Carolina Maria de Jesus na Academia

 

Constância Lima Duarte* 

  

 

15 DE JULHO DE 1955

Aniversário de minha filha Vera Eunice.
Eu pretendia comprar
um par de sapatos para ela.
Mas o custo
dos gêneros alimentícios
nos impede
a realização de nossos desejos.
Atualmente somos escravos
do custo de vida.
Eu achei um par de sapatos
no lixo,
lavei, e remendei
para ela calçar.
 

Eu não tinha um tostão
para comprar pão.
Então eu lavei 3 litros
e troquei com o Arnaldo.
Ele ficou com os litros
e deu-me pão.
Fui receber o dinheiro do papel.
Recebi 65 cruzeiros.
Comprei 20 de carne,
1 quilo de toucinho
e 1 quilo de açúcar
e seis cruzeiros de queijo.
E o dinheiro acabou-se.
 

Carolina Maria de Jesus
1960

A publicação de Quarto de despejo em 1960 revelou ao país e ao mundo uma das personalidades mais controvertidas da cena literária e cultural brasileira. Mineira do Triângulo, nascida na pequena Sacramento em 1914, Carolina Maria de Jesus cumpriu a sina de inúmeros outros desvalidos e migrou, em meados do século, para a fervilhante São Paulo da industrialização, dos empregos e oportunidades propagadas pela mídia. Após o nascimento do primeiro filho, perde a possibilidade de trabalhar em “casas de família” e acaba se “instalando” na favela do Canindé, palco das cenas principais de Quarto de despejo. Organizado pelo jornalista Audálio Dantas, o livro transcreve partes do diário desta que se tornou a primeira mulher remanescente de escravos a compor “de baixo para cima” a crítica mais aguda e profunda ao processo de modernização conservadora e excludente então em curso no Brasil, como se pode constatar já nos dois primeiros parágrafos, citados em epígrafe.

E é do “quarto de despejo” da cidade – a favela – que emerge o lugar de fala dessa autora singular, que frequentou a escola apenas nos dois primeiros anos do então chamado “Curso Primário”. A metáfora bem se enquadra no conceito marxista de “lúmpem-proletariado”, pois lá reside aquele “resto social” ou “exército de reserva”, amontoado em moradias precárias, a viver dos restos e do lixo produzido pela “sala de visitas” e demais espaços privilegiados da urbe moderna em processo de expansão. Restos estes que dão sustento à autora e aos três filhos que tem para criar.

Mas além de papéis, papelões, latas e garrafas, a autora autodidata encontrava também livros, guardados zelosamente numa mala velha junto com outros que ganhava. E ainda catava cadernos cheios de páginas em branco, que utilizava para ali lançar o registro de suas angústias e alegrias. Conforme confessa no diário, para ela, escrever era o melhor calmante. Com o tempo, a escrita vai ultrapassando o registro das acontecências, para ir além, se arriscando nos versos e letras de música, contos e, até mesmo, textos teatrais e pequenos romances.

O resultado é um conjunto de trinta e oito cadernos manuscritos, guardados pela filha Vera Eunice e zelosamente recuperados e microfilmados pelo historiador José Carlos Sebe Bom Meihy. O pesquisador é responsável por importantes publicações, tais como Antologia pessoal (1996), que reúne os poemas; e Meu estranho diário (1996), com trechos ausentes de Quarto de despejo; além de estudos críticos de relevo, como Cinderela negra (1994), organizado em parceria com o historiador estadunidense Robert Levine, entre outros.

E são justamente as reflexões de Bom Meihy que abrem o presente volume Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de Jesus, organizado pelas pesquisadoras Aline Arruda, Inês Marreco, Iara Barroca e Luana Tolentino. O livro reúne quinze ensaios críticos apresentados na UFMG durante o VI Colóquio Mulheres em Letras, que homenageou a escritora em 2014, por ocasião de seu centenário de nascimento. Em seu texto, Bom Meihy argumenta a favor da escrita de si e destaca seu ponto de partida:

Sem cair no conceitualismo raso da polêmica que se perde discutindo se diário é ou não literatura – se testemunho, documento histórico, gênero indefinido e/ou híbrido – partamos para o significado social e oportuno que este tipo de escrita provocou e que teve efeito, qual dinamite poderosa, de abrir fendas em muros consistentes, comprometendo o formalismo machista dominante. (BOM MEIHY, p. 28).

