Carolina Maria de Jesus:
a escritora pelos olhares de seus biógrafos

Lorena Barbosa*

Não digam que eu fui rebotalho,
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava por trabalho
Mas sempre fui preterida.

Digam ao meu povo brasileiro
Que o meu sonho era ser escritora,
Mas eu não tinha dinheiro
Pra pagar uma editora.

Carolina Maria de Jesus
Folha da Noite, 09/05/58

 

Na sociedade contemporânea, com os avanços dos movimentos progressistas, como o feminismo, o movimento negro e muitos outros que têm como pauta as diversas identidades sociais, as alteridades de diferentes áreas, que foram silenciadas ou invisibilizadas por determinadas opressões, vêm sendo resgatadas e se destacando, sobretudo no mundo das artes. Nisso, é muito importante que conheçamos a produção literária das mulheres negras, focando nas suas múltiplas vozes, discursos e concepções de mundo. Para tanto, torna-se quase imprescindível a leitura e familiaridade com a autora que, na década de 60, anos tensos que antecederam o golpe militar, a partir da publicação de sua obra Quarto de Despejo, fez a elite brasileira, os críticos literários e a sociedade que vivia num país de intensas mudanças se perguntar quem era a escritora, cronista, sambista, favelada, mãe, amante e mulher, Carolina Maria de Jesus.

Com o grande sucesso da obra que percorreu o mundo e foi traduzida para 14 línguas, o país ouvia pela primeira vez o grito da mulher negra que desmascarava o mito de um Brasil míope à vista do progresso de ideias. Na “sala de visitas”, a elite desfrutava dos privilégios de um passado escravocrata. No “quarto de despejo”, a favela colhia a fome e a miséria. A autora, que também escreveu e publicou Casa de Alvenaria, Pedaços da Fome, Provérbios, Diário de Bitita, Meu estranho Diário e Onde Estaes Felicidade?, algumas dessas obras postumamente, chamou a atenção de uma classe acostumada com a dita “alta literatura”. As perguntas sobre sua origem, formação escolar, referências, seus amores, dores e vazios ainda ecoam nos dias atuais. Afinal, quem era e de onde veio essa mulher?

Geograficamente, Carolina Maria de Jesus nascia em terras mineiras. No dia 14 de março de 1914, nos berços de Sacramento, no Triângulo Mineiro, Dona Maria Carolina de Jesus, mais conhecida como dona Cota, dava à luz a Bitita, apelido carinhosamente usado para chamá-la durante toda a infância. Já adulta, agora enraizada em terras paulistas, mais precisamente na favela do Canindé, Carolina alternava a sobrevivência como catadora de papel num barraco que abrigava seus três filhos e o sonho incessante de ser escritora famosa. Seus diários materializavam a rotina desgastante de lidar com o racismo, o machismo, a exclusão social e a fome.

Literariamente, isso não bastava. As pessoas queriam mais. Afinal, quem foi Carolina? Eliana de Moura Castro e Marília Novais de Mata Machado, ambas professoras da Universidade Federal de Minas Gerais, foram as pioneiras no processo de reconstrução da história da escritora. Responsáveis pela produção da biografia Muito bem, Carolina!, lançada em 2007 pela Editora Arte, as autoras reúnem não só dados sobre a vida de Bitita, como também produzem um importante documento histórico sobre o Brasil da década de 60.

Na biografia, as pesquisadoras vão à busca das origens familiares de Carolina Maria de Jesus. Trazem, para o conhecimento público, informações sobre o seu passado, como a infância humilde em Sacramento e a herança escravizada do avô, Benedito José da Silva, tão admirado e enaltecido por ela. Outras informações importantes sobre sua trajetória também constam na obra, como o seu ingresso na escola particular de doutrina espírita e o começo da sua admiração pela literatura. Dividida em capítulos que simulam as fases importantes da vida da autora, a biografia narra processos como a mudança para São Paulo, o encontro com o jornalista Audálio Dantas, os desdobramentos da publicação de Quarto de Despejo e o silenciamento da sua voz pela indústria cultural.

Por sua vez, Joel Rufino dos Santos apresenta outra visão sobre essa figura tão emblemática. Para o historiador e críitco, ela foi a “escritora improvável”, considerada pelo intelectual marxista como “alienada”. Joel, em biografia de 2009, a descreveu como uma mulher que sempre se colocou do lado contrário a sua condição de negra e favelada. Contudo, confessa que, em boa medida, Carolina compõe uma personagem criada por ele. A biografia de Joel Rufino é composta de especulações com pitadas de realismo sobre quem foi, por trás de toda a fama, a pessoa que se transformou num dos maiores sucessos editoriais do país. Na perspectiva da luta de classes, Carolina era o fôlego.

