Conceição Evaristo em sua primeira biografia

 

Samira da Silva Maia*

 

Serem o ponto fora da curva é o que entrelaça Conceição Evaristo e Yasmin Santos – jornalista e editora carioca que se dedicou a erguer os rastros vivenciais da escritora mineira em seu primeiro retrato biográfico.

Conceição Evaristo: voz insubmissa, publicado em 2024, revela aos leitores o surgimento da escrita evaristiana e expõe a vocação da autora para a literatura. Apresentando uma trajetória que tem início na infância de Conceição, a obra desenvolvida por Yasmin Santos integra a “Coleção Brasileiras”, publicada pela editora Rosa dos Tempos, como parte de um projeto em busca de apresentar mulheres que construíram, expandiram e transformaram seus campos de atuação no país.

A partir de depoimentos exclusivos e uma ampla pesquisa, a biografia desenvolvida por Santos expõe, já nas primeiras páginas, as similaridades que fizeram o caminho da jornalista cruzar com o da ficcionista e poeta. Primeiro, como leitora, depois, como “observadora, ouvinte e aluna”, nas palavras da própria Santos. “Estou ligada a Conceição Evaristo pelo encantamento – estético, político, da ordem do mistério e do afeto” (p. 17). Assim, no encontro de duas gerações, a recuperação até o momento da trajetória de uma das maiores escritoras da literatura brasileira é realizada. Ao revelar o caminho árduo como mulher negra, Conceição Evaristo confessa:

Não vou conseguir dar um depoimento, uma coisa seca sobre mim mesma’, ela me respondeu com olhos preocupados, tendo o cuidado de me alertar antes de lançar um feitiço. ‘Falar da minha origem, da minha família, da favela, coisas que inspiram minha criação literária, faz com que eu navegue pela ficção. Trazer à memória é fazer ficção’. Respondi que a autoficção é inevitável. Ela, aliviada, sorriu e ajeitou os óculos: ‘Está certo. Então posso ficar bem à vontade. Vamos do princípio. Quero te contar uma história que a minha mãe me contava’ (p. 29).

A leitura do livro nos conduz a momentos decisivos na formação de Evaristo, iniciados ainda quando morava na extinta favela Pindura Saia, na capital de Minas Gerais. Filha de Joana Josefina, Conceição faz parte de uma prole de oito irmãos, fato que revela uma infância dolorosa, marcada, muitas vezes, pela falta do que comer. E que leva a menina a sua primeira mudança: “fui morar com a minha tia na certeza de que sobraria um prato de comida na casa da minha mãe. Seria uma boca a menos para ela alimentar” (p.34-35).

Ao ter um quarto só seu, podendo ficar quietinha lendo e escrevendo, Evaristo começou a dedicar-se aos estudos. À tia, Maria Filomena, conhecida como Lia, e à mãe Joana, são direcionadas um profundo agradecimento, como tantas outras figuras que atravessaram o caminho da família.

Foram as mãos lavadeiras de Joana, acostumada a riscar sóis ao chão, que guiaram os dedos de Conceição no exercício de copiar o próprio nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, difíceis deveres de casa para crianças oriundas de famílias semianalfabetas. Foram as mãos de Joana, que folheavam revistas velhas, jornais e poucos livros recolhidos dos lixos e recebidos na casa das patroas, que aguçaram e mantiveram viva a curiosidade de Conceição para a leitura e a escrita. Mãos lavadeiras que pacientemente costuravam cadernos feitos com papéis de pão e que evidenciavam a riqueza do cuidado e a pobreza material dos Evaristo numa escola que recebia a classe média belorizontina (p.39-40).

Impondo uma seriedade no trabalho da recordação memorialística, Yasmin Santos delineia como o ambiente escolar fez com que Conceição Evaristo encarasse a realidade de ser uma criança negra em uma escola elitizada. Entre o desejo de aprimorar o conhecimento e as dificuldades na aprendizagem devido à dislalia, distúrbio da linguagem que dificulta a articulação de determinadas sílabas, Evaristo, ainda teve que lidar com a discriminação que a impedia de fazer parte do “pavimento único”, local onde estavam as salas mais arejadas e com maior rendimento escolar. À jovem, restaram as salas do porão da escola, destinadas às crianças “que tinham problemas de aprendizagem, que repetiam de ano e que traziam na pele uma negra-cor” (p. 50).

Adentrando em mais um caminho que determinou a consagração da escritora mineira na contemporaneidade, Yasmin Santos retrata a influência da religião nas obras evaristianas. A religião católica, presente nos tempos escolares, foi entrelaçada com as diferentes crenças pregadas dentro de casa. “A menina, com o catolicismo como sua religião formal, convivia com diferentes religiosidades em casa. Rezava o rosário enquanto ouvia as rezas das benzedeiras da favela e assistia ao tio Totó participar da congada” (p. 55).

Entre o catolicismo e “outras manifestações em que ela podia se sentir acolhida” (p.55) e que lhe faziam sentir que Deus podia ter a sua cor, Conceição Evaristo ingressou na Juventude Operária Católica (JOC), movimento responsável por despertar um olhar político sobre a realidade brasileira. Contudo, “as questões étnico-raciais só amadurecem dentro de si ao longo da década de 1970, quando partiria rumo ao Rio de Janeiro e se aproximaria dos movimentos negros” (p. 73).

Se, em Belo Horizonte, a jovem já havia despertado interesse pela literatura e começara a escrever, a terra carioca foi essencial para seu desenvolvimento como escritora, abrindo caminhos para sua consagração na literatura brasileira. Processos seletivos para a docência, a perseguição pela ditadura militar por integrar a JOC, o encontro com o amor – maternal e romântico – e o autoconhecimento que lhe fez compreender a saúde mental para uma mulher negra, são partes das vivências que Evaristo relata nas conversas com Yasmin Santos, ora em encontros presenciais, ora atrás da tela.

Com a delicadeza de mergulhar em memórias afetadas por rastros ficcionais, Conceição Evaristo: voz insubmissa traça perfis tomados pela influência, a exemplo da intervenção dos enredos da escritora em milhares de jovens como Yasmin Santos, que se encontrou ao ler e escutar Conceição Evaristo. Como também as influências de Evaristo, que vão do seio familiar a Carolina Maria de Jesus e a Angela Davis, mulheres que impulsionaram Conceição a se voltar para a escrita, para o movimento político e até para o perfil marcado pelo cabelo black.

Ao percorrer a vida e o projeto literário que consagrou Conceição Evaristo, o trabalho de Yasmin Santos expõe o confronto com a realidade que determina às meninas negras e vindas da favela a seguirem caminhos divergentes dos construídos por Evaristo e Santos. Ignorando o silenciamento social, as mulheres negras expõem o que é o encontro com a palavra que determina a elas serem, com orgulho, o ponto fora da curva.

Belo Horizonte, fevereiro de 2025.

 

Referência

SANTOS, Yasmin. Conceição Evaristo: voz insubmissa. Joselia Aguiar (org.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2024.

 

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* Samira da Silva Maia é Bacharel em Letras pela UFMG. No momento, cursa Licenciatura em Letras na mesma Instituição, além de atuar como estagiária o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA – e integrar o projeto literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira: pesquisas em rede, cadastrado no CNPq.

 

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