Em sua ausência, resta o poema.

 

Luiz Henrique Silva de Oliveira*

 

 

Tudo estranheza

Tudo poesia

Vagner Amaro

 

Vagner Amaro tem se destacado no campo cultural por sua intensa atuação em diversas frentes. Bibliotecário e jornalista de formação, Amaro fundou a editora Malê, no ano de 2015, juntamente com o professor Francisco Jorge, movidos pelo desejo de contribuir para a alteração do estado de coisas da cena literária nacional. Para isso, a casa de publicação prioriza autoras e autores de pele negra. Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Miriam Alves, Cristiane Sobral, Eliana Alves Cruz, Cuti, Muniz Sodré, Elisa Lucinda, Martinho da Vila – só para citarmos alguns exemplos – fazem parte do potente catálogo da empresa, cujo tamanho só se amplia nos últimos tempos. Para além da edição de livros, a Malê organiza concursos literários, presta assessoria a escritores e é responsável pela organização da Revista Mahin.

Na esteira desta robusta vida literária, Vagner Amaro acabou se lançando no universo da autoria com o livro de contos intitulado Eles (2018). Posteriormente, publicou Os dias em que não te vi, conjunto de 55 poemas subdivididos em três seções: a) Uma estrela com seu nome; b) Estanhos frutos; e c) O corpo de um lugar. O volume apresenta um intenso mergulho nas profundezas do eu-poético, o qual se desdobra em vozes e reflexões inúmeras. Melancolia, saudade, amor, contemplação e indignação são alguns dos sentimentos presentes nos versos retintos do autor. Do ponto de vista temático, vale salientar a identidade étnica do eu; a percepção do ser negro no Brasil; o lirismo amoroso; e a reflexão sobre o fazer poético. Tudo isso amparado por um cenário difuso e repleto de objetos do cotidiano, cuja provocação ao leitor aparece na capa. Afinal, quem não é visto? O que não é visto? Estaríamos diante de um livro-convite aos ocultos da existência, isto é, ao que os olhos não podem imediatamente ver? A imensidão do azul do céu, predominante na capa, parece sugerir a própria infinidade do poeta e seus sentimentos, incapazes, pois, de serem “vistos” na sua completude.

A identidade étnica do eu enunciador, assumidamente negro, mostra-se latejante em diversos poemas, tais como “Reconhecimento facial”. No texto, a tecnologia é metáfora da automação que preside o olhar de uma sociedade racista em relação à pessoa de pele escura. “A vigilância / permanece / intacta / sobre os corpos / negros [...] Estranhos frutos / Estragos feitos / Sem paz, sem ar (p. 11). A vigilância constante aqui não diz respeito apenas ao controle dos corpos, mas à engenharia racial que pauta a própria construção de nossa sociedade. Os estragos em relação ao gostar-se negro retiram a paz de gerações e gerações. Intacta parece ser a estrutura “esquizofrênica” das sociedades herdeiras da colonização.

Por isso, conforme anunciado em “Difuso”, a crítica em relação à dialética cor branca x cor negra acaba sendo estratégia para suportar o olhar opressor: “o mais visível / em mim / é um espectro / da sua mente” (p. 12). A discussão recai sobre as categorizações sobre o Eu e o Outro, os iguais e diferentes. Como criação do branco, a categoria “negro” foi usada durante séculos (e ainda é usada) para estabelecer diferenças e justificativas para a escravização e suas consequências, fenômeno denominado de “pia batismal da modernidade” por Achille Mbembe, em Crítica da razão negra. Contudo, o existir negro escapa, transita e ilude o olhar cartesiano, a fim mesmo de driblar a política da vigília. Só assim, segundo o eu-poético, haveria alguma paz para as vítimas do preconceito.

A percepção do que significa ser negro no Brasil é abordada em vários outros poemas. Muitos dos quais, para tanto, também convocam a nossa tradição literária para o diálogo. É recolhendo, deglutindo e devolvendo que Amaro trabalha os rastros de nossa herança nacional. Em “Minha pátria”, o eu-lírico estabelece diálogo com uma tradição de textos que que têm no torrão natal motivo criador. Desde Gonçalves Dias e sua “Canção do exílio”, até a paródia de mesmo nome escrita por Murilo Mendes, há um país, embora exaltado, insosso ao afrodescendente que nele habita: “A minha Pátria não é minha nem dos meus. / É espaço de interdição minha Pátria” (p. 44), denuncia o poeta. O olhar crítico do enunciador é ampliado pelos adjetivos utilizados para se referir à pátria, tais como “[Pátria] açoite”, “disforme”, bonitinha”, “indiferente”, “Patricinha”. O gesto final do poema fala por si a posição do negro neste território: “Escrevo a sangrar em suas rugas” (p. 45).

Nem só de crítica social vive o livro de Amaro. Há espaço para intenso lirismo, tal como ocorre no poema “O amor”, dissolvido aqui num mosaico de elementos do cotidiano que compõe a paisagem do par apaixonado: “o amor que nos unia era de raiz e terra, simples objeto, / cheio de pedras no seio. [...] um amor de pequenos presentes do cotidiano” (p. 72). Em outro momento do livro, o amor deságua em erotismo, conforme podemos ler no poema “Eles” (curiosamente disposto na página 69 do livro): “Eles se prostam na beira / O mar banha as suas peles negras / um vai e vem profundo. / Começam um canto rouco / que faz crustáceos saírem da areia / e desenharem o caos”.

Assim, só se pode encaminhar o fechamento desta resenha convidando leitoras e leitores ao mergulho no substancial e denso mundo poético de Vagner Amaro, em Os dias que não te vi. Trata-se, pois, de surpreendente contribuição de um ator social que já demonstrara singular talento no campo da edição e do conto. E que venham os próximos versos.

Belo Horizonte, agosto de 2022

Referência

AMARO, Vagner. Os dias em que não te vi. Rio de Janeiro: Malê, 2021.

 

___________________________

* Luiz Henrique Oliveira é Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e da Graduação em Letras (Tecnologias da Edição) do CEFET-MG. Autor, entre outros, de Poéticas negras: representação do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984).

 

Texto para download