Prumos e rumos estéticos: caminhos da poética negra em Negrhúmus líricos, de Cuti
Gustavo Tanus*
Unidade
grilhetas tilintarão por muitos séculos
coração
couraça de raça em guerra
diversas vezes disparado
quando avestruz
a cabeça sob a areia
lanças brotam nas costelas
e o pânico
turbilhão nas veias
ilusão imaginar espelho impávido
só o olhar do outro pode
refletir a vida e a morte
puro deus da hipocrisia
e tantas outras cognitivas tralhas
inerte
ante a inundação de vingança
que a todos envolve
feito herança atávica
a destilar um mar de sofrimento e morte
caminhada longa
não se computa batidas ou passadas
mas rancor que se deixou pelas estradas
e que outros não nasçam
da podridão da pátria amada.
(Cuti, p. 28).
As sínteses do povo nação, a metáfora de "muitos como um" (BHABHA, 2013) e a noção de uma comunidade homogênea − convivendo, em democracia racial − se deram por meio do constante apagamento das brutalidades e violências originais, e, ainda se dão, no momento em que colocamos isso em discussão, pela tentativa de desqualificação dos nossos argumentos e discursos que são contrários à ideia branca dominante. É o que diz o poema "Vocês aí...":
Isso já, há muito tempo, vem sido discutido e tem sido trazido à pauta, tanto por intelectuais negras e negros, quanto por escritoras e escritores negros, em maneiras muito diversas, ora consideradas mais combativas, ora de modo mais velado. O que devemos ter em conta é que a questão é deveras complexa, e tem diversas nuances: a questão racial brasileira não é algo a ser superado, mas sim a ser discutido, como um problema atualíssimo que é, no interior de campos − filosófico, e literário − de embate/debate no qual o negro é historicamente silenciado.
Dissemos isso como intróito para a leitura dos textos de um dos escritores mais versáteis da literatura negra, com uma produção excelente tanto em prosa quanto em versos, a poesia de Cuti é constituída pela renovação constante das formas e estratégias estéticas. É verdade dizer que sua lírica possui outros ritmos e outras cadências que discutem não apenas o racismo, mas a estrutura histórica social na qual está imbricado um sistema complexo que cria a imagem do "brasileiro" padrão, cidadão deste brasiloyro, como disse o poeta Arnaldo Xavier (1986), "[...] brasil / de privilégios sem par" (p. 40), e que "aprisiona" o negro a uma imagem da perversidade, da incapacidade, também silenciando seu discurso e aniquilando seu corpo − tanto físico, nos "hematomas diários"(p. 41) e nas chacinas cotidianas "de tocaia pelas esquinas" (p. 76), quanto textual, pela ausência como autor e autora em grandes editoras e nas feiras, festas e academias literárias. Para tanto, a poesia de Cuti revela não apenas os efeitos e consequências desse sistema, mas também o outro lado, a branquitude mantenedora do status quo, cujos defensores insistem em continuar tratando seus privilégios como se fossem direitos.
Negrhúmus líricos possui três partes "Negrhúmus" (p. 21-78), "Húmus líricos" (p. 81-134) e "Rhúmus" (p. 137-155). A primeira parte trata, de modo geral, de modos de ver/modos de escrever, sobre a constituição do ser negro, entre o conhecimento ensinado e introjetado pela pedagogia da nação e o autoconhecimento: "procurei no espelho / nenhum rosto havia / só um branco brandia seus desaforos" (p. 46); "[...] os brancos falam de palmares / como não sendo seu / eu falo dele / porque ele sou eu" (p. 59).
A voz poética canta outras questões: versa sobre os escombros do Haiti (p. 57), sobre episódios racistas dos jogos de futebol ("Irados Uacaris", p. 27; em "Jogo", p. 33); canta os modos de sobrevivência que são mesmo uma violência obrigatória, como no poema "Jeitinho" (p. 61), fala dos males do álcool, que vitima a população negra, no poema "Constatação" (p. 70).
