A ancestralidade e a memória em
Uma aventura do velho Baobá, de Inaldete Pinheiro

 

Gustavo Tanus*

Eliéverton Cristiano dos Santos**

Em tempos como os atuais, em que há um real retrocesso em relação à promoção da igualdade racial na sociedade brasileira e uma escalada de desmonte de instituições que promovem a cultura negra no Brasil, como tem ocorrido com a Fundação Cultural Palmares, semear a resistência e tradições culturais e as origens negras brasileiras é algo fundamental, principalmente junto às crianças e adolescentes. E é justamente nessa sementeira de palavras e ideias que Inaldete Pinheiro de Andrade, autora de Uma aventura do Velho Baobá, se lança.Nascida na cidade de Parnamirim (Rio Grande do Norte), Inaldete mudou-se na juventude para o Recife (Pernambuco), para estudar Enfermagem, na Universidade Federal de Pernambuco, tendo realizado o Mestrado em Serviço Social pela mesma instituição. Esta nova morada tem sido, desde então, o lugar de onde ela pensa e age, como militante do Movimento Negro e Feminista, e realizando a articulação de ações entre mulheres de comunidades negras do interior de Pernambuco, remanescentes de antigos quilombos, como escritora de diversos livros, entre ficção e não ficção, e como professora e pesquisadora da cultura afro-pernambucana, mais especificamente do Maracatu, e também das mulheres de Maracatu (SANTIAGO, 2013), em suas tantas extensões, que são as “Oficinas de identidade racial”, como ela as nomeia (ANDRADE, 1995; 1999).
 
Contadora de histórias, a autora produziu textos literários, como este que ora resenhamos, assim como Cinco Cantigas para você contar (Olinda: Produção Alternativa, 1989); Pai Adão era Nagô (Olinda: Produção Alternativa, 1989); A Calunga e o Maracatu (Recife: Prefeitura do Recife/Secretaria da Cultura, 2007); Baobás de Ipojuca (Recife: Bagaço, 2008), que se encontram esgotados e merecem reedição; e a Coleção Velhas Histórias, Novas Leituras (Recife: Edição do autor, 2010); e o livro de poemas Travessias (edição da autora, 2019).Além dessa produção ficcional, a autora produziu trabalhos importantes para o estudo do racismo no Brasil, como o ensaio “A mulher Negra na MPB: Um Abalo Na Identidade Racial” (1995), em que analisou o racismo veiculado nas músicas da MPB, entre a escuta/fruição e o modo como são retratadas as mulheres negras; isto é, não somente observou a inscrição e veiculação do racismo na música brasileira, em modos de inferiorização e sua manutenção, ou em reprodução dos estereótipos, mas o fez refletindo sobre sua experiência junto a adolescentes negras em um grupo de convivência, para refletir sobre a identidade racial e a importância da discussão sobre imagem e estética para construção das identidades negras.
 
Participou, também, do importante livro Superando o racismo na escola (1999), organizado por Kabengele Munanga, obra que contou com a participação de grandes educadoras e educadores brasileiros, especialistas em educação, na qual se buscou repensar a escola brasileira, o currículo, o lugar das tradições afrodiaspóricas, e buscou refletir sobre táticas e estratégias de enfrentamento do racismo, que se espraia em todos os rincões sociais, como valor, como estrutura. Nessa obra, Inaldete escreveu ensaio intitulado “Construindo a autoestima da criança negra”, no qual ela diz da sua relação com a palavra, desde o sonho da construção de uma biblioteca, a movimentação de crianças, sua própria relação com a leitura, na infância, e as que realizou em pesquisas durante a vida profissional, como professora-pesquisadora. Ela trata ainda da mediação da leitura, nos trabalhos desenvolvidos por ela, na Oficina de Leitura, para a reconstrução da memória, na construção de autoestima em crianças e adolescentes. Nisso, a autora trabalha as premissas e preparações, de seu pensamento e planejamento, em generosidade para todos nós, professores da Educação Básica.Além desse ensaio, há um livro bastante importante, e infelizmente esgotadíssimo, que é o Racismo e Anti-Racismo na Literatura Infanto-Juvenil (Recife: Etnia Produção Editorial, 2001), em que a autora realiza um estudo bastante importante e precursor para os estudos de literatura infantil, localizando e identificando o “lugar” da personagem negra nessa literatura, pesquisa iniciada na década de 1980, finalizada em proximidade do centenário da abolição, e teria sido, então, segundo a autora, engavetada, ficando por anos sem a devida divulgação, até sua publicação, apenas em 2001.
 
