Infância não combina com racismo:

Caderno de rimas do João, de Lázaro Ramos

Luana Tolentino*

De acordo com a professora e pesquisadora Eliane Debus (2010), ainda é incipiente o número de obras destinadas ao público infantil que tenham como enredo a história e a cultura afro-brasileira. Durante a análise de 1.785 títulos, Debus localizou apenas 79 protagonizados por personagens negras. Ao publicar Cadernos de rimas do João, Lázaro Ramos mostra que tem consciência da invisibilidade das crianças afrodescendentes na literatura brasileira contemporânea.

Inspirado no cotidiano e nas descobertas do filho mais velho, ao longo de 27 poemas, o novo livro de Lázaro Ramos aborda temas como a amizade, a família e a morte, mas sem perder de vista questões que sempre estiveram presentes em seu trabalho como ator e diretor de cinema, televisão e teatro: o engajamento frente às relações raciais no Brasil.

No livro publicado pela editora Pallas, merecem destaque elementos que marcam a construção identitária de meninos e meninas negras, como a autoestima e referências à ancestralidade africana, como a capoeira. Esse olhar atento para com os Joãos e Marias (Maria Antonia é o nome da filha mais nova do ator e escritor), que raramente são lembrados nas prateleiras das livrarias do Brasil, está inserido em todo o livro, a começar pelas belíssimas ilustrações de Maurício Negro.

De maneira sutil e singela, “Autoestima” revela o desejo de contribuir para a formação de crianças orgulhosas de seu pertencimento racial, que sobremaneira tem a infância marcada por estereótipos e expressões racistas reproduzidas de maneira incessante na sociedade desde o advento da colonização perpetrada pelos portugueses no século XVI. A João é ensinado que autoestima “É o que gosta de si mesmo, é sobre você sua opinião. / Gosto de mim desse jeito. Assim mesmo como sou. / Rosto, corpo, riso, voz... / Assim mesmo, da maneira / Como a família ensinou. (p. 28).

Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, no dia 11 de novembro de 2015, Lázaro Ramos é enfático ao falar da escolha dos escritores e editores por temáticas que privilegiam apenas as crianças não negras. Esse incômodo é evidenciado em “Herói”, que de forma quase didática, revela a importância de personagens que cumpram a missão de servirem como espelhos onde as crianças negras se vejam refletidas:

É aquele que inspira,

que abre um novo baú.

Por exemplo, gosto muito

do menino Kirikou.

É sabido, é ligeiro,

se parece até comigo.

Dá uma ideia engraçada

de que ele é meu amigo

(RAMOS, 2015, p. 26).

Como Lázaro aponta, esse herói pode ser o pequeno Kirikou, personagem principal do filme francês Kiriku e a Feiticeira, que conta a história de um menino africano esperto e inteligente, que apesar da pouca idade e tamanho, consegue salvar sua aldeia da malvada feiticeira Karabá. Mas esse herói pode também ser o cantor e compositor Gilberto Gil, que “com as letras e canções / parece um equilibrista” (p. 12).

À primeira vista, “Esporte” parece abordar apenas brincadeiras infantis ou modalidades esportivas como vôlei, futebol e basquete. Porém, o leitor é surpreendido nos últimos versos, quando Lázaro brinca com o fato de a capoeira, luta trazida para o Brasil pelos negros escravizados vindos de Angola (Oliveira, 2003) ser considerada um esporte e não estar presente nos jogos olímpicos: “Olimpíada junta todos, parece até uma feira / Mas pó que é que nesse evento / não tem minha capoeira?” (p. 23).

Deixando um pouco de lado a condição de pai do João, em alguns momentos o livro cede espaço para o ator e para o cidadão atento às questões sociais de seu tempo. No universo infantil, estão inseridas questões consideradas “coisa de gente grande”, como a corrupção e a política. “Candidato” traz os seguintes versos: “Só escolho em quem confio, fico atento ao que ele diz. / Investigo direitinho, para ver se cresce o nariz.” (p. 18). Considerado um dos maiores atores de sua geração, em “Vip”, Lázaro Ramos de forma bem-humorada tece duras críticas a glamourização do meio artístico:

Uma tia me falou

que é uma coisa muito chique.

Mas achei foi coisa besta,

me parece que é chilique.

Um cercado especial

colocando um limite.

Eu até entendo que usa,

mas gosto mais de ser livre

pra dançar o xique-xique

(RAMOS, 2015, p. 13).

Retomando a entrevista concedida à Folha, ao ser perguntado sobre a reação do filho ao ver o livro, Lázaro afirmou que João passa os dias dizendo: “Sabia que o meu pai fez um livro para mim?”. De forma alguma ousaria discordar das palavras do pequeno garoto de quatro anos de idade. Mas espero não contrariá-lo ao afirmar que enquanto escrevia Cadernos de Rimas, Lázaro Ramos pensou não apenas no João, mas também em todas as crianças, sejam elas negras, brancas, indígenas ou de origem asiática, pois ele sabe que infância não rima com racismo. As palavras e as ações do artista e escritor baiano deixam evidente a sua convicção de que o respeito à diversidade e a afirmação positiva da identidade negra, é pressuposto para a construção de uma sociedade mais justa e equânime.

Referências

CRUZ, João Luiz Oliveira. Capoeira Angola: do iniciante ao mestre. Salvador: EdUFBA, 2003.

RAMOS, Lázaro. Caderno de rimas do João. Ilustração de Maurício Negro. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

RAMOS, Lázaro. “Faltam heróis negros”. Folha de S. Paulo, 11 nov. 2015. Entrevista concedida à Julia Barbon. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folhinha/2015/11/1704671-faltam-herois-negros-diz-lazaro-ramos-ao-lancar-seu-3-livro-infantil.shtml> Último acesso: 18 nov. 2015.

DEBUS, Eliane Santana Dias. A temática étnico-racial nos livros da Pallas Editora. I Fórum de Latino-Americano de Pesquisadores de Leitura. 2010. Anais. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/IICILLIJ/. Último acesso: 18 nov. 2015.

* Luana Tolentino é historiadora, professora da Rede Pública de Ensino de Minas Gerais, ativista dos Movimentos Negro e Feminista e pesquisadora do NEIA/UFMG.