O baobá enquanto arcabouço simbólico em Baobás de Ipojuca, de Inaldete Pinheiro de Andrade

 

Nathália Dias*

O trabalho de Inaldete Pinheiro enquanto participante ativa de ações em prol da igualdade racial e do respeito às diferenças é claramente notado em seus livros. Pesquisadora e militante, a escritora tem se dedicado ao resgate da multifacetada herança africana presente em nossa formação. Sua obra vem contribuindo para a constituição de uma bibliografia voltada para o ensino da História e das culturas africana e afro-brasileira, notadamente em suas manifestações pernambucanas e nordestinas, seu locus de enunciação.

Dessa forma, este é o caminho traçado por Inaldete não só em seus textos ensaísticos, mas também em seus livros infantojuvenis. Baobás de Ipojuca (2008) é composto por cinco pequenos contos, que têm como elemento comum a figura do baobá, árvore possuidora de grande simbologia para as culturas africanas. Várias significações do enorme vegetal aparecem no decorrer das histórias, no intento de mostrar ao pequeno leitor a representatividade do símbolo. É interessante notarmos como a autora tece relações entre algo tão significativo para determinadas populações da África e a presença de certos baobás em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, região de onde Inaldete produz suas narrativas. Ela se vale de um elemento que habita o cotidiano de uma região para mostrar a conexão entre esta e o outro lado do Atlântico.

A primeira história do livro, intitulada “A Semente”, apresenta uma menina surpreendida ao ler num jornal em que enrolava batatas a notícia de que, mesmo 24 anos após a proibição do tráfico de escravos, ele ainda existia. Confusa, ela volta correndo para a casa onde pergunta à mãe se o trecho da antiga notícia era verídico. A mãe, então, lhe conta as razões pelas quais seus bisavós foram arrancados de suas terras em África e o modo como chegaram ao Brasil. Ademais, as funções aqui impostas aos escravizados são narradas de forma a demonstrar cabalmente, mas de maneira adequada ao público infantojuvenil, a realidade dos africanos subjugados aos colonizadores. No dia seguinte, a menina conta a história aos colegas na escola, todos sentados debaixo de um Baobá, da mesma forma como seus ancestrais faziam em África, reunidos debaixo da árvore para ouvir e trocar lendas e contos.

No conto seguinte – “Em nome da Mãe” –, o espaço da pequena narrativa é a sala de aula onde algumas crianças discutem sobre o que era a carga vinda de África para o Brasil citada em um texto que leem. O menino Daomé toma a palavra para expor aos colegas a narrativa que ouvira do pai.

– Que carga vinha da África para o Brasil? Perguntou Quênia.

– Era gente. Caçada, sequestrada, negociada. Muita gente de cada vez, respondeu Daomé, cujo pai já lhe contara esta história.

[...]

– Este comércio não foi restrito ao Brasil, ele existiu em todas as terras banhadas pelo Atlântico, disse Daomé. (ANDRADE, 2008. p. 14).

O nome do garoto não poderia ser mais sugestivo, Dahomey era um Estado da África, situado onde hoje se encontra o Benim. O reino foi fundado no século XVII e durou até 1900, quando foi conquistado com tropas senegalesas pela França e incorporado às colônias francesas da África Ocidental. Além disso, seu apogeu econômico ocorreu no início do século XIX com a exportação de grande quantidade de escravizados para o Brasil e Cuba, tanto que o litoral ficou conhecido como “Costa dos Escravos”. Isto posto, os personagens de tal conto possuem, quase todos, nomes que têm ligação direta com algo de África, outros dois alunos são nomeados “Congo” e “Quênia”, nomes de dois países do continente. É notável a intenção autoral de trabalhar elementos dotados de certa simbologia que promova a construção de pontes temporais entre a herança ancestral africana e o leitor a nós contemporâneo. Em seguida, o foco da discussão passa a ser o lugar ocupado por Pernambuco dentro da lógica escravocrata. A questão do cultivo de cana entra em pauta e a professora da turma explica como as coisas se passaram:

– Pernambuco colaborou com o contrabando mesmo quando ficou proibido o tráfico dos navios negreiros. Inglaterra queria vender suas máquinas para os engenhos e exigia que fosse interrompida a escravidão. Os contrabandistas desviavam a rota para evitar ser surpreendidos pelos navios ingleses e muitos vieram parar na região sul do Estado (ANDRADE, 2008. p. 16).


