A poética radical de Sagrado sopro:
reflexões a partir da antropologia e do estudo das religiões
Barbara Cruz*
Em um mundo que constantemente busca a nossa morte – não apenas física, a dos nossos corpos, mas também emocional, espiritual, filosófica, uma morte existencial – apenas sobreviver não é suficiente. Raquel Almeida está entre aqueles artistas que nos lembram de viver a vida em seu melhor. Se há dor, trauma, luta, luto, há também amor, afeto, amizade, cuidado, desejo: todas essas coisas que nos fazem humanos. Através de seus escritos, ela dá passagem ao “sagrado sopro”, o fôlego divino que nos confere a vida.
Ela não está sozinha em sua empreitada. Raquel se conecta a uma rede de conhecimento que reconhece e honra ancestrais, descendentes e todos os seres que de algum modo povoam nosso mundo. Ciente do fato de que muitas das vozes minoritárias, que são verdadeiras maiorias nesse enorme mundo, são frequentemente silenciadas, a escritora desenha seu caminho em conexão com todas as pessoas que a antecederam, aquelas que virão depois dela, as que caminham ao seu lado. Tomando essa disposição na seriedade que ela impõe, não é de se ignorar o fato de que Miriam Alves, uma de nossas “mais velhas”, grande referência na literatura brasileira, abra o livro com um prefácio em um “diálogo” com seus poemas.
Como Amiri Baraka certa vez afirmou, “imaginação”, esse conceito que ele relaciona com ‘imagem' e ‘mágica’, é um “vetor prático da alma. […] Imaginação é toda possibilidade porque a partir da imagem, a energia inicial circunscrita, qualquer uso (ideia) é possível. […] Possibilidade é o que nos move.” Por outro lado, Hampâte Bá fala da ideia de discurso como poder criativo, “a exteriorização das vibrações das forças”. Cito: “Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra.”
Essas ideias combinadas ajudam a fazer sentido do impacto da poesia de Raquel Almeida e do poderoso trabalho que ela vem realizando: ancorando-se no mais íntimo de seus sentimentos, ideias e experiências de vida, suas palavras transbordam de uma individualidade inerentemente conectada com experiências coletivas. Transformando pensamento em palavra, ela lança luz sobre a possibilidade de encontrar caminho de sentido em nossas existências em conexão.
Referências
ALMEIDA, Raquel. Sagrado Sopro - do solo que renasço. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2014.
BÁ, Hampâte. A tradição viva. In: História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010.
BARAKA, Amiri. The revolutionary theatre. Liberator, July 1965. Disponível em: <http:// nationalhumanitiescenter.org/pds/maai3/protest/text12/barakatheatre.pdf>.
*Barbara Cruz é Advogada e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional-Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre pela mesma instituição. O presente texto foi apresentado no CUNY – City University of New York, Graduate Center, New York, EUA.