Neologismos negros e identidades em Lundu,

de Tatiana Nascimento

 Anamaria Alves Dias dos Santos*

 

Lançado na cole-sã Odoyá, em 2017, o livro Lundu marca a estreia da autora brasiliense Tatiana Nascimento na poesia. Publicado pela editora Padê em edição artesanal, possui uma capa vermelha sem escritos envolta em brilhante papel de presente trabalhado em dobraduras com o título e a coleção a que pertence.

O livro não é dividido em capítulos. A poesia de Tatiana Nascimento traz diversidade temática, riqueza semântica, construções e neologismos que conferem identidade a seus poemas. Dinâmico e inovador, o conjunto de poesias é uma compilação de versos escritos entre 2009 e 2015 e, assim, carrega imensa diversidade.

Esteticamente o livro combina seus conteúdos da seguinte maneira: os versos são chamados a uma luta ancestral que perdura na superfície do povo negro, e os poemas clamam por atitudes. A coluna dorsal do livro é a inconsistência “sensório-sentimental” humana.

A autora brinca com a estética do livro colocando os poemas na vertical, na horizontal e até mesmo do avesso. Ao ler Lundu, o leitor precisa, literalmente, se mexer.

O teórico Roland Barthes (1988) elucida em O rumor da língua que ler não é algo passivo, mas o oposto; ler é fazer nosso corpo trabalhar e exceder nossa memória e consciência. A leitura na qual se levanta a cabeça é “Tatiânica”, se me permitem o trocadilho. A passividade da leitura não é uma opção em Lundu.

É necessário agir e interagir com a maneira diversa como a palavra preta habita o branco do papel. Localizado na vertical, o poema “das ovelhas do Hamurabi” exige do leitor o movimento não apenas de virar a página, mas o livro inteiro, os versos:

 

  das ovelhas do hamurabi
  pra todo mundo que reza de joelho a cartilha do perdão e do arrependimento,
  y lava a alma dando porrada joelhada paulada cuspe na cara facada no judas do
  novo testamento:
  a política do linchamento
  nunca foi exceção nesse par de milênios lento
  (como atestam os corpos retintos dos detentos)
  no fundo no fundo ngm parece gostar muito da maria magdanela
  (até hoje o ofício do seu sustento

  é motivo de algum… constrangimento,
  acho que só toleram ela porque cristo jesus insistiu no bom exemplo

  mas hoje em dia quem beijaria
  os pés dos lazarentos?),

  Atotô babá que odayá lambeu com seus dedos de salmoura, & oyá tocou com
  suas línguas de vento, que se dependesse só do “amai-vos…” mandamento 
  todo mundo tava era fudido mermo.
                                                                    (NASCIMENTO, 2017, p. 32)

O título do poema diz que as ovelhas, termo referente aos seguidores da religião cristã, seriam na verdade seguidoras do rei babilônico Hamurabi (1772 a.C.), popularmente conhecido por ter escrito o “código de Hamurabi” e por ser sanguinário, cruel e vingativo. Em “das ovelhas do Hamurabi” o leitor encontrará traços históricos e religiosos antigos, mesclados à atualidade e à crítica ao cristianismo.

Outra questão estética é o fato de todos os poemas serem inteiramente escritos em letras minúsculas e, não raramente, aparecerem abreviações típicas da linguagem cibernética, como o “ngm” no poema acima.

Os versos são marcantes e carregam sentidos múltiplos, dignos de diversas interpretações, onde são trabalhadas críticas sociais misturadas a sentimentos que podem ir, por exemplo, da revolta ao amor romântico. E logo depois, voltam trazendo uma denúncia contra a violência ou germinam flores nos leitores. Entre o poema da página nove e os versos da página vinte e um, pode-se notar uma mistura de denúncia social e amorosa:

  mundo vasto
  nessas ruminas da civilização
  tudo vira pasto
  y soja pra ração.
     (NASCIMENTO, 2017, p. 9)

A temática do poema “mundo vasto” é uma crítica ao agronegócio que vem devastando o Brasil, a palavra ruínas foi aglutinada com ruminas, do ruminar dos bois, movimento feito quando a comida volta  do estômago à boca e eles a mastigam e engolem outra vez. Algumas páginas adiante há versos que parecem possuir a mesma temática, mas o sentido se diferencia:

  clichê
  de volta às ruminas dessa civilização,
  você
  bovinamente
  a ruína
  meu coração
  músculo chei de nervura
  como fosse chiclé:
  mastiga
  mastiga
  mastiga atééééé tirar todo sumo
  y cospe.
           (NASCIMENTO, 2017, p. 21)

No poema “clichê” observa-se uma associação do ruminar do boi à frieza da pessoa amada, que estaria cruelmente mastigando um coração. O “clichê” seria a continuação do “mundo vasto”, onde a temática varia da denúncia social à “denúncia amorosa”.

O ato de brincar com as palavras nos versos que trazem os vocábulos “a ruína”, e onde se entende “arruina”, e “clichê”, que tem as mesmas letras de “chiclé”, é marcante nos poemas de Lundu. O livro é uma compilação de poemas que eram ditos e até mesmo gritados nos eventos de slam, assim sendo, as aglutinações, aliterações e outras estratégias visuais foram as saídas que a autora encontrou para representar graficamente e documentar a identidade “slamica” que seus poemas possuem.