Por último, o menino Congo pede a palavra e conta a história que ouvira das pessoas mais velhas de sua família sobre a origem do nome da região denominada “Porto de Galinhas”.

Quando os contrabandistas descarregavam os navios nos portos clandestinos, colocavam os africanos e as africanas num transporte, cobriam-nos e sobre eles colocavam algumas galinhas disfarçando assim o conteúdo, os traficantes gritavam:

– “Tem galinha no porto”. Quem ia comprar sabia qual galinha estava à venda: eram os homens e as mulheres há muito tratados como animais. De tanto anunciar “Tem galinha no porto” o lugar ficou conhecido como Porto de Galinhas (ANDRADE, 2008. p. 17).

A história deixa as crianças tristes, porém, a professora lhes conta que as mesmas terras também foram lugares onde surgiram quilombos – símbolos de resistência – e que os baobás presentes ali lembravam o vínculo com a terra-mãe. A narrativa se encerra com todas as crianças jogando capoeira em homenagem aos baobás e toda a significação neles contida.

Em “Flor de Baobá para Amizade Duradoura”, o foco dessa vez é a flor da árvore, como o próprio título bem diz. O rapaz Somali dá à sua amiga um ramalhete feito de flores de Baobá como presente de aniversário. Os colegas se mostram surpreendidos com a beleza das flores, pois nunca haviam nelas reparado. Todos saem em disparada até a árvore em busca das tais flores. Debaixo do pé de Baobá os jovens reparavam na singularidade de cada flor e percebiam como o que é único é também lindo. Aqui, cabe-nos retomar mais uma vez a observação antes feita sobre o cuidado autoral com a seleção e exploração de elementos representativos da vida africana. Além do baobá, símbolo que perpassa todo o livro, novamente temos o jogo com os nomes dos personagens, o adolescente que desperta nos outros a curiosidade pelos baobás se chama Somali, tal item lexical denomina uma língua. A língua somali é falada na Somália, Etiópia, Quênia e Djibuti, e faz parte do subgrupo cuchítico da família das línguas afro-asiáticas. Mais uma vez, Inaldete se vale de jogos vocabulares para estabelecer ligações entre seu texto e a vida africana, deixando sempre emergir sua função de ofício, o resgate dessa presença na formação nacional brasileira. Cabe ressaltar, ainda, uma nova significação atribuída ao baobá, a flor enquanto símbolo de amizade duradora.

Verde que queremos verde” incorpora duas novas pessoas à cidade, Marina e Wangari: ela do Acre e ele do Quênia. Os dois chegam para conhecer as crianças que cuidam dos baobás, pois se empenham em trabalhos de preservação ambiental. No caminho para a praia de Porto de Galinhas, se deparam com a árvore e a emoção toma conta dos dois. Eles rumam em sua direção e parece não acreditar na beleza que presenciam. Ao abraçarem o imenso tronco, sentem uma troca de energia e saem de lá determinados a começar, junto com a professora da escola local, uma campanha de plantios de árvores como forma de recompor a terra explorada. A vibração por eles sentida durante o abraço ao tronco dialoga diretamente com a ideia ancestral de o baobá como meio de ligação entre mundos diferentes.

O livro se encerra com uma pequena narrativa final de grande beleza, “A pequena Graúna e o Grande Baobá”, tecida através do dialogo entre um filhote de graúna e a planta secular. Enquanto a mãe do passarinho sai em busca de comida, o filhote, ao colocar a cabeça para fora do ninho, descobre uma árvore diferente das que cercavam sua morada. Sua mãe lhe diz tratar do baobá e que ele ali estava há muito tempo. A admiração da pequena graúna crescia com o passar tempo e quando ela aprendeu a voar foi logo visitar seu objeto de admiração. Já desde o pouso, o pássaro logo lhe enche de perguntas e ela, pacientemente, conta toda a sua história, mesclada à história da região. O baobá diz estar naquele lugar desde quando

[...] era uma mata fechada, uma mata com muitos bichos, de pelos e de pernas, rios com águas claras. Lá adiante, longe, tinha um engenho. Uns humanos eram donos dos engenhos e de outros humanos. Esses outros humanos trabalhavam muito, até morriam de apanhar, então fugiam para se verem livres (ANDRADE, 2008. p. 32).

