História e memória negras em Dessa cor, de Fernanda Bastos
Anamaria Alves Dias dos Santos*
Lançado em Porto Alegre pela editora Figura de linguagem, Dessa cor marca a estreia da poeta e jornalista gaúcha Fernanda Bastos na poesia. O livro de capa preta e detalhes em vermelho e branco possui em seu interior poemas que lhe conferem múltipla articulação. A estética da primeira capa concede ao envoltório o vermelho do sangue na cor do título do livro e a quarta capa contém o seguinte poema:
Aperto o estilete
confiro se está virado
para baixo
o lado mais pontiagudo
que enfio na carne e
rasgo o pulso
tingindo os dedos
e esfrego a mesma cor
no chão até pintar
um tapete vermelho
para você.
O mesmo poema, “Nouvelle Vague”, encontra-se na página 22. A escolha de localizá-lo na quarta capa, ao alcance da primeira impressão que os olhos do leitor terão do livro, resume parte importante de seu conteúdo. Fernanda Bastos enfatiza e de certa maneira abre caminho à leitura de seu livro com o sangue e o sacrifício dos negros, que vem desde o período escravocrata até os dias de hoje.
Ao longo da leitura, é possível ver a linha histórica que perpassa cada poema e o fio tênue que entretece uma poesia à outra. A cultura branca europeia dominante no Rio Grande do Sul, onde o racismo pode ser velado ou feroz, é notada no poema “Títulos provisórios”. A infância da negra brasileira, e o saber-se discriminada pela cor da pele, são contados nos versos:
Por que eu sou negra, mamãe?
F, relato de uma escrevivência
Um efeito estético de cor
Vozes veladas
o livro do desassossego dos outros
Baduísmo à brasileira
Outro país ou Na próxima vez taco fogo
Nos braços de uma mãe preta e seca sentei e chorei
Memórias de minhas negras tristes
Relato de um certo Atlântico Negro
Cidadã de quarta classe
Brasileirah
Nega fulana. (p. 13)
Memorialístico, o poema remete à condição da criança negra perante as mazelas da vida em uma sociedade racista que perpetua a indiferença e o desprezo pela cor do sujeito negro desde seu nascimento. Tal sentimento ancora-se nos grilhões que compõem o preconceito que é arrastado por séculos nas terras tupiniquins.
Avançando na leitura, o livro traz versos que falam da infância e da adolescência, perpassadas por dois pontos: o enfrentamento ao racismo e a chamada “vingança escrita” de uma mulher que possui o poder das palavras e está consciente disso.
Borrada de lápis
Literatura também pode ser vingança
diz Conceição Evaristo
que entre a patroa
prefere escrever sobre a empregada
Minha vingança sou eu
viva e feliz (às vezes)
contrariei a coleguinha que
“mas continuará preta
profetizou”
Gritei em vão por justiça
e hoje ela é juíza ou advogada, lida com as leis
Inclusive de injúria e racismo
eu escolhi desenhar com as palavras
minhas próprias leis. (p. 14)
“Borrada de lápis” aponta o lugar de fala que a literatura concede ao escritor e a maneira como o mesmo pode ser utilizado como arma contra a discriminação racial. O livro de densidade múltipla, parece voltar no tempo, da infância negra atual à escravidão, com uma linha temporal que oferece ao leitor uma viagem pela história escravista gaúcha.
Os poemas de Dessa cor trazem um mote que perpassa a história oficial do Brasil e a entretece na filosofia Africana contemporânea. O filósofo nigeriano K.C. Anyanwu (1989) enfatiza-a como “aquela que se interessa na maneira que o povo africano, do passado e do presente, entende o seu destino e o mundo no qual vive”[1]. A autora conta histórias do ontem e do hoje nas linhas de cada poema de Dessa cor.
Os versos abaixo enfatizam a fase adulta. Fernanda Bastos traz o feminismo e o empoderamento ao falar da produção de escrita feminina no mundo.
Capoeira
Fernanda
você tem que admitir
não há tão boas escritoras
quanto homens
porque você mesma admite
havia impedimentos
e as mulheres começaram a escrever mais tarde
eu disse publicar
que seja
mas elas
o teto todo de vocês, não tinha
escreviam e viviam
diga uma que se iguale a Joyce
a Hemingway
eu digo dez
te peço uma
eu
1.(p. 23)
O poema traz a linha temporal da produção e publicação feminina. Essa estratégia escancara por meio de um recado ao machismo, a pormenorização e o silenciar que perduram no mercado editorial. Fernanda menciona Virgínia Woolf, que escreveu Um teto todo seu em 1929, e no livro discutiu, dentre outros assuntos, a relação de dominação econômica do homem sobre a mulher. O verso “mas elas, o teto todo de vocês, não tinha” fala da falta que a independência econômica fez na vida de tantas escritoras em potencial que jamais puderam colocar suas letras no papel. No próximo verso a poeta remete à escrevivência, conceito cunhado por Conceição Evaristo, afirmando que as escritoras “escreviam e viviam” e o poema segue com uma poderosa afirmação conclusiva, “diga uma que se iguale a Joyce, a Hemingway/eu digo dez/te peço uma/eu.” No fim desta poética linha do tempo, observa-se uma escritora que se sabe mulher, histórica e, sobretudo, vitoriosa.
