Resistir/existir:
a poesia afro-brasileira nos
Cadernos negros 39


Gustavo Tanus
*

 

Um flash da nação

É noite! meu brasil
brasa de tiroteios iluminando com sangue
morros, favelas, subúrbios
casebre sobre mangues

maus presságios no encalço?
muitos buscam soluções mágicas
de profetas falsos
e se escravizam a dogmas putrefatos

revoltas sussurradas nos porões da madrugada
flechas sonoras de gritos
suor esbravejando silêncios e auroras
de angústia manchadas

estradas escravas sobem
de avoengos corações
descem ondas, marolas, de fatos
pelas encostas de invisíveis áfricas
}gemendo metonímias e metáforas

é acoite o tempo
meu brasil fabrica pólvora como alimento
rubro luto e lágrimas minimizadas
em manchetes pagas
apagadas nas demais páginas...
do outro lado champanhe servido à farta.
                                             
                                                 Cuti, 2016

 

Iniciando com esse poema de Cuti, que capta poeticamente os mundos diferentes, entre o Brasil real, o país negro e essa nação oficial que se alimenta da violência que ela pratica historicamente contra o outro Brasil, nos atentamos para a fratura gestada pela elite, no ideal de comunidade. A experiência de resistir e de existir cotidianamente dentro desse modelo é o primeiro contato com ela.

Resistência, palavra usada pelo escritor Oswaldo Faustino, na orelha do livro, em leitura acertada deste volume 39 dos Cadernos negros. De fato, os cadernos apresentam modos de resistir: este é vigésimo livro de poesias afro-brasileiras desta série Cadernos negros, que é publicada (volume par: prosa; volume ímpar: poesia) − ininterruptamente − desde 1978.

A publicação vem contribuindo para a formação e consolidação de um público leitor negro de poesia negra, e também para a apresentação de novas e novos escritores. Trazidos à roda uma seleção de 172 poemas, em variados temas e expressão, cuja escolha foi realizada com a colaboração de uma espécie de colegiado interdisciplinar composto por pessoas de vários segmentos: escritoras e escritores, professores, pesquisadores, especializados em arte, literatura, poesia, educação, história, edição, etc.

Foram selecionados 36 escritores, sendo 17 mulheres. São eles: Adegmar Candiero, Alessandra Sampaio, Ana Fátima, Anita Canavarro, Aretusa dos Santos, Benício dos Santos Santos, Bruno Gabiru, Cláudia Gomes, Cristiane Mare, Cuti, Dirce Prado, Edson Robson, Eliana Alves Cruz, Esmeralda Ribeiro, Fausto Antônio, Fernando Gonzaga, Góes, Guellwaar Adún, Ibeji Sisin, João Romualdo, Jocelia Fonseca, Jovina Souza, Jovina Teodoro, Júlia Cristina Costa, Juliana Costa, Kasabuvu, Lande Onawale, Lepê Correia, Louise Queiroz, Luís ‘Aseokaynha’, Nana Martins, Negranória d’Oxum, Pretta Val, Sergio Ballouk, Urânia Munzanzu, e William Augusto.

Na apresentação do volume, os organizadores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa afirmam ser esses cadernos “um dos caminhos para a literatura afro” (p. 16). Há, nessa afirmativa, duas possibilidades que não são excludentes: um caminho coletivo, em que poetas negras e negros se reúnem, em intenção de resistir/existir; e, partindo desse lugar de várias vozes, cada qual com seu modo de fazer poesia, apresentem/elaborem as várias formas visíveis que a poesia negra demonstra/aponta/revela.

Assim, são inúmeros os caminhos de (re)significação da afrodescendência, possibilitados por autores e autoras nesses Cadernos Negros que refletem-refratam, por meio do trabalho poético com a linguagem, temas fulcrais da situação do negro em nosso país. A diferença significativa é que − em perspectiva sempre interna (o que contrasta com as perspectivas externas de “negristas”/fetichistas) − tecem poemas cujo comprometimento, leiamos sem o purismo dos mais conservadores, estabelece uma dinâmica entre o político e o estético.

De modo geral, os procedimentos de interpretação das poesias a fim de organizar o pensamento sobre elas coloca-nos sob o risco de parecer com leitores/pesquisadores que aniquilam a vida e dissecam o corpo com intenção de estudar o viver. Ainda, sobre os limites deste nosso texto, ou muito abraçamos em pouco apertar, num paratexto de apreciação sem-fim, um comentário que aproximaria apenas em tamanho do texto original; ou façamos um recorte, um enquadramento, importante para marcar uma leitura, um olhar, o que sempre corre o risco de ser confundido com “a” leitura, e ser replicado em suas limitações. Alertados por isso, apresentemos nosso olhar.