Em seguida, tece paralelos com o diário de outra mineira, Maura Lopes Cançado, e argumenta que os escritos memorialísticos de Carolina formam um conjunto, sendo relevante o estudo do Quarto de despejo em diálogo com Casa de alvenaria, Diário de Bitita e Meu estranho diário, marcados todos pelo ímpeto crítico da “diarista”.

Memorialismo e resistência reúne ainda instigantes formulações críticas. Elzira Perpétua, autora de A vida escrita de Carolina Maria de Jesus (2014) e reconhecida como uma das mais destacadas estudiosas da autora, comparece com uma leitura comparada dos diários, destacando a visada lírica; já Maria Madalena Magnabosco investiga as “fronteiras da palavra” e analisa certas repetições como sintomas; Mário Augusto Medeiros da Silva se detém no associativismo político e cultural do negro nos anos 1960, para discutir as relações da autora com o Movimento Negro. Já Nazareth Fonseca volta-se para a atividade literária de Carolina e destaca:

Passados mais de 50 anos do lançamento de seu primeiro livro, o nome de Carolina Maria de Jesus volta a ser citado, porque vários estudos sobre a sua obra, inclusive sobre os manuscritos ainda inéditos, indicam facetas de sua escrita que dizem do seu desejo de alcançar o mundo das letras, mas, sobretudo, ressaltam as imagens construídas por ela sobre o significado de poeta, escritor, literatura que instigam a reflexão sobre as representações imaginárias que levam a escritora a ver a si própria, por vezes, como alguém especial. Talvez esse seja o engodo maior que perseguiu Carolina Maria de Jesus até o final de seus dias, pois o fato de escrever, e de escrever livros, não lhe garantiu, depois de um efêmero sucesso, o reconhecimento que esperava. (FONSECA, p. 91).

E a estas se somam reflexões pertinentes de outros especialistas que tratam tanto das relações de Carolina com autoras – Alice Walker, Conceição Evaristo, Delia Zamudio e Virginia Woolf – como de escritos menos conhecidos, a exemplo de “O Sócrates africano” e “Minha vida”, estudados por Aline Arruda; bem como de questões ligadas a gênero e subalternidade, desenvolvidas com argúcia por Cristiane Côrtes.

Enfim, Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de Jesus se impõe desde já como fonte de consulta obrigatória para o crescente volume de pesquisas voltadas ao resgate crítico da escritora, cujos originais inéditos foram recentemente doados pelo professor Bom Meihy ao Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, que já os disponibiliza em formato digital para consulta.

Para encerrar, reproduzo a reflexão de Aline Arruda na Introdução do volume:

Diversidade e resistência são, portanto, palavras adequadas para se referir a Carolina. A diversidade retrata bem sua obra múltipla e variada. Resistência é ainda mais amplo e perfeito para defini-la, afinal, a biografia de Carolina está aliada à sua obra, e resistir aos percalços e dificuldades da vida tornou-a uma escritora porta-voz da resistência feminina, negra e marginal. Por isso os ensaios aqui reunidos merecem uma leitura atenta e instigam nosso olhar literário aos escritos de Carolina Maria de Jesus, como ela, centenariamente, merece. (ARRUDA, p. 10).

Referência

ARRUDA, Aline Alves; BARROCA, Iara Christina Silva; MARRECO, Maria Inês; TOLENTINO, Luana (Org.). Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de Jesus. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

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* Constância Lima Duarte é professora da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, ao Centro de Estudos Literários e Culturais, desta instituição, e coordenadora do Grupo de Pesquisa Mulheres em Letras. É autora, entre outros, de Nísia Floresta, vida e obra (2.ed., 2008), Dicionário de escritores mineiros (2010) e Imprensa feminina e feminista no Brasil, dicionário ilustrado (2016). Além de organizar inúmeras publicações, é responsável pelo resgate e reedição do livro pioneiro de Nísia Floresta Direitos das mulheres e injustiça dos homens (3. ed., 1989).