Lucimar Rosa Dias – Cada um com seu jeito, cada jeito é de um

Thiara Cruz de Oliveira*
Débora Oyayomi de Araujo**

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Em “Cada um com seu jeito, cada jeito é de um” (2012), Lucimar Rosa Dias situa a narrativa sobre uma menina muitíssimo especial, com suas sapequices e gostos peculiares de tão simples: gosta de pular degraus das escadas, de rodar no parquinho para lá e para cá; ela gosta de tantas outras atividades triviais, mas que deixam qualquer criança satisfeita e entretida. Esse movimento de simplicidade contribui com a edificação de um modelo para elaboração da identidade positiva na infância, sobretudo, das meninas negras. Publicada pela Editora Alvorada e ilustrado por Sandra Beatriz Lavandeira, a obra explora aspectos cotidianos de uma garotinha e suas experiências identitárias.

A discussão sobre identidade e representatividade é, portanto, construída como o “jeito” da menina. Esse jeitinho traduz, define e caracteriza uma personagem, arquitetada em uma narrativa fluída, autenticando essa maneira de ser como a construção identitária adequada. A leitura desse “jeitinho” reforça que a identidade não é algo inato, uma vez que se constrói a partir do contexto cultural, portanto, tratando-se de um processo contínuo (GOMES, 2010). Ou seja, para se formar uma identificação positiva de si, o que há ao redor do indivíduo igualmente requer uma direção em concordância com outros elementos positivos. É nesse sentido que Lucimar Rosa Dias posiciona a personagem em um lugar infantil como um corpo negro que realiza atividades cotidianas que comungam com a dignidade humana. Por isso, a menina também desenvolve um gosto pela leitura, ao mesmo tempo em que gosta de ir à escola “quase todos os dias”. A utilização do “quase” poderia sugerir uma postura negativa da menina, já que alguns estudos, referentes à literatura infantil e juvenil na perspectiva das relações étnico-raciais, apontam que o lugar intelectual precisa geralmente ser realçado para que o corpo negro seja minimamente aceito (OLIVEIRA, 2003). Mas esse “quase” apenas diz sobre as tantas tarefas e gostos habituais os quais a menina experimenta.

A narrativa segue apresentando essas outras atividades realizadas pela menina: cantar, jogar bola e montar quebra-cabeça, que, na verdade, de tão esperta, diz ser monta-cabeça, já que o trabalho desempenhado é o ato de encaixar; não o de quebrar as peças. Ela é assim: “gosta de tanta coisa que não vai dar para colocar tudo nesta página”. Esse ambiente de calmaria, de estrutura, de práticas triviais, é consensual pertencer ao típico lugar da vivência de uma criança; tudo isso desloca a produção de literatura infantil e juvenil na perspectiva das relações étnico-raciais ao longo dos anos. Afinal, nossas crianças não são representadas positivamente na maioria dessas obras para o público infantil (GOUVÊA, 2005; OLIVEIRA, 2003), não ocupando esse lugar característico para a infância. “Cada um com seu jeito, cada jeito é de um” subverte essa lógica quando apresenta esse lugar tranquilo e humano também para a negritude, de modo que a narrativa não apenas reproduz os modelos de relacionamentos já existentes, mas propõe outros (ROSEMBERG, 1984). Essa perspectiva aponta, portanto, para uma tendência na produção mais recente de obras com personagens negras: a de valorização da estética e da identidade negra (ARAUJO, 2017), contribuindo para a composição de um repertório literário mais diverso às crianças leitoras, em especial às crianças negras, que passam a ter maiores possibilidades de “se verem representadas em produções literárias nacionais em contextos bem diferentes do que foi oferecido a gerações anteriores” (ARAUJO, 2017, p. 37).

Todo esse jeitinho de ser da menina é construído e divido com a família que também tem seus gostos, por ora diferentes entre si. Esse contexto heterogêneo situa a existência das individualidades na mesma casa. O pai, a mãe, os dois irmãos e a avó têm muitos afazeres juntos, mas, muitas vezes, acham um tempinho para fazer suas próprias atividades, reforçando as subjetividades de cada familiar. A família vai se completando cada um com seu jeito e cada jeito sendo referência para cada um, mas em uma harmonia, em que “todos se amam”. Nesse contexto, a menina cresceu amando o seu cabelo crespo e tudo que é possível fazer com ele, já que dava para criar vários penteados ao longo da semana, de modo que essa menina “cada dia está de um jeito”. A fluidez não é perdida nem mesmo diante de um tema tão complexo quanto a construção da identidade feminina por meio do cabelo, sobretudo referente à menina negra.

A narrativa vai caminhando e uma curiosidade é recorrente: qual o nome dessa menina tão especial e feliz? A origem do nome dela se refere a uma capital de um país africano. E foi escolha do pai dela, pois “acreditava que a filha seria tão linda quanto a cidade que ele conhecera quando jovem”, a saber: Luanda. Certamente, a menina gostou tanto dessa representatividade que, mesmo com pouca idade, já tinha certeza: “vai visitar essa cidade” quando adulta. Nota-se, com isso, que a proposta da narradora é apresentar um país de África, de modo que seja referência para a busca de uma identidade positiva.

Cabe afirmar, portanto, que “Cada um com seu jeito, cada jeito é de um” propõe a abordagem de uma protagonista visivelmente negra que retira esse corpo negro da órbita de uma infância comum, situando-a como atuante desse espaço, em que vive conforme os direitos básicos de toda criança no Brasil – outrora negado, inclusive, nas próprias narrativas literárias. Luanda sinaliza a possibilidade de uma infância negra que tenha autoestima construída individual e coletivamente, analisando cada traço e fazendo da negritude a vivência plena.

 

Referências

ARAUJO, Débora Oyayomi. Caminhos trilhados pelas personagens negras na literatura infantil brasileira: percalços e percursos. TOM UFPR, v. 3, p. 20-42, 2017. Disponível em: <https://issuu.com/tom_ufpr/docs/tom6> Acesso em 03 out. 2018.

DIAS, Lucimar Rosa. Cada um com seu jeito, cada jeito é de um. Campo Grande, MS: Editora Alvorada, 2012.

GOMES, Nilma Lino. Educação, raça e gênero: relações imersas na alteridade. Cadernos Pagu, n. 6/7, p. 67-82, 2010. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp-.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1862> Acesso em 17 mai. 2017.

GOUVEA, Maria Cristina Soares. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n1/a06v31n1-.pdf> Acesso em 15 jul. 2017.

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Negros personagens nas narrativas infanto-juvenis brasileiras: 1979-1989. Dissertação (Mestrado em Educação). Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2003.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1984.


Sobre as autoras

* Thiara Cruz de Oliveira é mestra em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisadora do LiterERÊtura – Grupo de estudos e pesquisa em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para a infância.

** Débora Oyayomi Araujo é doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná e professora da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LiterERÊtura – Grupo de estudos e pesquisa em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para a infância.


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