Interessante notar que antes de cada seção é colocada uma frase da poeta ou do poeta sobre o que eles creem que seja a arte literária, em significados sobre o que é poesia. Entre poesia e comunidade, a matéria poética que revela a fantasia e desveste o real, sobre a poesia que revela a falsidade da história, a reescreve e a reelabora, os versos que cantam os desafios, as impossibilidades, as negações, igualmente, as vitórias, as afirmações, o empoderamento. Revelam olhares sobre caminhos e caminhadas, sobre travessias, partidas e chegadas. Sobre inspiração/transpiração, entre vida e sobrevida, essa “luz que se esculpe” (p. 83). Revelam ainda, as formas invisíveis − do racismo e do preconceito −, tornando-as visíveis. A escrita como retomada, como contragolpe, como subjetivação, como autoafirmação, como marcação de um espaço. Cantos sobre precursores, sobre repercussão. A palavra encarnada em poesia; poema alimento, uma “arma para a paz” (p. 131). Um desejo de “ludibriar a gramática com elipses exuprismáticas” (p. 139). Esses levantes de resistência e de existência.

Alguns poemas são ora mais descritivos, como, por exemplo, “Resistência afro-paranaense”, de Ademar Candiero, que elabora uma espécie de inventário de lugares, de onde serão cantados/narrados na história dos negros do sul (p. 22-25), ou de nomes de heroínas e heróis negros, como o “Consciência negra”, de Ana Fátima (p. 40), “Xala, mana Luiza!”, de Lepê Correia (p. 216). Outros são uma espécie de crônica-poesia, como o “Terça preta”, de Alessandra Sampaio, cujos versos tratam da apresentação do Bando Teatro Olodum.

Há textos de uma força auto afirmativa, das poetas Dirce Prado, Eliana Alves Cruz, Jocélia Fonseca, Júlia Cristina Costa, Nana Martins, Negranória d’Oxum, Pretta Val, ou o poema “Meus pais”, de Esmeralda Ribeiro, que reconstrói sua relação afetiva com seus orixás masculinos, seus ancestres paternos (p. 112-113). Ainda em relação à construção identitária, há os versos de Ibeji Sisin; os jogos rítmicos de João Romualdo, as sonoridades de sambas-canção, como o poema “Tirar a negra”, de Luís ‘Aseokaynha’.

Há o poema narrativo de Jovina Teodoro, que conta a história de Nobre Calistinha, mulher altiva, conhecedora das ervas, esses “assuntos do cerrado” (p. 180-183), que era invisível para a voz poética, que passa a considerá-la, porque passa a se ver nela. Da poeta Anita Canavarro, destacamos o poema “S-a/e-gr-a/e-do”, cujo título é um jogo entre sagrado/segredo, e marca a crença da voz poética, a dúvida que leigos colocam sobre o sagrado, que ela trata como segredo: “Já eu prefiro os ventos / O cheiro da mata / Segredos de mariwo.” (p. 48). Ela ainda compõe um poema autobiográfico que trata de sua constituição, a partir da religiosidade, como também vemos em “Meu batismo”, de Jovina Souza (p. 177).

Eu, água

Nasci da água,
Na força das mares
Anseio o momento em que ela renascerá em mim
Odoyá
Iyá mi,
Sabe meus segredos
Sou forjada na lâmina de sua alfanje
De onde caminho
Nos entremeios desse mar de gente.
                                                  (p. 49)

Em relação a religiosidade, há, como exemplos, entre vários outros, “Mata adentro”, de Ana Fátima; “Èpa Bàbá”, de Edson Robson, o já citado “Meus pais”, de Esmeralda Ribeiro, “Barro preto”, de Fernando Gonzaga, “Ogum iê” e “Xapanã” (Atotô, meu pai), de Jocelia Fonseca. Urânia Munzanzu, com seu poema “Ori”, em que a voz poética trata de sua constituição, “de palha, barro e água” (p. 267), “Entre gargalhadas”, ou “Ainda da terra”, de Sergio Ballouk, “Reizado do Congo”, “Um Deus”, de William Augusto.

O poema “Carapinha”, de Benício dos Santos Santos, trata do cabelo crespo como uma questão dada pela sociedade preconceituosa, mas que, por fim, quando assumido como é, passa a ser símbolo da mudança. “Entrelinhas” de Cristiane Mare é metalinguístico, e realiza, na intenção de escrita sobre o ato de escrever, uma inversão importante, em que o tecido do cotidiano é urdidura composta pela poesia, em que a voz poética diz encontrar-se ali, nas entrelinhas (p. 79). Dessa autora, destacamos, ainda, o poema que trata da violência como um ciclo:

 

Eguns

Me roubaram o primeiro filho
Disseram-me: foi bala perdida

Abortaram o segundo
Aquele ser não era bem-vindo,
Um engano? Talvez

O terceiro, amedrontada
E sofrida
Dei-lhe, eu mesma, cabo da vida.
                                     (p. 80)