Versa sobre metalinguagens, como do poema "Persistência" (p. 21), que trata das possibilidades do verso, estas que dirão sobre sua essência, ou do poema "Metaforando" (p. 30), em que a metáfora, um recurso poético importante, pode servir como estratégia de esconder a discussão necessária a pleno verbo: "quanto mais se esconde o rosto / atrás da metáfora / mais elogios / e não é de graça [...] é preciso esconder / escrevendo certo sem linhas tortas / esta conversa sobre raça / que eles não suportam" / ter o rosto atrás da metáfora / a fórmula / de branquear a diáspora". Vemos também que o ponto de referência da voz poética parte não do branco ao negro, mas perfaz um outro caminho, tendo o negro como ponto de partida. Assim, o branco brasileiro, "euroquases" (p. 36), cuja cor alva é dada como padrão nessa hipocrisia nacional, é este ser desbotado, sobre o qual não se discute, como canta o poema "Tabu": "como se pecado fosse / ninguém fala de brancos" (p. 34).
Destacamos, ainda, dessa parte, o poema abaixo e como a voz poética trabalha as possibilidades e as certezas, dentro do que são as oportunidades dadas aos sujeitos negros.
Nesse poema, a voz poética canta a certa vida incerta de uma mulher negra, entre a violência da estética feminina padrão que ataca o seu cabelo e seu corpo negros, e a violência social pela insegurança do trabalho informal, entre a solidão de uma mulher preterida como parceira, e a impossibilidade de escolher sua profissão. Isso é revelador da questão não resolvida com a "abolição", esse desnorteio da lei, que libertou os escravizados, sem, no entanto, trazer igualdade de direitos e inclusão social. Sobre isso, veja o poema abaixo:
Destacamos, ainda, um trecho do poema "Poetasias", que é bem crítico das matérias poéticas comuns aos negristas, que cantam − às vezes inocentemente, outras tantas, intencionalmente − nostalgias e pedidos de comiseração, porém, quando se traz pungentes questionamentos acerca da realidade racista, se enraivecem.
No poema "Olhar Raciscêntrico", a voz poética trabalha as obras de Debret e Rugendas em suas suavizações das imagens e o apagamento da violência original (a que tratamos no início desta resenha). Essas imagens não tratam da arte e cultura negras, muito menos dos indivíduos e sua humanidade. "[...] assim pintado o passado só tem lendas / pra você não pensar nem saber / decepada foi a perna / do saci pererê / fugido pelas sendas / sob as palhas de obaluaiê" (p. 73).
O poema "Casarão paulistano" é um primor por ir além da noção "pedra e cal" que cultivam os entusiastas dos patrimônios históricos e artísticos, estes são vistos como símbolos de um passado colonial idílico, da comunhão pacífica entre barões, baronesas, senhorios, sinhás e escravizados. Estes lugares de memória que são belos por fora, em sua compleição estilística à européia, carregam, em sua estrutura, a dor e o sofrimento impingidos não só a seus antigos construtores, os escravizados daqueles idos, mas também àqueles que, hoje, são consequências diretas dessa beleza guardada em seus belos frontispícios.
De modo geral, na segunda parte, intitulada "Húmus líricos", apresentam-se outros tipos de poemas em relação a seu conteúdo poético. Não é correto lê-los em diferença de subtração em relação à primeira parte; imaginando-se (e este é quase todo argumento dos conservadores) que o tema é algo a ser vencido para convencer, ao fazer um poema bem escrito. Dito isto, acreditamos que a qualidade poética, o traço sublime, o ritmo perfeito ("zelo / para manter os elos") têm outras pertenças, que não é a que tacha temas, e mesmo formas, muito menos são aquelas que não respeitam a humanidade do escritor e de sua escrita.
É bem fácil perceber, no ambiente literário, uma certa dinâmica de exclusão − e neste momento não falamos apenas sobre a cor negra da pele − são pelos especialistas nomeadas "militâncias"; e a luta pela manutenção dos privilégios da branquitude, ou mesmo o silêncio das brancas-artes não são modos de militar? Igualmente, há, como em todo movimento dinâmico, modos de inclusão de temas e formas negras, suavizados, pasteurizados, e transformados em mercadorias, por Elvis Presleys e Eminems da literatura.
