Carolina Maria de Jesus em acervo 

Aline Alves Arruda*

Para a sorte dos pesquisadores e dos leitores da obra de Carolina Maria de Jesus e também para aqueles que só agora descobrem a produção literária da autora de Sacramento-MG, Sergio Barcellos organizou e publicou neste 2015 Vida por escrito: guia do acervo de Carolina Maria de Jesus, pela editora Bertolucci, conterrânea da autora mineira. O guia é resultado de um projeto maior: Vida por escrito: Organização, classificação e preparação do inventário de arquivo de Carolina Maria de Jesus, iniciado em 2013 pelo professor e pesquisador com financiamento do Edital Prêmio Funarte de Arte Negra. Além do livro, há também o portal Vida por escrito,1 que assim como a obra impressa, são valiosos instrumentos de pesquisa que mapeiam e descrevem o acervo disponível da escritora em seus locais de guarda.

Carolina ficou famosa principalmente pelo seu best-seller Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado pela primeira vez em 1960 e sucesso absoluto de vendas, traduzido para 14 línguas. Depois dele a escritora ficou esquecida e só recentemente tem voltado às discussões acadêmicas e à presença entre leitores, especialmente devido ao seu centenário, em 2014, que resultou em muitos eventos em homenagem a ela. Embora a maioria das pesquisas sobre a escritora sejam sobre sua obra diarística, Carolina escreveu diversos outros gêneros, como romance, conto, poemas e peças de teatro. Tudo isso nos cadernos que hoje estão disponíveis na forma original ou microfilmada em várias instituições como a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, o Acervo de Escritores Mineiros, na UFMG e a Biblioteca do Congresso, em Washington, nos Estados Unidos.

O livro do professor Sergio descreve minuciosamente todo o material sobre a escritora e onde está cada caderno ou rolo microfilmado, além de detalhar sobre as instituições e as condições em que se encontra o material, o endereço e os horários de funcionamento. É um verdadeiro mapa do acervo de Carolina Maria de Jesus. A produção bibliográfica da autora também é detalhada no livro, assim como sua recepção crítica.

Ainda podem-se encontrar resumos e sinopses da ficção de Carolina, romances e peças, e, ao final da edição, ensaios de especialistas sobre a escritora. O primeiro, de José Carlos Sebe Bom Meihy, um dos maiores pesquisadores da autora e editor de obras dela e sobre ela, como o essencial Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (1994), em parceria com o norte-americano Robert M. Levine, faz uma ousada reflexão sobre a trajetória da autora em forma de despedida (“Ditos e interditos: ensaio de despedida de Carolina Maria de Jesus”). O pesquisador levanta, no texto, questões pouco discutidas como a ausência de dados biográficos confirmados sobre a escritora, também a questão polêmica sobre a maneira como foram editados os diários dela pelo jornalista Audálio Dantas, considerado seu “descobridor”. Meihy procura mostrar o lado humano de Carolina, com defeitos e incoerências que, na sua opinião, foi omitido pelo jornalista em suas interferências na transição entre os manuscritos e os diários publicados. Ao final, afirma que deixa para os pesquisadores mais recentes da obra a produção crítica sobre ela.

Valéria Rosito, pesquisadora da UFRRJ, escreve dois textos para o livro de Barcellos, no primeiro, “Literatura brasileira a contrapelo ou o que querem e o que podem os estudos carolinianos na cena acadêmica contemporânea”, comemora os avanços que o centenário de Carolina Maria de Jesus trouxe em relação à divulgação e discussão de sua obra, mas ressalta também os impasses trazidos à tona na ocasião festiva, principalmente em relação à obra inédita da escritora, que pouco ainda circula entre os pesquisadores e leitores. A partir de trechos retirados dos rolos microfilmados presentes na Biblioteca Nacional, Rosito analisa as intervenções feitas nas edições que deixaram a escritora famosa. A pesquisadora defende então que se recupere as fontes literárias sobre a escritora para que seja revelada uma face ainda pouco conhecida, como já havia destacado Meihy.

Fátima Maria de Oliveira, professora do CEFET-RJ em seu texto “Do lixo das ruas à escrita ‘cor de ouro’ no quarto: o diário de Carolina” e Raffaella Andrea Fernandez, doutoranda da Unicamp, autora de “Manuscritos inacabados: folhas esparsas em narrativas de gênese ou experimentos de uma obra”, fazem interessantes comparações entre Carolina e outros artistas, em seus textos. A primeira lembra a semelhança entre a catadora escritora e o colecionador de restos da sociedade Gabriel Joaquim dos Santos, artista negro e pobre, autor da “Casa da Flor”, em São Pedro da Aldeia, interior do Rio de Janeiro, que impregnou de objetos cotidianos garimpados no lixo, o muro e as paredes de sua casa. A pobreza dos resíduos usados como marcas da memória de maneira poética aproximam os dois artistas. Raffaella Fernandez encontra semelhança entre a escrita ficcional de Carolina e os versos singulares de Manoel de Barros, ambos trabalharam a linguagem de forma criativa, comum e metafórica, principalmente na relação entre homem e natureza.

“A escrita como lugar de resistência no diário de Carolina Maria de Jesus”, da professora Daniele Ribeiro Fortuna (Unigranrio), lembra como o ofício de escrever servia para Carolina como modo de representação do mundo cotidiano e ficcional. O corpo como local de resistência, tema sempre presente na crítica acadêmica sobre Carolina, também ganho espaço no ensaio. A memória, outro aspecto sempre citado sobre a autora, é o tema escolhido pelo escritor Carlos Alberto Cerchi para seu texto “Memória: ‘O Diário de Bitita’ e a relação de Carolina Maria de Jesus com a terra”, que, como já anuncia o título, trata do vínculo afetivo que a escritora nascida em Sacramento tinha com o campo. O assunto é frequentemente tratado por ela em sua obra autobiográfica, diáristica e ficcional e o autor mostra que mesmo no tempo que permaneceu na cidade grande, Carolina tratava com visão crítica a questão da urbanização e dos problemas sociais que resultavam dela, como a fome. O fim da vida da escritora em seu sítio em Parelheiros, interior de São Paulo, fecha o ciclo de retorno à origem no campo que ela tanto almejou.

Os diversos aspectos levantados pelos ensaístas no livro confirmam a intensa expectativa que ainda carregam os que valorizam a obra de Carolina Maria de Jesus merecidamente catalogada e descrita no livro em questão. Com os caminhos da pesquisa mais desembaraçados por trabalhos como este guia, será possível adentrar ainda mais sobre o vasto projeto literário da escritora, inédito ou publicado, e descortinar a escrita pulsante de Carolina.

1 www.vidaporescrito.com

* Aline Alves Arruda é doutora em Literatura Brasileira pela UFMG e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais.

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