A partir desse momento, a árvore falante esclarece certos mal-entendidos ditos pelo passarinho e enuncia a história de exploração de seu povo que foi arrancada da terra que também era a dele:

[O filhote diz] – Trabalhar é bom; se minha mãe não sair para procurar comida, eu não como. Logo poderei procurar minha própria comida.

[O baobá diz] – Sim, trabalhar é necessário, mas ser explorado é outra coisa. Os africanos eram chamados escravos, trabalhavam e não tinham nenhum direito. Eles e seus filhos, mesmo nascidos nesta terra, eram escravos ou melhor, eram escravizados, independente da idade ou do sexo (ANDRADE, 2008. p. 34).

Ainda nesta linha, o baobá diz ser fruto da fuga de um escravo para Palmares que, no meio do caminho, plantou a semente da qual ele se originou. “[...] Numa noite de fuga para o quilombo dos Palmares ele descansou aqui com os companheiros. Antes de continuar a jornada, cavou um buraco e me deitou. Todos beijaram a terra e partiram. Eis-me com a marca dos anos!” (ANDRADE, 2008. p. 35). O baobá é, então, um pedaço de África no Brasil, ela é conhecida como a árvore da sabedoria, pois tem vida longa e o passar do tempo faz dela um arcabouço cultural. Ademais, no texto ela é, também, símbolo de equilíbrio, uma vez que a sabedoria está em saber conviver com a diferença. A narrativa se encerra com a promessa do pequeno pássaro de um dia voar até à terra d’além-mar para visitar as raízes da amiga árvore. As últimas linhas merecem destaque pela forma singela e bonita com que a autora se refere ao mito da aranha Ananse, a guardiã, “o velho baobá agradeceu ao Tempo mais esta história, para contar a Ananse, a aranha que guarda a história do mundo” (ANDRADE, 2008. p. 37).

Junto a elementos culturais africanos e o texto fluido de Inaldete, as ilustrações de Juliana Germano desenvolvem um papel importante no livro, uma vez que são uma forma de despertar identificação na criança leitora. Os desenhos fogem daquela caricatura, recorrentemente criada, em que o afrodescendente é representado de forma folclórica e depreciativa. Os jovens e crianças apresentados são alegres e curiosos, diferentemente da representação estereotipada de outros livros infanto-juvenis. Outro ponto importante a destacar é a forma como a escritora se vale do baobá para entrelaçar suas histórias e, também, explorar os múltiplos significados da árvore, o que ao mesmo tempo nos parece como homenagem aos seus ancestrais afro-brasileiros, visto que os velhos baobás transmitem a impressão de serem testemunhas dos tempos imemoriais. Os mitos e o pensamento têm na representação do símbolo de seus temas recorrentes, pois ele aparece como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material. Assim, ele é a coluna que liga o mundo transcendente ao imanente e representa o arcabouço simbólico-cultural de um povo.

Enfim, Baobás de Ipojuca merece aplauso por resgatar aspectos vários da cultura afro e os apresentar de forma lúdica, bela e bem trabalhada.

Referências

ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Baobás de Ipojuca. Edições Bagaço: Recife, 2008.

CASTILHO, Suely Dulce de. A representação do negro na Literatura Brasileira: Novas Perspectivas. In: Olhar de professor. Ponta Grossa, p. 103-113, 2004.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea: Relações Raciais. Brasília, n 31, p.11-23, janeiro/junho, 2008.

LIMA, Maria Nazaré. SOUZA, Florentina. Literatura afro-brasileira. Brasília: Fundação Cultural Palmares; Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006.

* Graduanda da Faculdade de Letras da UFMG.

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