A poesia que intitula o livro, “Lundu”, ocupa quatro páginas da obra. As estrofes abordam vários temas, dentre eles, o transtorno afetivo bipolar chamado F31, caracterizado por constantes alterações de humor. O verbete “lundu” também tem como significado amor, zanga, mau humor e irritabilidade constantes, esta semântica está ligada ao F31. Outro aspecto a considerar é que o lundu é uma forma poética e musical que os angolanos trouxeram ao Brasil na época da escravidão. Os primeiros versos:

  lundu,
  vem cá, deita em mim que nem ar que de tanto amar a
  gravidade deita em cima de tudo que tem na superfí-
  cie da terra y empurra quem tá dentro dela, ou que
  nem água vai se deitando em ondas sobre toda areia
  de qualquer praia pela dança do humor das marés,
  vindo indo no fluxo do vento, da lua, do sol, até,
  se te fizer sentido
  ou então chama de F31 oceânicas se te apetecer, que
  elas são imprevisíveis, as ondas são imprevisíveis
  pra afobação contida dum relógio, um diagnóstico de
  “doença mental”. mas vem, deita aqui que eu te rece-
  bo, y todo seu desejo, refluente mas sempre
  presente
                                    (NASCIMENTO, 2017, p. 40)

O uso da letra ‘y’, funcionando como conectivo de adição e ocupando o lugar da letra ‘e’ do português é traço recorrente nos versos do livro. Esta herança e regra hispanoamericana é usada para, mais uma vez, retirar o leitor do conforto de uma leitura passiva e chamar a atenção aguçando, assim, sua curiosidade sobre as possíveis formas de escrever que geram a mesma sonoridade na leitura.

A oralidade dos versos vem ao encontro do leitor, que ao ler em voz alta diversificará suas impressões acerca dos vocábulos que assumem papéis distintos ou inovadores na semântica e sintaxe da língua portuguesa.

No poema sem título presente na página setenta e sete, os versos explicam por meio de um malabarismo lexical, os neologismos presentes no livro. E as páginas, que exigem que o leitor se mova juntamente com o livro, trazem ainda mais dinamismo à leitura de Lundu:

  o jeito que sua palavra vai dizcosturando a forma de
  uma palavra,
  se reinventando em outra logo também descosturada
  pra revelar o fio impermanente do sentido
  amram, tem uma figura de linguagem que dá nome pra
  isso
  mas eu tô falando é da impressão
  seu jeito de descosturar a forma de uma palavra
  reinventando ela em outra logo também descosturada
  revelando o frio do sentido impermanente
  vestindo ele de outra forma,
  provis
  olha: sei que tem uma figura de linguagem para dar
  nome nisso
  mas tô falando é de como me entorna
  [“nossas palavras se ajuntam uma na outra
  por amor, não por sintaxe”]
                                   (NASCIMENTO, 2017, p. 77)

A autora dos “neologismos pretos” nos deu em seu primeiro livro potentes denúncias poetizadas e gritadas nos slams brasileiros. Os gritos antes abafados pelo racismo passaram a ecoar pelas cidades em versos e músicas poetizados por Tatiana Nascimento. O livro, quando declamado é um lundu, sua música e versos declamados nos slams lembram o canto e a dança vindos da Angola. A popularização da cultura através dos slams é latente no território brasileiro, e a poesia de Lundu é muito popular nestes eventos. O poema abaixo é uma potente denúncia gritada Brasil afora:

  o peito do pé do pedro
  é preto!
  e é por isso que tododia ele morre mais cedo
  mesmo se for
  no meio da tarde
  no coração da cidade ou num buraco
  no gueto
  [a polícia alega alegre: “suspeito”]
                       (NASCIMENTO, 2017, p. 46)

Mais adiante, temos o poema “iê”. O “iê” na capoeira é o cumprimento feito antes da luta. Ele é parte importante da base da cultura negro-brasileira. É também como um pedido de licença a quem estiver no recinto. Com os versos de “iê”, a autora pede licença e cumprimenta os companheiros de pele, sangue e luta. Os versos falam do seu caminho para fora da gaveta literária que ainda aprisiona autoras negras:

  iê:
  aprendi com água de rio,
  ligeira no meio y macia nas beira:
  que crise é encher o peito de vento sem
  coragem de mergulhar, que esse rolet de gaveta
  serve só para embolorar y que eu sempre fui de ultra-
  passar
  qualquer barreira.

   volta do mundo, camará
                                     (NASCIMENTO, 2017, p. 89)

A peculiaridade da poesia de Tatiana dos Santos beira o inexplicável. O poema “iê” traz ao público a luta das autoras negras como Conceição Evaristo e tantas outras que ficaram engavetadas por anos até que conseguissem sua primeira publicação. O livro carrega em cada uma de suas letras e estrofes, um chamado à reflexão e à atividade. Os últimos versos do poema “virei no que chamam” dizem:

  Vingança retalha qualquer casa-grande
  chão palavra preta espalhado sangue
  terreiro-refeita dançalma de longe

  um poder do opressor eh fazendo silêncio em navalha
  encruzilhada nossa carne
  dilacera nossa alma
  mas aqui não,

  sinhozim
  capataz
  capitão
  sacristão
  aqui
  não.
                                            (NASCIMENTO, p. 57)

Desde o ato de abrir o embrulho do livro e “degustar” seus primeiros poemas, passando por uma leitura realmente ativa onde não é permitido parar ou a leitura se torna estática, até o momento em que se fecham as páginas, Lundu é um belíssimo ato político. O lindo papel brilhante que envolve suas páginas de maneira artesanal é nada perto da dádiva que os poemas trazem ao leitor.

Lundu é um presente que, se atendidos os chamados à reflexão e à luta, mudará o futuro.

Referências

NASCIMENTO, Tatiana. Lundu. Brasília: Padê editorial, 2017.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

KERSTEN, Vinicius Mendez. O Código de Hamurabi através de uma visão humanitária. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4113 >

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* Anamaria Alves Dias dos Santos é graduada em Letras pela UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais e professora de Alemão e Inglês. É uma das apresentadoras do programa Momento literafro na Rádio FM UFMG Educativa. Como pesquisadora, integra o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG.

 

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