Lubi Prates – o ser e o existir negros como poesia

 

 Jéssica Correia de Oliveira*

 

Minha pele é meu quarto
minha pele é todos os cômodos
onde me alimento
onde deito finjo
o mínimo conforto.

minha pele é minha casa
com as paredes descobertas
uma falta de cuidado
: necessita sempre mais
para ser casa.

minha pele não é um estado
desgovernado.

minha pele é um país
embora distante demais
para os meus braços
embora eu sequer caminhe
sobre seu território
embora eu não domine
sua linguagem.

minha pele não é casca
é um mapa:
onde África ocupa
todos    os    espaços:
cabeça útero pés

onde os mares são feitos de
minhas lágrimas.

minha pele é um mundo
que não é só meu.

Lubi Prates
2019

 

“Não se iludam: é uma felicidade de pessoas negras, portanto, ela vem alquebrada, banzeira, atravessada pela dor que organiza nossas subjetividades; é uma felicidade guerreira.” Esse fragmento do prefácio de um corpo negro, de autoria da poeta e professora Lívia Natália, ilustra bem o sentimento que experienciamos ao ler a terceira obra de Lubi Prates.

Poeta, tradutora, editora e curadora de eventos literários e culturais, Prates iniciou o sua trajetória poética em 2012, com a publicação de coração na boca. Em 2016, surge triz, e em 2018, um corpo negro, que foi contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia, além de também ter sido finalista do 61º Prêmio Jabuti e do 4º Prêmio Rio de Literatura. Neste livro, a autora transforma em poesia as nuances da assunção da identidade feminina e negra. “É assim que eu enxergo o processo de tornar-se negro/negra: sem antes, sem depois. acontece no aqui, no agora, moldado pela sociedade, mesmo quando eu resisto e vou contra ela.” (PRATES, Apresentação, 2019).

Já de início torna-se impossível ler um corpo negro apenas uma vez. A poesia de Lubi Prates consegue cativar seu leitor de uma maneira muito singular, isso porque é capaz de fazê-lo pensar sobre a importância de se sentir negro diante de uma história que foi apagada e distorcida. Como é sentir-se negro à frente do embranquecimento que bate, diariamente, em nossa porta?  A autora não fornece as coordenadas exatas para a resposta, mas nos conduz pelo caminho da reflexão a partir da perspectiva do corpo negro como ponto central, aquele que conta sua própria história, que não é só um, mas um coletivo atravessado pelas questões de cor presentes em sua pele. Como nos trechos:

meu corpo é
meu lugar
de fala

e eu falo
com meus cabelos e
meus olhos e
meu nariz 

meu corpo é
meu lugar
de fala

e eu falo
com minha raça
(PRATES, 2019, p. 63)

Os poemas se constroem pelos “escombros e desamparo”, mas no transcorrer dos versos vê-se que, ainda que alicerçado nesses aspectos, o corpo negro surge dono de si e de uma força capaz de transformar sua trajetória. Lubi Prates traz o racismo real, aquele que é vivenciado diariamente, e, amarradas a ele, as questões que transitam entre a ancestralidade, o silenciamento da voz, a conservação da memória.

Logo no início do livro, o eu-lírico problematiza os termos mátria e pátria. No poema “mátria e/ou terra mãe”, conseguimos ver o enaltecimento da figura materna e, também, a memória a do tráfico negreiro:

Repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação

mas não é mãe
se permite
que te arranquem
o solo e os pés
no mesmo instante

não é mãe
se inventa um navio
quando te jogam
ao mar
se força as  ondas
pra que chegue
mais rápido
ao desconhecido
[...]
(PRATES, 2019, p. 19)

Outro tópico é o genocídio da população negra. Lubi Prates retrata, em “para este país”, que o corpo negro, numa sociedade racista, é visto como “só um corpo negro”. Como nos trechos:

 

para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais

: ninguém notou,
mas minha bagagem pesa tanto.

 

Ele não me viu com a roupa da escola, mãe?

                     Marcos Vinicius da Silva, 14 anos,

assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro

E ainda que
eu trouxesse

para este país

meus documentos
meu diploma
todos os livros que li
meus aparelhos eletrônicos ou
minhas melhores calcinhas

só veriam
meu corpo

um corpo
negro.
(PRATES, 2019, p. 28-9)

“para este país” se entrelaça com o poema seguinte – “tudo aqui é um exílio” –,  ambos colocam em questão duas problemáticas marcantes: o desterro e a condição imigrante. Lubi Prates provoca a narrativa hegemônica e faz menção às palmeiras de Gonçalves Dias para inscrever o oposto da louvação estereotipada. Os textos confluem ao ressaltar o não pertencimento e a outridade que levam ao sentimento de viver exilado mesmo habitando o lugar em que nasceu:

tudo aqui é
um exílio,

apesar dos rostos
             quase todos negros
dos corpos
             quase todos negros
semelhantes ao meu.
        (PRATES, 2019, p. 31)

Os versos transmitem a sensação de se sentir, integralmente, na condição não só de imigrante, mas de imigrante e negra, o que incorpora ao problema a exclusão pelo fator étnico e a consequente sensação de emparedamento do sujeito perante a dificuldade de se encontrar num lugar para chamar de seu.

desde que cheguei
um cão me segue

&

mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos

entre nós

sinto seu hálito quente
no meu pescoço. 

desde que cheguei
um cão me segue
        (PRATES, 2019, p. 33)

um corpo negro demonstra a maestria com que Lubi Prates percorre o seu caminho/projeto. Nesse percurso, nos deparamos o conceito crucial de Conceição Evaristo, o da escrevivência. Falar daquilo que é particular, mas que remete ao coletivo de tonalidade social e comunitária. E nesse sentido, como mulher e negra, a poeta explora com sutileza a interseccionalidade entre gênero, raça e classe:

ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não
                     [deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance
[...]
eu descobri agora que
não sou mulher
sou negra, sou apenas uma negra.
[...]
                                 (PRATES, 2019, p. 67-8)

A reflexão provocada pelos versos de Lubi Prates indica o quanto sua poesia consegue instigar: por um lado, a alegria da grandeza de ver o corpo negro como aquele que é sujeito do seu próprio discurso/destino e entender, com clareza, a expressão que muito se discute e tanto se ouve: lugar de fala; por outro, a tristeza de perceber que esse mesmo corpo, que quer ser emancipado e representado, é vítima de uma narrativa hegemônica que deturpa, embranquece e tenta impor barreiras ao reconhecimento de si mesmo. Prates mostra, com destreza de mestre, que o ser negro não é apenas o corpo marcado pela história dos vencedores, mas aquele que, por sua condição – seu existir – tem muito a dizer de si e de seus semelhantes.

Belo Horizonte, abril de 2020

Referência

PRATES, Lubi. Um corpo negro. 2.ed. São Paulo: Nosostros Editorial, 2019.

______________________________ 

* Jéssica Correia de Oliveira é graduanda em Letras, Português e Espanhol, pela UFMG e pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade –, desta Instituição.

Texto para download.