários e dos poemas; na lida com as ervas, com as plantas medicinais; no amor dos filhos e de Helena, enfim, no livro de poemas, Florescer o pólen, a personagem reconhece sua força, como se lê em “vingança goiabada”:

nunca fui tua amor
menti só pra você
me comer

Claro que rimos muito. A liberdade é uma coisa que noz faz rir. E chorar. E agora eu só choro por coisas bonitas. Mesmo quando vem um mau-tempo. Não sei onde aceitei com esses garotos e Ana: nenhum sinal de reprovação, nem uma pergunta constrangedora, nenhum olhar esquisito. Só uma vontade unidade de ser feliz. Tudo que Helena faz enche de alegria e força. A mediação de leitura com crianças em bibliotecas comunitárias; a rede de mulheres que fortalece. Seu amor pela arte. (...) Olho-a e tenho a visão de uma deusa antiquíssima, com seu cabelos branquíssimos ressaltando a pele preta, as marcas de senilidade no rosto, as rugas tão lindas e bem encaixadas em seu corpo de amor silvestre. Eu a amo (p. 69-70).

Relevante apontar que o Caderno Goiabada se compõe ainda de outras tramas, tecidos de vozes, como as de Conceição Evaristo, Manuel Bandeira, Ana Akhmátova e Lygia Fagundes Telles, talvez esta a de maior destaque para a compreesão do caráter figurativo que surge no título, assim como em todo livro. Telles (1980, p. 14), conta-nos sobre os cadernos caseiros da mulher-goiabada, um deles pertecentes à sua avó – uma espécie de caderno do dia a dia, diário de mulheres, no qual se escreviam receitas, anotações mensais de despesas, além de confissões e lembranças. Assim, finaliza a narradora: “Vejo nas tímidas inspirações desse cadernão (que se perdeu num incêndio) um marco das primeiras arremetidas da mulher brasileira na chamada carreira de letras – um ofício de homens.”

Logo, Nina Rizzi reconfigura sensivelmente o caderno goiabada: primeiro, porque o esposo-marido (nome desdizível) de Maria não aprecia receitas que se valem da goiaba; segundo, porque ela mesma se modula, se fortalece, por meio dessa fruta. Se, por um lado, a figura masculina tirânica desaparece e se enfraquece, por outro, o feminino se recria no amor à mulher Helena, aos filhos, à poesia:

Não sabia que amor era coisa além de amar os filhos, as plantas, a terra e seu alimento. Não sabia do amor de duas pessoas tão desconhecidas e sem laços sanguíneos que então estão tão próximas como se desde o sempre. Não sabia que o corpo era algo que desse prazer se outra pessoa além de mim mesma o tocasse. Não sabia que há amor na velhice, em outro corpo (p. 70).

Sobre os poemas de Florescer o pólen, de Maria Antônia da Silva – hipertextos, intratextos, forma autorreferencial, linguagem aberta ao prazer, ao desejo –, nada mais se vai dizer. Eles integram o Caderno-Goiabada, como se parte ou todo, como produto de uma entrega então realizada.

Ler Caderno goiabada, de Nina Rizzi, trouxe-me novamente à carta-ensaio de Glória Anzaldúa. Nesse ensaio, a escritora chicana nos fala sobre o perigo da escrita quando uma mulher escreve. “É perigoso, já que nós, mulheres, temos medo do que se revela: as raivas, a força de uma opressão tripla ou quádrupla. Porém, nesse ato, reside nossa sobreviência. A mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida (2000, p. 234).

Nesse Caderno, Nina Rizzi, poeta de destaque na literatura brasileira contemporânea, intensifica o debate sobre corpos, sobre relacionamentos conjugais, marcados pela dor do abandono, especialmente quando se é mulher negra, mas também pelo recomeço, pela reconquista e pelo amor entre duas mulheres. Nessa estrutura híbrida, composta por camadas de linguagens, de procedimentos e de rupturas, o feminino surge ainda como um espaço de transbordamento, no sentido mesmo de sair da borda estabelecida e imposta culturalmente pelo patriarcado. É preciso ler Caderno-goiababa, esse texto-fricção que nos exige atitude crítica – política, estética – diante da leitura.

Belo Horizonte, dezembro de 2022

 

Nota

1. Em Caderno-Goiabada, Nina Rizzi parece se valer do itálico a fim de sugerir a mudança da forma diário confessional para outros gêneros, se é que ainda é possível recorrer a essa delimitação, para relembrar Haroldo de Campos (2013). No Caderno, temos acesso a receitas culinárias, de chás; ao diário, a poemas em prosa e à poesia, na última parte, com o livro-ficcional Florescer o pólen. Dividido em duas partes, Benzeduras e Compotas, com de 16 poemas cada uma delas, também acessamos o prefácio-ficcional, escrito por Helena Lopes, além da epígrafe atribuída a Conceição Evaristo.

 

Referências

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo. Trad. Édina de Marco. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.

CAMPOS, Haroldo. “A ruptura de gêneros na Literatura latino-americana”. In: A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 2013.

RIZZI, Nina. Caderno-goiabada. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2022.

TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. São Paulo: Círculo do livro, 1980.

 

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*Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. Pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100  autores do século XVIII ao XXI (2.ed., 2019).

 

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