Mistérios de uma nova Clarice

 

Simone Pereira Schmidt*

A poderosa escrita de Clarice me atingiu em cheio. Lembro-me perfeitamente da noite em que seu texto me chegou de Exeter, na Inglaterra, onde ela estava realizando parte do seu doutorado. Quando comecei a ler sua história, fui sendo tomada pela surpresa e emoção. Nos conhecíamos havia muitos anos; como pode uma pessoa com quem convivemos há tanto tempo desvelar diante de nós, assim de repente, a narrativa de uma vida de que sequer suspeitávamos?

Minha primeira lembrança de Clarice são seus olhos, inquietos, curiosos, assustados. Se me ponho a rememorar esses anos distantes, ainda vejo seu olhar se acender numa aula, creio que num momento em que a literatura e ela começavam este longo caminho de encontros. Hoje penso que ela iniciava ali, com a literatura, sua busca por uma cidadania que, então, ela mais adivinhava do que de fato conhecia. Eu, no entanto, não sabia quase nada de sua história, das intermináveis e duras caminhadas que enfrentou até chegar ali, naquele lugar, dentro da sala de aula, no espaço acadêmico, esse lugar que para alguns era tão obvio, tão sem surpresa, quase uma ‘natural’ consequência de suas vidas tranquilas. Para Clarice, tudo era novo, e aquele estar ali era um prêmio, era o troféu que conquistava por puro merecimento.

Sua lúcida consciência acerca do seu próprio percurso não a deixa esquecer, entretanto, que aquilo que conquistou – e que não é pouco: uma escrita própria, uma voz que é sua, um lugar no mundo –, sendo um lugar de mérito, não apaga as outras tantas vozes que ainda esperam sua vez. Sua trajetória, sua determinação, me lembram as palavras de Gloria Anzaldúa, escritora chicana que com suas palavras desafiou fronteiras e poderes:

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. […] Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você (Anzaldúa, 2000).

Assim percebo a voz desta nova escritora. Uma voz que vem para cobrir e corrigir silêncios, para dizer aquilo que foi apagado, abafado, emudecido sobre muitas e muitas histórias de vida que atravessam nosso país e muitos outros lugares do mundo. Histórias de vida marcadas pelo peso avassalador do preconceito, da desigualdade e da injustiça, mas que, teimosamente, apesar de tudo, permanecem vivas, à espreita, à espera. Ao tomar a palavra, essa escritora, que agora se apresenta para nós, se coloca vividamente em sua narrativa, ao mesmo tempo que nos propõe personagens, espaços, tempos e ações construídos com a firme delicadeza de quem conhece literatura. Como boa leitora, ela aprendeu a arte de narrar, aquela que nos conquista e nos toma pela mão, para nos levar, seduzidos, do início ao desfecho, querendo saber, percorrer com ela os mistérios do antes e do depois. A força e a beleza de sua história se espalham por todas as páginas deste livro, que felizmente podemos ter em nossas mãos. Trata-se de um verdadeiro encontro.

Quando li seu relato, pensei em calar minha voz, e só consegui ser tomada pela voz de Clarice, que eu, finalmente, descobria. Que muitas e muitas pessoas possam descobri-las, agora que, finalmente, e para nossa sorte, ela se torna pública.

Referências

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Trad. Edna de Marco. In: Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.

FORTUNATO, Clarice. Da vida nas ruas ao teto dos livros. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.

 

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* Simone Pereira Schmidt é Doutora em Teoria Literária pela PUC-RS e Professora Titular aposentada da UFSC. É autora, entre outros, de Gênero e história no romance português - novos sujeitos na cena contemporânea (2000). E coorganizadora, entre outros, de Vozes femininas descentradas (2018), Poéticas e políticas feministas (2004), e da Revista Estudos Feministas nº 3/2006. 3. ed. v. 14.

 

 

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