O Pênalti – Geni Guimarães, presente!

 

 Lorena Cristina de Oliveira Barbosa*


 

Cheguei pertinho
do meu irmão.
Abracei-o.
Beijei-o.
Achei pouco,
tomei-o nos braços
e levantei-o
o mais alto
que pude,
mostrando
o herói
para quem
quisesse,
como eu,
vê-lo,
tocá-lo,
aplaudi-lo.

Geni Guimarães

2020 

 

Em 1994, a Seleção Brasileira de Futebol disputava, sob nervos aflitos de milhões de brasileiros, a 15ª Copa do Mundo, sediada nos Estados Unidos, em que buscava conquistar, com mais perseverança do que genialidade técnica, seu tetra-título. Fazendo jus ao dito popular de que “Deus é brasileiro”, Roberto Baggio, meia-atacante da seleção italiana, chutou o pênalti final para fora e, por mérito ou sorte do acaso, o Brasil conseguiu se consagrar frente à expectativa de seus infinitos torcedores. Tornou-se, então, o maior campeão de edições de copas do mundo. Foi também através de um pênalti que um dos maiores jogadores brasileiros, conhecido como “rei do futebol”, conquistou seu milésimo gol. Esses e outros momentos nos fazem perceber que o pênalti é muito mais do que o ato de chutar a bola em direção ao gol. O pênalti é o segundo decisivo entre jogador, goleiro e torcida, em que a respiração de todos se esvai para além da cronologia temporal: é o ápice da tensão que une corações e corpos separados pelas quatro linhas. O pênalti é a emoção, é a esperança, é o medo, é a ansiedade, é o sonho. O pênalti é o título. O pênalti é a perda.

E é justamente com o título O Pênalti (Malê, 2019), que Geni Guimarães – professora, poeta e ficcionista premiada – lança seu novo livro, depois de vinte anos sem publicar. Seu último inédito, Aquilo que a mãe não quer, lançado em 1998. A autora encena uma história cativante, que reúne dois irmãos, Kamau e Kaiodê, num processo de disputa de futebol escolar. O enredo nos traz, de maneira muito sensível, a história de uma família negra recheada de afeto, cumplicidade e ternura. A delicadeza com que a autora constrói esse núcleo familiar é uma forma de naturalizar as relações afetivas negras, historicamente estigmatizadas pelas produções literárias e audiovisuais.

“É o que minha mãe diz - família é tudo de bom.” (p.11). É dessa maneira que Geni Guimarães nos abre a leitura, no primeiro capítulo intitulado “A família”. Durante os demais dez capítulos posteriores, somos apresentados às etapas da organização, preparação, ansiedade e realização de um torneio de futebol escolar, em que Kamau e Kaiodê são as figuras principais. Insatisfeitos com a metodologia tradicional de ensino, os alunos do 6º e 8º ano organizam uma disputa interclasses, cujos times rivais carregam nomes de figuras marcantes ao movimento negro. Kamau e Kaiodê são de times opostos e isso cria, nos irmãos, um sentimento de dualidade em relação aos valores familiares e o amor e lealdade ao futebol. Mesmo assim, os irmãos compartilham posições técnicas em campo, expectativas, e manifestam respeito e torcida pelo outro.

Porém, à medida em que a partida se aproxima, Kamau, o irmão mais velho, tem sonhos negativos em relação ao irmão e teme pela sua integridade física na partida, tendo em vista que ele irá disputar o título contra uma turma mais velha, do 8º ano. No dia de jogo, Kamau entra em campo aflito, atordoado pelos gritos fervorosos da torcida, e, enquanto observa a bandeira do Brasil subindo em campo, acompanhada pelo hino nacional, deixa-se levar pelas memórias dos sonhos na noite anterior, em que o irmão acaba bastante machucado, com um grande ferimento na testa. Felizmente, é interpelado por um colega que está ao lado, e a partida é digna de uma narração histórica: tensões, substituições, faltas, vaias e aplausos, momentos tensos… uma espécie de campeonato mundial! Tudo isso de uma maneira muito leve e lúdica, levando o público-leitor às expectativas do resultado final. Nas entrelinhas do texto, somos atacantes, zagueiros, goleiros… estamos ali, junto a Kamau e Kaiodê, passando a bola, cabeceando, beijando a camisa. Literatura e futebol, juntos, arrancando nossos fôlegos. 

Os detalhes sutis com que a autora constrói o respeito e o cuidado da relação entre os irmãos nos mostra que é possível existir histórias felizes e cheias de ternura em relação a protagonistas negros. Mas, não para por aí: durante a narrativa, também nos deparamos com várias referências ao continente africano, em contraposição ao Brasil, demonstrando, de forma simbólica e fiel à integridade do projeto literário da escritora, a diáspora negra e as ancestralidades intrínsecas à população afrodescendente. Geni Guimarães, que começou a publicar no final da década de 1970, e recebeu o prêmio Jabuti em 1990 pela obra A cor da ternura, em que narra os processos de racismo e suas reminiscências, vivenciados pela protagonista Geni, traz, aqui, uma proposta literária diferente: a autora inventa novos personagens, com histórias cotidianas de crianças negras, numa ficção que dialoga muito com os debates e situações contemporâneas: as relações escolares, familiares e, sobretudo, a paixão juvenil pelo futebol.

O futebol sempre foi presente na cultura brasileira, sobretudo nas vivências de crianças e adolescentes negros, cujos sonhos, em muitas situações, são construídos e moldados pela expectativa de se tornarem grandes craques, disputarem títulos importantes e ascenderem socialmente através do esporte mais popular no país. Essa forte relação de amor ao esporte futebolístico e armazenamento de sonho já foi muito explorada no mundo do funk e do rap, como no caso da letra “Entre house de boy, becos e vielas/jogando bola dentro da favela/pro menor não tem coisa melhor/e a menina que sonha em ser uma atriz de novela”, em que Mc Guimê e o rapper Emicida, também autor do livro infantil Amoras (2018), cantam sobre a presença do esporte entre os becos e favelas espalhados pelo Brasil.

Já na literatura, Conceição Evaristo, em Becos da Memória (2006), também traz o futebol como algo recorrente nos hábitos das comunidades negras. Os festivais de bola na obra – que narra os processos de desfavelamento e as vidas negras que se entrelaçam, resistem e vivenciam uma nova diáspora no século XX –, são descritos como momentos felizes, em que as crianças, entusiasmadas, fincavam bandeirinhas armadas em um varal de estacas de bambu pelo campo e se divertiam, junto à população local, num momento peculiar de descontração e felicidade coletiva.

É dessa forma, intercalando hábitos culturais que são muito presentes nas vivências negras, com uma ficção emocionante, lúdica e didática ao público infantil, que Geni Guimarães entra em campo no ano de 2020. Após o emocionante torneio de futebol, em que os personagens “suam a camisa”, Kaiodê marca um belíssimo gol de pênalti e Kamau, para além da rivalidade dos times opostos, cruza o campo e abraça o irmão, esquecendo-se completamente do pesadelo da noite anterior, e beija-o com todo o amor e orgulho. Os irmãos, ali em campo, simbolizam o que há de melhor nas relações afetivas, e também no mundo do esporte: o carinho, o respeito e a admiração. Tendo em seus braços a figura do herói, Kamau comemora em campo, junto a Kaiodê, a vitória do afeto. E é assim, munida de genialidade técnica, dribles literários e passes metafóricos que Geni Guimarães acerta um golaço e prova, mais uma vez, que a sua literatura é afro e brasileira.

 

Belo Horizonte, junho de 2020

 

Referências

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.

GUIMARÃES, GENI. Aquilo que a mãe não quer. Barra Bonita: Ed. da Autora, 1998.

GUIMARÃES, Geni. A cor da ternura, Ilustrações Saritah Barboza. 2. ed. São Paulo: FTD, 1998. Coleção Canto Jovem.

GUIMARÃES, GENI. O pênalti. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2019.

 

 

* Lorena Barbosa é professora de Língua Portuguesa e Literatura, graduanda em Letras pela UFMG, pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Como ficcionista, participa do volume 42 dos Cadernos Negros (2019, contos).

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