Negra nua crua:
a voz que ecoa nas poesias de Mel Duarte

Lorena Barbosa*

Essas histórias não são totalmente minhas,
mas quase que me pertencem,
na medida em que, às vezes,
se (con-)fundem com as minhas.
Invento?
Sim, invento, sem pudor.

Conceição Evaristo
2011

Negra Nua Crua é o segundo livro publicado de forma independente por Mel Duarte, poeta, slammer e produtora cultural. A obra, lançada em 2016 pela editora Ijumaa, em São Paulo, traz consigo o prefácio da cantora Tássia Reis e carrega 75 páginas de poesias que retratam, de forma arrebatadora, as vivências, inquietações, dores e experiências da mulher negra contemporânea sob a sua própria ótica: a autora, a partir de si, generaliza a condição do sujeito feminino negro e expõe em versos o que cerca esse ser por vezes estereotipado ao longo da literatura brasileira, mas que vem ganhando voz – e representatividade nas escritas atuais.

O livro é dividido em três partes: na primeira, “Negra”, a autora perpassa pelas questões raciais, sociais e de gênero que cercam a mulher negra do século XXI. Falando de preconceito, solidão e maternidade, Mel Duarte reafirma a negritude numa voz que ecoa e traz para os seus poemas uma visão diferenciada sobre o sujeito de quem se fala. Este, por sua vez, será uma pessoa que enfrenta dramas cotidianos, ama o seu cabelo, as suas raízes negras e a sua luta. No poema “Melanina”, a autora afirma:

Preta:

Mulher bonita é que vai à luta!
Quem tem opinião própria e não se assusta
Quando a milésima pessoa aponta para o seu cabelo e ri dizendo que
“Ele está em pé”
E a ignorância dessa coitada não a permite ver...
Em pé, armado,

[...]

Pra mim é imponência
Porque cabelo de negro não é só resistente
É resistência. (2016, p.11).

Vocalizando a mulher negra, a autora expressa palavras de empoderamento para quem, de forma histórica, teve a sua estética desvalorizada pelos padrões sociais. Desse modo, ressignifica também a visão sobre os cabelos crespos, oriundos da raça negra.

Falando de um problema secular que é a solidão da mulher negra, o poema “Exposta”, traz versos como: “[...] foi dessa carne negra que sangrou gota a gota a falta da sua companhia / contei os dias da sua ida / marcando na pele / rasgando a epiderme / deixando uma ferida”. (2016, p.12).

Na segunda parte, “Nua”, os versos são marcados pelo erotismo e pelo descobrimento do corpo feminino. Trata-se de desejos, sensações e prazeres, mas sempre tendo como foco principal a personagem negra que se intercala entre ficção e realidade. Em “Lua Cheia”, temos como exemplo: “[...] de tanto desejo, essa carne negra / não nega aconchego, não impõe regras / e quando me reconheço em suas letras / perco as palavras / mais uma noite de lua cheia, o consolo que sobra a sua falta”. (2016, p.31). E, em “Hoje eu”, temos: “[...] Só me consome esse desejo, culpa da tua pele, teu calor / negro, me diz como faz para acalmar a carne? / pra saciar esse querer que a minha alma invade?” (2016, p.46).

Perpassando pelo tema e tornando harmônica a junção de erotismo vs figura feminina, a autora quebra o tabu sexual imposto sobre a mulher, sobretudo, negra. Um ponto importante é que os versos dessa segunda parte, “Nua”, vêm sempre carregados de tons afetivos, reconfigurando o estereótipo da mulher negra descrito na literatura canônica como ser meramente sexual, e que, segundo Cristian Souza de Sales:

São configurações construídas por escritores não negros, em sua maioria, expressam situações em que a malícia, a imoralidade, a permissividade são apresentadas como características inerentes ao comportamento moral da mulher negra, aparecendo no imaginário brasileiro como um corpo à disposição, pronto para consumo pela dominação masculina: um corpo possuidor de uma sexualidade voraz e pervertida, tratado como um corpo-produto e corpo-objeto. (SALES, 2012, p. 22-36).

A mulher negra, nesse momento, toma a voz da sua própria história e começa a não ser mais narrada pelo outro – domesticada pelo e para o outro. Aqui, ela tem o poder de falar de si e para si, abordando os seus desejos mais ínfimos.

Em “Crua”, terceira e última parte, o lado visceral da poeta surge na forma de combate a preconceitos e conservadorismos sociais. No primeiro poema, a autora se apropria do discurso emancipatório em prol da figura feminina e dita palavras de respeito ao gênero, fazendo apelos: “[...] Seu discurso machista machuca / e a cada palavra falha / corta minhas iguais como navalha / ninguém merece ser estuprada”. (2016, p. 55).

Desde o século XVII, as alteridades vêm sendo representadas em verso e em prosa de forma estereotipada, tendo a sua imagem e a corporeidade marcadas pelo discurso etnocêntrico e patriarcal. A mulher negra, permeada pela herança escravocrata, foi representada, por vezes, de forma desumana pela escrita dominante, sempre falada por outrem, sujeitada a representações pejorativas que tiravam de si toda a complexidade e peculiaridade que envolve o ser humano. Mas há escritas, potencializadas a partir da contemporaneidade, que ultrapassam todos os limites da própria literariedade e que são fortemente entrelaçadas por um cunho social, racial e, sobretudo de gênero. Escritas que transcendem a marca do papel com sujeitos dispostos a reescreverem a sua própria história. Mel Duarte, com Negra Nua Crua, é um desses sujeitos que, na literatura, ressignifica o seu papel.

Trazendo à tona a todo o momento a sua condição como negra, a autora reconstrói os seus heróis, estes que por sua vez serão sempre referências afrodescendentes, marcando em seus versos frases como: “[...] Encontro forças na trajetória de Angela Davis e Marighela / respeitando e aprendendo com Carolina, Malcon, Dandara, Zumbi e Mandela. (2016, p.23). Tais trechos relembram Luiz Gama, no século XIX, quando em “Lá vai verso”, o autor heroifica uma mulher negra. Em “Nua”, impossível não relembrar, também, da liberdade sexual com que Conceição Evaristo constrói Natalina, em “Quantos filhos Natalina teve?”, no livro Olhos d’água, de 2014.

A voz da mulher negra é uma voz que revoluciona – traz consigo uma carga de ruptura com as representações e vozes homogêneas que se consolidaram na história da literatura brasileira. A poesia de Mel Duarte é marcada pela oralidade e pelas rimas que se assemelham ao rap e aos saraus que acontecem em grandes cidades do país, uma vez que foi nesse espaço que a autora se consolidou. Negra nua crua é, sem dúvida, uma obra para quem tem interesse em conhecer mais sobre a poesia marginal, sobretudo quando se trata de temas raciais e de gênero, além de leitura fluida proporcionada por rimas simétricas.

Se cair a gente levanta
Mulher sim,
Negra sou,
Punhos serrados até o fim
Meu tempo é agora.
(DUARTE, p. 23)

Referências

DUARTE, Mel. Negra, nua, crua. São Paulo: Ijumaa, 2016.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

SALES, C.S. Pensamentos da mulher negra na diáspora: escrita do corpo, poesia e história. São Paulo: Sankofa, 2012.

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*Lorena Barbosa é graduanda do curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e participante do NEIA – Núcleo de estudos interdisciplinares da Alteridade –, em que desenvolve pesquisas focalizadas nas escritas de mulheres negras. Como ficcionista, integra o volume 42 da Série Cadernos Negros.

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