Segundo Joel, Carolina poderia ser facilmente mais uma mulher brasileira, negra, pobre semianalfabeta e moradora das inúmeras favelas que se espalhavam pelo extenso território nacional. A sua história sofrida era compartilhada por uma gama de figuras femininas marginalizadas que, à época, lutavam pelo direito de sobrevivência em meio à fome e miséria. Porém, havia um detalhe que fazia Carolina se destacar entre as demais: sua paixão pela leitura e escrita, nomeada por ele de “grafomania”. Dividindo o seu tempo entre catar papeis, cuidar dos filhos e escrever, Carolina ia construindo o seu percurso literário muito além de teorias engendradas. Na experiência de vida, moldada por percursos muito peculiares de sua trajetória, rascunhava o que viria a ser uma das maiores escritoras do século XX.

Anos mais tarde, o crítico literário Tom Farias revisita Sacramento para trilhar os passos da filha de João Cândido. A biografia lançada em 2018, que reúne mais de 350 páginas, é a mais completa obra já publicada sobre a autora. A obra revela que Carolina, na adolescência, foi presa em Sacramento por carregar nos braços um livro, seu objeto preferido desde a infância. Em São Paulo, morreu, reviveu e morreu novamente como escritora. A minuciosidade com que a história da autora é retratada na produção de Tom Farias é, inegavelmente, de se espantar. Repleta de fatos nunca mencionados anteriormente sobre a grande mulher e escritora que foi, o crítico subverte, em muitas partes, a visão que fora construída sobre Carolina ao longo de todos estes anos. Nascida em terras quilombolas, carregava no sangue os processos de resistência. No extenso documento que resgata desde as riquezas naturais da cidade onde nasceu até a sua extrema decadência, Tom nos revela, inclusive, os conflitos psicológicos que a perseguiram no fim da vida e o seu desejo cada vez mais constante de autoextermínio. 

Fatos como sua estadia na cidade do Rio de Janeiro, as injustiças de sua infância pobre, a recepção do livro no país e fora dele, a visão de Carolina sobre movimentos sociais e sua lamentável queda na indústria editorial são informações que os leitores e admiradores de suas obras nunca haviam tido anteriormente. Segundo o autor, a narrativa é “a força criadora e criativa de uma mulher determinada a viver pelo seu ideal de vida”.

Mesmo diante de tantos olhares e versões, acredito que ninguém jamais irá se aproximar do que foi, de fato, Carolina Maria de Jesus. Nas suas próprias palavras, foi a mulher que deixou a sociedade abismada. Aquela que sempre e mais do que tudo quis ser uma grande escritora.

Manuel Bandeira a comparou a outra “de Jesus”, Clementina, brilhante sambista brasileira. Porém, Carolina é e ainda continua sendo indefinível. Mas uma certeza todos têm: para a elite, deixou os ecos de sua voz estridente. Para a população marginal, sobretudo as mulheres, deixou o legado da existência e pertencimento. Carolina não foi uma, foi mil. No coração de quem lê suas biografias, o sorriso no canto da boca e a assertividade ao terminar a última página vem acompanhada do mais sincero: muito bem, Carolina!

 

Referências

CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais da Mata. Muito bem, Carolina! - Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2007.

FARIAS, Tom. Carolina: uma biografia. São Paulo: Malê, 2017.

JESUS, Maria Carolina. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Livraria Francisco Alves: Editora Paulo de Azevedo Ltda., 1961.

JESUS, Maria Carolina. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

JESUS, Maria Carolina. Meu estranho diário. Organização de José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine. São Paulo: Xamã, 1996.

JESUS, Maria Carolina. Pedaços da fome. Prefácio de Eduardo de Oliveira. São Paulo: Áquila, 1963.

JESUS, Maria Carolina. Provérbios. São Paulo: [s. n.], 1963.

JESUS, Maria Carolina. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. Organização e apresentação de Audálio Dantas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1960.

JESUS, Maria Carolina. Onde estaes felicidade?. Organização de Dinha e Raffaella Fernandez. São Paulo: Me Parió Revolução, 2014.

SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação Biblioteca Nacional, 2009.

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* Lorena Barbosa é graduada em Letras da UFMG, ex-bolsista de Iniciação Científica do CNPq junto ao projeto literafro – portal da literatura afro-brasileira, Fase 2, e pesquisadora do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade.

 

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