Nesse sentido, os poemas “Genocida” e “Ditadura branca”, de Lande Onawale que tratam da violência contra o negro, como um projeto de nação. Que nos digam os tantos Amarildo Dias de Souza, Rafael Braga e Cláudia Silva Ferreira deste nosso país. Vamos aos textos:

Genocida

a polícia sabe onde atirar
não é no alvo...
a mira é um ponto preto
colado na própria retina.
                          (p. 205)

 

Ditadura branca

no Brasil, a ditadura
nunca se extinguiu
para gente de pele escura:
a antilei
o falso indício
o sumiço
a tortura.
                         (p. 206)

Fausto Antônio coadunou a seus versos o imperativo do poeta José Carlos Limeira, de que “façamos Palmares de novo”, em um “grito” contra os golpes conservadores de sempre, no poema “Quando o axé da rua vier, não haverá o que Temer” (p. 122), que canta o levante político negro contra a onda conservadora dos últimos anos, como também em “Negrada” (p. 123).

Destacamos a poesia de Guellwaar Adún, estética multifacetada, inclassificável, de dosagens indefinidas do veneno/remédio, de sons, dos jogos com os significantes e significados, na composição. A religiosidade entra em sua poesia não como um fim, sendo tão só um tema, mas no modo como a voz poética se relaciona com o mundo (com o sagrado, o profano, e com a cultura popular afro identificada), e na maneira como ela mesmo re-elabora a sua expressão.

o

o bonde da história
dobrou esquina da mesa
trabaia caboco zagaia
balaiada vento zen
palavra, véu da curva
o vão vai de zero a ten

no corpo do café
uma frase vendida
vaga, louca, esquecida

híbrida mão que afasta
intimação, treme, o rasta
diante da viatura
o traço da farda,
loucura;
cilada.
                          (p. 140)

Destacamos ainda “Entre a linha e a costura”, de Juliana Costa, em que a voz poética realiza uma leitura sobre as negatividades costuradas na pele escura, em tramas complexas, de silêncio, de violência, de dor, que ela vai cantando, percebendo a urdidura, a força do arremate, os pontos da linha branca. E ainda, o poema “Corpo-África”, que faz um forte jogo metonímico.

Corpo-África

Meu corpo é uma África
e o mundo, um navio negreiro.
Enquanto cantos que não entendo
oscilam dentro de mim,
eu vejo as atrocidades que ainda não tiveram fim.
Vivemos tempos de Lei Áurea” − assim nos dizem
enquanto socialmente nos constrangem
pelo cabelo crespo que adoramos
pela coroa simbólica que levantamos
e se ofendem quando nos amamos.

Meu corpo é uma África
que ainda grita
todos os crimes contra sua terra
e contra sua gente.
O racismo de nossa era
vem junto com uma boca sorridente
que dissimula
e tudo que é negro anula
como contribuição social.

Meu corpo é uma África
meu Ori vive comigo a resistir
Já que não podemos mais permitir
o silêncio a nos chicotear,
nem os discursos com outros termos a inferiorizar o que somos.
                                                                                         (p. 194)

Por fim, terminamos nossa leitura com “Resisto”, de Louise Queiroz, que diz: “Meu verso é negrume / que reluz sobre a pele da noite vasta. // A carne viva / sob o cipó bordado de navalhas. // É força / grito / luta. // O incômodo / o corte / a faca. (p. 222). Deste canto que é incômodo, como deve ser a poesia, os Cadernos Negros cantam a arte e a política, e morte e a vida, e nos incitam à luta contra o racismo, contra o massacre da população negra e contra aniquilação dos nossos sonhos como povo. E valem, tanto pelo incentivo ao hábito de leitura poética, quanto pelo fomento à difusão de conhecimentos e informações, desenvolvendo e incentivando a arte, os estudos e as pesquisas sobre literatura e cultura negras.

Os êxitos são tanto pela duração, esse “resistir”, haja vista que a publicação é regular dentro da sua periodicidade anual desde sua fundação, nestes 38 anos; e pela importância de seus textos, de estéticas afro-centradas, afirmativas, que revelam a diversidade do negro, marcando sua existência, reclamando seu espaço, como dissera o já falecido poeta Arnaldo Xavier, nesse “Brasiloyro”.

 Natal, RN,25 de julho de 2017

Referência

BARBOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos Negros 39: poemas afro-brasileiros. São Paulo Quilombhoje, 2016.

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* Gustavo Tanus é Bacharel e Licenciado em português, Bacharel em edição. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e doutorando em Letras, Literatura Comparada pela UFRN. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, NEIA/UFMG.


Referência

RIBEIRO, Esmeralda; Barbosa, Márcio (Org.). Cadernos Negros 39: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2016.