Com relação a sua obra ficcional, os livros, que se encontram esgotados, e merecem republicação, trazem, de alguma forma, a ancestralidade e a memória, vinculadas à visibilização do sujeito e cultura negras, na dimensão da infância e da juventude, que parecem ser a cerzidura do bordado que a autora trabalha, consistente, em sua obra como um todo.Destacamos do livro Baobás de Ipojuca, o ensaio crítico intitulado “O baobá enquanto arcabouço simbólico em Baobás de Ipojuca, de Inaldete Pinheiro de Andrade”, realizado pela pesquisadora Nathália Dias, em 2013, isso porque pontos importantes desse estudo, observados pela pesquisadora, são importantes para pensar toda sua obra, inclusive a que é objeto desta crítica. A árvore possui uma multiplicidade de significados, sendo um elo entre as tantas histórias, entre o mundo visível e o invisível, e, como testemunhas dos tempos, são ancestrais. E essas são umas das significações para o Baobá, no livro objeto deste nosso ensaio.
 
O livro Uma aventura do Velho Baobá foi lançado em 2021, pela editora Pequeno Zahar, e é indicado para leitores a partir de 3 anos. O volume está muito bem ilustrado por Ianah Maia, jovem ilustradora recifense, cujo trabalho artístico transita pela “pintura, arte urbana, animação e autorretrato fotográfico” (ANDRADE, 2021), tendo uma orientação teórica e prática em estudos sobre decolonialidade e cultura afrodiaspórica. A técnica utilizada para a ilustração do livro foi a geotinta, que é umatécnica de uso de tinta natural cujas tonalidades advêm de tipos diferentes de terra, que a ilustradora tem utilizado, desde sua residência artística InArte/Urbana, na cidade de Natal, RN. A ilustradora diz, ainda, que a escolha da técnica, que é a utilizada nos processos criativos da artista, relaciona-se bem ao livro, porque a terra, nas culturas de matriz africana, é "chão onde estão os nossos ancestrais", de onde se buscou a força para contar as histórias, visualmente e em texto (O BAOBÁ, 2022, 33:07).
 
Esse tipo de técnica enriquece as ilustrações, que, conectadas às palavras de Inaldete, criam, para além da escrita, estímulos visuais aos leitores, sobretudo para as crianças e adolescentes. As figuras representadas são extremamente expressivas, principalmente na demonstração de estados emocionais e psicológicos das personagens. Há também as representações do movimento e do dinamismo da viagem do protagonista em contraposição à imobilidade e cerceamento da liberdade de alguns de seus parentes nas terras brasileiras. Da viagem no mar, às incursões pelas terras do Brasil, o leitor é convidado a ler também uma narrativa visual que se constitui, não como um ornamento, mas como um texto narrativo significativo, capaz de dizer graficamente e de estruturar a ponte para o texto de Inaldete, o que é bastante relevante para os leitores de menor idade.O livro possui um posfácio escrito pela também escritora, pesquisadora e professora Kiusam de Oliveira, autora de diversas obras de literatura infantojuvenil. Nesse posfácio, Kiusam destaca a qualidade do trabalho, que realiza uma leitura de grandes complexidades acerca da diáspora e seus efeitos, como o racismo, suas formas de existência/permanência no cotidiano, e destaca Inaldete Pinheiro de Andrade como uma semeadora, de sementes de “negruras africanas” neste solo, por meio de suas histórias, “feitiço preto”, “capazes de curar as feridas presentes nos corpos negros brasileiros” (2021, p. 29), ela própria sendo uma Baobá (O BAOBÁ, 2022, 38:18), que se movimenta, traz histórias, e abre caminhos.
 
A história revela a viagem de um velho Baobá, que nasceu nas savanas africanas, rumo ao Brasil. Para essa viagem às terras brasileiras, o Baobá realizou a travessia do Atlântico, com o intuito de encontrar seus parentes. A viagem imaginária de uma árvore à procura de conhecer seus parentes, dispersos pelo empreendimento da escravização de povos africanos, e saber mais sobre eles. Nessa viagem são demonstradas as realidades dos Baobás nascidos aqui, relacionadas, portanto, aos povos e culturas negras no Brasil.Em preparação para a viagem, “raízes, troncos e galhos ao mar” (p. 7), a árvore diz para si mesma: “Lá vamos nós!” Essa sentença é por demais rica, porque pode ser pensada tanto como característica das plantas, que são seus nós, o ponto em que um galho se bifurca em novo ramo, quanto pelo pronome, pensado para si – e seus ascendentes e descendentes na terra em que vive – quanto para aqueles que estão do outro lado da travessia, em terras estrangeiras.
 