Após esses parênteses entremeando a leitura da segunda parte do livro, é possível dizer que os poemas são mais intimistas, tratando da questão do ser. Mas isso não quer dizer que ele se exime de mostrar-se como é externamente. A voz poética parece preocupar-se com mostrar-se internamente, suas humanas inquirições, também nos modos de ver/modos de viver segundo a cultura e tradição negras.
Dessa forma, destacamos o poema "Horizonte do Ori" (p. 86) que trabalha, por meio de imagens da natureza, modos de percepção metaforizados dessa natureza, próprios do povo de Santo, estes inicialmente reconhecidos pelo vocábulo "Ori", que, para os iorubanos, quer dizer cabeça. Ou ainda, visto no poema seguinte, "Infindável" (p. 87), que trata dos conflitos de amor e sua resolução, entre a reverência a Elegbara e o "padê ternura" a Oxumaré. Ou, como no poema "Obediência" (p. 95), que canta a negação do outro ao relacionamento e a aceitação da voz poética: "disseste não / obedeci / cumprindo a lei do teu ori / [...] minha voz secou / no oriki / que não te fiz / / cufaste [mataste] / e eu era apenas aprendiz."
Percebemos também que a voz poética canta o amor, a paixão, como em "Ritual da paixão" (p. 88); ou os embates do jogo amoroso, entre lascividade e pulsões, como em "Talho na madrugada" (p. 96-97), versa sobre o canto da poeta-musa que o trata como muso, em "Amorido" (p. 116).
Há, ainda, nesta parte, uma série de poemas intitulados "Coitado-me 1" e vai até "Coitado-me 5" (p 117-121). Nela, a voz poética canta: "o amor que não acaba / desaba" (p. 123), o desencontro gerado pela briga, a descoberta do desprezo dela, a desilusão amorosa, e o muro de mágoas erigido entre os amantes. "[...] relembro nossas brigas / o golpe / a minha queda // ainda não satisfeita / pontudas palavras lanças / contra a minha esperança / que vai se afogando cega // meu coração atingido / vai transformando este poço / em vulcão ativo // água se transforma em lava / lava em meu sangue vivo" (p. 120).
A terça parte do livro, intitulada "Rhúmus" (p. 137-155), é a seção com menos poemas, com dezesseis ao todo. Vejamos o primeiro poema dessa parte, intitulado "Cena":
Nele, percebemos a encenação poética de um episódio, nas performances dos corpos, que, para nós, aponta para o que cremos ser um rumo para a estética negra, a que trata das performances dos corpos: físico, como nesse poema, e da escrita. Esta, pode ser, de certa forma, lida no fragmento do poema metalinguístico, "Em se fazendo":
Estas performances − mais verdadeiramente negras, porque é muito difícil serem copiadas ou cooptadas − são, para nós, os novos prumos da literatura negra contemporânea, que tem superado o discurso sobre o que deviam ser seus paradigmas (geralmente criados dentro de modelagens brancocidentais), não por uma ideia de evolução ou progressão, mas a abertura para caminhos complementares: estético e político.
Destarte, o mais recente trabalho de Cuti percorre essas sendas, sendo concomitantemente um livro grande, com um total de 114 textos de belos e inteligentes arremates poéticos, e, por isso, um grande livro.
Belo Horizonte,
20 março de 2017.
Referências
BHABHA, Hommi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
SILVA, Luiz. (CUTI). Negrhúmus líricos. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2017.
XAVIER, Arnaldo. Dha lamba à qvizila – a busca de hvma expressão literária negra. In: ALVES, Miriam; CUTI, Luiz Silva; XAVIER, Arnaldo (Org.). Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura / Imprensa Oficial, 1986.
* Gustavo Tanus, Bacharel é Licenciado em Letras/português, Bacharel em Edição, Mestre em Letras, Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela UFMG, Doutorando em Letras, Literatura Comparada, pela UFRN e pesquisador do NEIA/UFMG.