Não queremos flores de plástico, mas sim vida à poesia

 

Bruna Carla dos Santos*

 

Mineira da Zona da Mata, Ana Cruz tem uma trajetória voltada para a escrita desde a adolescência. Ainda jovem, transferiu-se para o Rio de Janeiro, estudou jornalismo e criou o periódico literário De Mina, sempre em sintonia com os movimentos sociais e o Movimento Negro. Inaugurou seu percurso literário em 1997 com a publicação de E...feito de Luz, reeditado em 2006. Seus livros mergulham na memória familiar mediada por uma linhagem afro-feminina voltada às raízes identitárias nas quais constituem toda uma poética voltada para seres que “definem o que é comum a um grupo e o que os diferencia dos outros, o que fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais.” (ALMEIDA, 2003, p.18).

Tais caminhos e raízes dão fôlego aos versos de Eu não quero flores de plástico, em que a autora nos apresenta 61 poemas que se assumem como lugar de resistência e encontro com o passado/presente de memórias vivas e vigentes, como em “Salve Benguelas”:

Mãe disse. Se a tristeza estiver inscrita entre
as novas alegrias.
A receba com toda devoção. Sofra, mas sem
render-se ao sofrimento.
A força do meu canto mora dentro de mim.
É maculêlê, maracatu, jongo, capoeira e Caxambu.
Tambores de minas, lamento do blues
Improviso do jazz.
Ventos e coriscos de Inhasã.
Feito reza o meu canto, é herança de mulheres
destemidas, Benguelas!
Com a memória e a força da cultura teceram, os
instrumentos da liberdade.
Meu canto carrega as maravilhas do milagre do amor.
                                                          (CRUZ, p.39)

Em sua análise da memória coletiva, Michael Pollack enfatiza “a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na coletividade a que pertencemos por meio de museus, monumentos, lugares de memória e tudo o que nos acompanha para a toda vida.” (POLLAK, 1989, p. 03). Assim se faz esta interação e sensibilidade da autora ao inscrever o vínculo pautado na reminiscência da infância em sua escrita e afro-vivência atual. E a religião e os ritos são referências em diálogo com a memória coletiva:

Águas da Oxum formam vidas.
Águas do Oxum, batizam.
Águas da Oxum, giram
moinhos, iluminam a mente.
                    (CRUZ, p. 45).

E não só a religião, mas o amor, a vivacidade com a qual a escritora dá continuidade ao seu projeto poético desde Mulheres Q’rezam – “mulheres ancestrais, que com a força de seus ancestrais abriram portas e botaram a boca no mundo” (CRUZ,1996). Pessoas vivas nos atos de rememorar a benzeção, as contações de histórias e toda uma trajetória de sofrimento com a escravidão, como no poema “Destemidas”, em que é nítida a presença e força destas mulheres que geram vidas e costumes nos seus pequenos atos do cotidiano, sempre traçando caminhos àqueles que estão por vir:

Os dias eram seguros e enternecidos com elas
andando às pressas pelo terreiro.
Com suas temidas saias mandando em
todos, revirando os grãos de café na
soleira da tarde.
Mexendo os doces tachos, espantando meninos.  
Abrindo caminhos para nossa infância
passar sem transtorno.
                                                (CRUZ, p.23).

Ana Cruz, ao fazer referência à sua infância repleta de ludicidade “nas Minas Gerais”, reverencia também a mãe terra, a natureza, que é muito presente em seus poemas, sendo mesmo indissociável do crescimento pessoal da autora, como pode ser visto em “Ciclo incompleto”:

Tarde cinza, vejo o mar num tom chumbo, dia
instropectivo, árvores esperando
passivamente por uma nova roupagem.
Outono insólito, sentimentos, introspecção
de toda natureza, de todos que aguardam por
um momento novo.
                                             (CRUZ, p.113).

Além dos novos poemas, Ana Cruz traz textos publicados em livros anteriores, como “Registro de um tempo”, “Raízes”, e “Retinta”, mas a impressão é de que foram escritos novos versos. A poeta, como antes, continua a bater na tecla do empoderamento feminino negro, da afirmação e fortalecimento da cultura afro-brasileira, assim como da manifestação de suas memórias.

Como já sugere o título, Eu não quero flores de plástico possui grande potência afetiva. Ana Cruz persiste em nos dizer que estas mulheres e homens presentes no livro desejam mais do que simples flores de plástico, ou a superficialidade de uma cultura imposta. A figuras evidenciadas nos versos querem alçar voos mais altos,  não se acomodam perante a subalternidade, cantam com pungência a libertação. Assim, de forma poética e potente nas escolhas dos temas, versos e nomes próprios retirados do cotidiano, a escritora nos faz refletir sobre os gestos simples da vida, sempre deixando entrever a sua própria biografia, figurando comunidades quilombolas no interior de Minas que até hoje batalham pela sobrevivência e reconhecimento de seus costumes e tradições.

Eles, assim como a autora, não querem flores de plástico mas, sim, dizer não a todas às impossibilidades criadas por uma sociedade que dispensa o diálogo, o diferente, o pobre e toda uma construção histórica na qual perpassa o povo negro com suas crenças firmes nos orixás e atabaques, cujo som ressoa infinito na escrita da poetisa.

 

Referências

CRUZ, Ana. Eu não quero flores de plástico. Rio de Janeiro, Edição da Autora, 2016.

CRUZ, Ana. E... Feito de luz. Niterói: Ykenga Editorial Ltda.,1996.

CRUZ, Ana. Mulheres Q’ Rezam. Rio de Janeiro: Ed. da Autora, 2001.

PEREIRA, Edimilson de Almeida; GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. Ouro Preto da palavra: narrativas de preceito o congado em Minas Gerais. Belo Horizonte:Ed. PUC Minas, 2003. 127 p.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15.

 

*Bruna Carla dos Santos é Mestre em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e integrante do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG.

 

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