Erê mí
A infância afrodescendente em Os Ibejis e o carnaval

 

Pedro Henrique Souza da Silvai

Orìkí fún Ibeji
B'eji B'eji're
B'eji B'eji'la
B'eji B'ejiwo
Igbá omo ire
Asè1

 

A epígrafe inscrita acima é um dos orikis2 para os ibejis, divindades gêmeas do panteão nagô que, no movimento de sincretismo religioso à brasileira, foram associados aos santos católicos Cosme e Damião. (Re-)configurado e (re-) contado, o mito de origem yorubá é presentificado e atualizado por meio do rito que tem nas festas de Cosme e Damião (Erê, Vunji, Ibejis), comumente realizadas no fim de setembro, o seu traço mais vultoso. É perceptível, pois, nessa narrativa mítica o que Rafael Domingos Oliveira (2014) classificou como a “onipresença de uma eterna infância”, ao passo que os gêmeos “nunca mais cresceriam, não se separariam. São dois gêmeos-meninos brincando eternamente, são crianças.” (PRANDI, 2005, p. 369).

É a partir desse fundamento mítico que Helena Theodoro saúda o leitor infantil com Os Ibejis e o Carnaval. A autora é doutora em Filosofia e estudiosa da cultura afro-brasileira, com publicações de relevo na área, como Mito e espiritualidade: mulheres negras (1996), A força feminina do samba (2007), Iansã (2010), entre outros. Desde a infância é frequentadora da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, do Rio de Janeiro. Deste modo, é possível perceber em seu livro a força dessa vivência quando a autora encarna a voz de uma avó e põe narrar histórias do carnaval aos seus netos gêmeos Neinho e Lalá. E é nesse tom de “boca a boca” e “pé de ouvido” que os pequenos aprendem sobre as origens da festa e sobre os elementos que a compõem no Brasil e em outros lugares onde a data é comemorada.

Ilustrado por Luciana Justinianni, a narrativa é acompanhada por cores e ilustrações vibrantes típicas dos orixás-crianças. Esse aspecto é perceptível já na capa do impresso na qual os dois personagens negros se destacam frente aos outros de diferentes tintas, essas tonalidades além de suplementarem a leitura da obra, causam aos olhos do leitor um impacto de modo a chamar a atenção para a fruição do enredo.

O termo “Ibeji” tem sua origem em dois termos yorubá “ibi”, nascimento, e “eji”, dois. O primeiro irmão a nascer recebe o nome de Taiwo, já o segundo é denominado como Kehinde. Os povos nagô acreditam ser Kehinde o irmão mais velho, pois mandava Taiwo para supervisionar o mundo onde nasceriam. Cabe ressaltar também que os gêmeos são os responsáveis pela verdade, pois são eles possuidores do senso de julgamento imparcial das crianças.

A história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro a partir do nascimento das crianças, que são recebidas na família com festa. Seguindo a tradição dos grandes reinos africanos:

[...] as crianças foram apresentadas à lua que era cheia e por isso mesmo portadora de muita sorte e de muita felicidade para eles. A vovó, a mais velha da família, e o pai, entoando versos ao som do tantã, fizeram a apresentação. (THEODORO, 2009, p. 8).

No trecho acima há uma reminiscência dos costumes africanos preservados no Brasil: o mais velho, legitimado pela experiência, apresenta os recém-nascidos à comunidade e aos ancestrais, presentificados no ritual pelos elementos da natureza. Neinho (Taiwo) é um garoto doce, sensível e organizado, já sua irmã Lalá (Kehinde) é extrovertida, solidária e muito curiosa.

Como os ibejis, as crianças discutem, discordam, brigam. Num desses momentos, a avó os interrompe para lhes falar sobre as origens do festejo. Então, por entre os fios da experiente voz feminina outra narrativa se constrói, os gêmeos – e, por extensão, seus leitores – passam a tomar conhecimento de elementos significativos da cultura negro-brasileira. E, como os orixás-crianças, depois das brigas os irmãos acabam se entendendo e decidem entrar para a escolinha de mestre-sala e porta-bandeira, a fim de juntos dançarem carregando o maior símbolo de sua agremiação.

Além disso, o livro é enriquecido por um glossário no qual o leitor em formação pode ter acesso ao vasto repertório da cultura afro-brasileira e suas principais personalidades. Destarte, o livro de Helena Theodoro traz à baila questões da ordem do dia que foram – são – silenciadas pelo discurso oficial que, mesmo depois de pouco mais de uma década da lei 10.639/03, ainda são (salvo felizes exceções) ausentes na literatura infantil e infantojuvenil brasileira. Com sua linguagem simples e enredo pouco complicado Os ibejis e o carnaval é uma leitura adequada ao leitor iniciante, exemplo lúdico de introdução ao imaginário africano e afro-brasileiro. Vunji pafundi.3

Referências

NETTO, Adriano Bitarães. A Era dos Erês: uma era ao culto da natureza e dos orixás. Ilustrações do autor. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.

OLIVEIRA, Rafael Domingos. A criança negra escravizada no Brasil: aproximações teóricas, tramas historiográficas. In: Revista Outras Fronteiras, Cuiabá, v. 1, n. 2, jul.-dez., 2014.

PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos Orixás. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005.

THEODORO, Helena. Os ibejis e o carnaval. São Paulo: Pallas, 2009.

 

1 Tradução: Orìkí para Ibeji: Dar a luz aos gêmeos traz fortuna boa/ Dar a luz aos gêmeos traz abundância/ Dar a luz aos gêmeos traz dinheiro/ Saudar as crianças das coisas boas/ Axé.

2 Vale ressaltar, pois, que não há um consenso acerca da derivação do vocábulo Oriki. Podemos então defini-lo num primeiro momento como uma “frase de caráter lírico e sagrado utilizado para exaltar os orixás” (NETTO, 2010, p. 61).

3 “Vunji está feliz”. Vunji é uma divindade do panteão banto que representa a alegria, inocência, ingenuidade da criança.

i Pedro Henrique Souza da Silva é graduando da Faculdade de Letras da UFMG; bolsista de iniciação cientifica pelo Probic/FAPEMIG e pesquisador do Neia/UFMG.

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