Dessa cor traz consigo uma gama de possibilidades de leitura. Observando considerações da filosofia alemã, por exemplo, o poema “No caminho” carrega em seus versos um Zeitgeist[2]. O conceito da filosofia alemã, nascido no século XVIII, descreve as características do ser humano de uma certa época. E recortando o século XXI, a escrita negra traz uma corrente de possibilidades que Fernanda Bastos utiliza com maestria em Dessa cor. A descrição do, se permitem o trocadilho, Schwarzenzeitgeist nesta preta que está por todo caminho, espalhada nas poesias de Bastos, é construída fazendo menção a outro Zeitgeist, Carlos Drummond de Andrade e o poema “No meio do caminho” (p.36), no livro Alguma poesia, de 1930. Mas a reconstrução do poema traz, em riqueza de detalhes, o espírito do negro brasileiro atual.
No caminho
No início do caminho tinha uma preta
Tinha uma preta no início, no meio e
no fim do caminho.
No início, no meio e no fim,
tinha uma preta no caminho.
Nunca me esquecerei deste fatigamento
pesado sobre minhas castigadas costas
Mas tento todos os dias entender
que sou eu a preta no início, no meio e no fim do meu caminho. (p. 36)
A mulher negra que conhece sua história e ancestralidade e sente o peso do racismo em suas costas é retratada no poema. A questão da psiquè negra, e dos problemas em lidar com a historicidade do preconceito que perdura, também são latentes nas letras claras de Fernanda Bastos desde o sangue na capa de Dessa cor.
A cadência do livro segue denunciando o mercado editorial. O poema “Reconhecença”, trata do embranquecimento editorial da autora Maria Firmina dos Reis. A primeira romancista brasileira era negra e escreveu um romance abolicionista. Uma editora gaúcha, no entanto, publicou uma edição de Úrsula com a foto de uma mulher branca no lugar de Maria Firmina dos Reis.
Coloco Maria Firmina dos Reis no espelho
Quem foi?
(...)
Nariz e boca sutis, pequenos e delicados traços
não parece negra,
suas feições não são comuns a uma preta
E a mulher que escreveu o primeiro romance abolicionista
era sim preta, a Maria Firmina dos Reis.
(...)
E quando deram por conhecer
fizeram-na em suas feições
uma gaúcha
gaúcha como eu, mas não como eu
por que branca
por quê? (p. 47)
Os versos traduzem a revolta de uma autora que sente a dor de ver a primeira romancista brasileira, também negra, invisibilizada. Ao ser embranquecida pela história racista que opera na sociedade até os dias de hoje, Maria Firmina dos Reis torna-se uma ferida nos versos de Bastos. A dor da invisibilidade sangra sempre que tocada, como a capa com letras vermelho-sangue deste livro. Outras estrofes do poema continuam enfatizando a insistente nebulosidade oferecida à mulher negra contemporânea, através da miséria e até mesmo de assassinatos onde o culpado jamais é julgado ou punido pelo crime.
mas quem nos reconhece?
muitos não nos reconhecem
invisíveis
assassinadas
miseráveis. (p. 48)
poema-denúncia acima traz verdades em versos e desmascara o racismo que opera em todas as esferas da sociedade. A cruel consonância preconceituosa que luta diariamente para apagar o negro das páginas da História.
A partir da página 50, o livro exemplifica a multimodalidade textual já exposta ao tornar-se jornal da escravidão. Os recortes de jornais de 1850 e cartas de alforria reais trazem a parte jornalística da negritude na época escravista. A emoção em ler os recortes de jornais faz transbordarem os olhos do leitor, que pode, através do livro, ver a si mesmo retratado na história.
O exemplar faz com que o leitor não se veja apenas enquanto leitor, mas protagonista. O movimento de “se enxergar” é exercido durante toda a leitura. O poemas dizem: “nós, negros, não somos ou seremos invisíveis!” e merecem mesmo ser vistos, lidos e compreendidos. Dessa cor é todo História. Um potente suporte para a discussão do racismo inscrito no brilho do verso. Deveria ser adotado pelas escolas de todo o Brasil.
Belo Horizonte, setembro de 2019
Referências
BASTOS, Fernanda. Dessa cor. Porto Alegre: Figura de linguagem, 2018.
K.C., Anyanwu. The problem of method in African philosophy, Nigeria: C.S. Momoh, 1989. (https://philpapers.org/rec/ANYTPO).
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
HEGEL, Friedrich Whilhelm. Filosofia da história. Brasília: Editora UnB, 1999.
ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Notas
[1] The problem of method in African philosophy.
[2] Conceito alemão que ficou conhecido principalmente através da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Zeitgeist é a palavra alemã que designa espírito de época e espírito do tempo. O conceito de Zeitgeist foi introduzido por Johann Gottfried Herder e outros escritores românticos alemães. O Zeitgeist é o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.
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* Anamaria Alves Dias dos Santos é graduada em Letras pela UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais, tradutora e professora de Alemão e Inglês. É uma das apresentadoras do programa Momento literafro na Rádio FM UFMG Educativa. Como pesquisadora, integra o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG.