Antonieta de Barros e Jeruse Romão:
escrevivências de negras catarinenses em seus tempos

 

Azânia Mahin Romão Nogueira*

 

Em 2019, minha mãe me entregou em um encadernado a porção deste livro que fala sobre a vida de Antonieta. Logo na primeira leitura do que viria a ser a obra que está em nossas mãos, eu percebi que estava diante de algo muito maior do que uma biografia. Mais do que o compromisso de contar a história de vida de uma negra com uma trajetória singular, o trabalho da professora Jeruse Romão reposiciona o que sabemos e apresenta tanto mais que de nós fora roubado sobre Antonieta de Barros.

Grande parte do que é dito sobre Antonieta de Barros é um apanhado dos muitos títulos que ela adquiriu durante a vida: primeira deputada estadual mulher do Brasil, primeira (e até hoje, única) deputada estadual negra de Santa Catarina, cronista e jornalista, autora do livro Farrapos de Ideias, diretora do Instituto de Educação Dias Velho. Nas páginas do livro, o que nos aguarda é conhecer Antonieta de forma contextualizada, aprendendo que a trajetória dessa mulher negra foi traçada junto ao seu coletivo familiar, que informava muito de seus desejos e posicionamentos.

Fugindo das narrativas que roubam de todos os Barros o protagonismo de suas próprias histórias, Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil faz bem mais do que dar substância à vida política da professora ao considerá-la como a mulher de seu tempo que era: seus pioneirismos, suas contradições, enfim, sua humanidade. Assim, o livro serve como denúncia da produção de silêncios acerca da trajetória de Antonieta, considerando que tanto o que é dito, não dito, ou ainda, especulado sobre ela são resultados de articulações de interesses sobre a memória da professora.  

Isso só é possível porque esta obra foi escrita por uma outra “Maria da Ilha”: a professora Jeruse Maria Romão. Se a gente fizer um mapa dos lugares que materializam espaços importantes para entender como Antonieta e Jeruse territorializam Florianópolis, muitos lugares irão se coincidir, e não é à toa. Jeruse é uma das herdeiras do legado político, educador e social de Antonieta, e a afinidade da energia de luta de ambas se materializou em todo o processo de escrita desta obra, que, felizmente, pude acompanhar. Muito mais do que escrever um livro, o que parecia motivar a pesquisa e a escrita que gerou esta obra era romper com uma prática desumanizadora ao recontar a história de Antonieta, que era vista como um ícone, fruto de um apadrinhamento velado de uma oligarquia catarinense. Fez-se necessário uma mulher negra, educadora, sujeita política de sua própria história de forma pioneira para honrar a existência de sua mais velha.

O trabalho de Jeruse Romão é, de diversas maneiras, disruptivo: a efetividade desprendida que recusa transformar Antonieta em objeto de pesquisa acaba por escrever um livro com uma fluidez que nos permite recompor uma memória coletiva sobre ela. Ao fim da leitura, mais do que conhecer fatos sobre Antonieta, sentimos que, finalmente, a conhecemos. Além disso, este trabalho é claramente produto de uma intelectual que não divorcia a oralidade da escrita, fazendo que o resultado final soe como uma contação aos olhos que acompanham o desenrolar da história. Esse é apenas um dos elementos que encharcam esse livro de ancestralidade, que não se limita ao fato de estar ativando no presente a memória de uma mais velha.

Aliás, a luta pela preservação da memória do povo negro catarinense é uma marca da atuação da professora Jeruse em todas as frentes que ocupou. Um exemplo é o seu envolvimento na construção da lei municipal pelo ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em Florianópolis desenvolvida no fim da década de 1990, quando chefe de gabinete do primeiro mandato construído pelo movimento negro no município.

Dentre os muitos livros que organizou, sua veia memorialista também está presente especialmente na publicação de Africanidades catarinenses e História da educação do negro e outras histórias. O amadurecimento dessa intelectual orgânica do movimento negro brasileiro atinge um novo ápice com a chegada deste livro. Nele, Jeruse desafia uma das principais mazelas do racismo epistemicida: a capacidade de imaginar. Ao utilizar de um modo de escrita que considera as limitações irreparáveis promovidas pelo racismo não apenas nas possibilidades de vida de Antonieta e de toda a população negra na época, mas também na construção da memória sobre nossas histórias, Jeruse desloca a narrativa e cria uma possibilidade de vida complexa. Assim, foge de uma desumanização que reforça uma perspectiva meritocrática que resume Antonieta à uma figura solitária de excelência negra reconhecida pela branquitude e faz deste livro um lugar de reencontro dela com aquelas e aqueles que podem reconhecer em seus corpos, suas trajetórias, suas convicções, um pouco de Antonieta e vice-versa.

Tenho certeza que, com este livro, novos espaços de imaginação serão criados e, neles, muitas outras “Marias da Ilha” se constituirão, tão comprometidas com a transformação da realidade rumo à uma sociedade livre de todas as formas de opressão, tal como lutam Antonieta e Jeruse. Em um contexto de tantas perdas, hoje ganhamos Antonieta. Que esta escrevivência nos esperance a construir outras possibilidades de existência para todes nós.

Referência

ROMÃO, Jeruse. Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Florianópolis: Editora Cais, 2021.

Nota

* Azânia Mahin Romão Nogueira é professora, Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Integrante do Núcleo de Estudos Negros (NEN-SC). O presente texto reproduz a apresentação da autora ao livro de Jeruse Romão.

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