Já por aqui, o velho Baobá perambula pelas cidades com o fito de encontrar seus parentes, e essa busca, dificultosa, para ele, revela também a invisibilidade que as raízes, os troncos, as folhas, as sementes das culturas afrodiaspóricas possuem na sociedade brasileira, cada qual em seu estado/estágio de uma vida sobrevivente, sofrendo o descaso, o emparedamento, as violências do racismo brasileiro. Apesar dessa constatação, importante porque construída pelo andar pelos espaços, em atenção de procura dos parentes, o texto auxilia, justamente pela ação e movimentação, na construção de estratégias coletivas, de conexão, em conhecer sobre parentes, distantes, como é o caso dele e dos nascidos no Brasil, ou entre os próximos, que aqui estão. Rede também para a denúncia de maus tratos, de racismo e preconceito, e para comunhão de saberes e conhecimentos, sobre gerações, que a própria árvore, que é símbolo da resistência africana na Diáspora, representa.A escrita de Inaldete é potente, leve e fluida, conduzindo os leitores, pequenos e grandes, às reflexões suscitadas pela aventura do Velho Baobá. Na obra, na medida em que o Velho Baobá adentra o território brasileiro, os leitores são também levados a refletir sobre a memória, sobre as origens, a diáspora, a importância das origens e da resistência, que se projeta como re-existência. A potência da obra revela-se, sobretudo, no fato de os pequenos leitores serem inseridos de forma leve e lúdica, a partir de uma antiga árvore viajante, a compreender a importância, não só para o Baobá protagonista, mas também para nós leitores, de buscar a conexão com a história, a memória e a ancestralidade, como possibilidade de autoconhecimento e fortalecimento identitário.

Uma aventura do velho Baobá é realmente uma deliciosa leitura para crianças e também para os adultos. Para professores e professoras da educação infantil e fundamental, a obra poderá trazer produtivas experiências de leitura em sala e despertar importantes reflexões nos estudantes, além, é claro de poder ser um ponto de partida para a construção de propostas pedagógicas não racistas e antirracistas, a partir da leitura do texto de literatura infanto-juvenil. 

Natal/Belo Horizonte, 11 de março de 2022.

 

Referências

ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. A mulher negra na MPB um abalo na identidade racial. In: QUINTAS, Fatima (Org.). Mulher negra: preconceito, sexualidade e imaginário. Recife: Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ, 1995. p. 40-44.

ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Uma aventura do velho Baobá. Ilustrado por Ianah Maia. Rio de Janeiro: Pequeno Zahar, 2021. 32 p.

ANDRADE, Inaldete Pinheiro. Construindo a autoestima da criança negra. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da educação, 1999. p. 117-123.

DIAS, Nathália. O baobá enquanto arcabouço simbólico em Baobás de Ipojuca. literafro, 2013. Disponível em:

http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/infanto-juvenil/31-inaldete-pinheiro-baoba-de-ipojuca. Acesso em: 7 mar. 2022.

O BAOBÁ e as raízes da ancestralidade. Canal LetrinhaZ, 1 fev. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fsTAlE1hTN8. Acesso em: 7 mar. 2022.

OLIVEIRA, Kiusam de. Quando um Baobá se movimenta. In: ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Uma aventura do velho Baobá. Ilustrado por Ianah Maia. Rio de Janeiro: Pequeno Zahar, 2021. p. 29-31.

SANTIAGO, Larissa. Literatura Negra – Inaldete Pinheiro. Blogueiras Negras, 17 abr. 2013. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/literatura-negra-inaldete-pinheiro/. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

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* Gustavo Tanus é Mestre em Estudos Literários pela UFMG, e doutorando em Literatura Comparada (UFRN, intercâmbio FaE/UFMG), Professor da Educação Básica da rede pública e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE-UFMG).

** Eliéverton Cristiano dos Santos é mestrando em Linguagens e Letramentos: Estudos literários (PROFLETRAS/FALE-UFMG). Professor da Educação Básica, na rede pública municipal e privada de Belo Horizonte, e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE-UFMG).

 

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