Omo-Oba: histórias de princesas    

Maria Anória de Jesus Oliveira*
Reijane Maria de J. Oliveira**

[...] Desde criança, Oiá tinha como atributos a beleza, a graça, a rapidez, a determinação e a genialidade. Era de fato uma menina guerreira. (OLIVEIRA, 2009).

O livro Omo-Oba: histórias de princesas, de Kiusam de Oliveira (2009) e ilustração de Josias Marinho, publicado pela Maza Edições é constituído de sete contos. Neste, salienta a autora ainda na apresentação, se mostra “como as princesas se tornaram, mais tarde, rainhas”. E, prossegue: “Essas histórias vêm de fontes tradicionais conhecidas, contadas e recontadas pelo povo africano (iourubano) e afro-brasileiro, nas quais uma mulher chamada Oduduwá criou o planeta terra e, se uma mulher teve esta capacidade, o poder está com ela”. E é o que se segue nas sete narrativas, cujas princesas negras se desvelam e sugerem novas veredas para o leitor se ver e vislumbrar outros ares. Trata-se de princesas que expressam alguns arquétipos dos Orixás e seduzem com beleza, criatividade, audácia e genialidade.

A narrativa perfaz o total de 45 páginas, composto por seis histórias de princesas negras: “As histórias deste livro mostram como estas princesas se tornaram rainhas (OLIVEIRA, 2009, p. 07)”. Assim, vão se desvelando o universo dos orixás numa linguagem voltada para o público infantil e juvenil.  São elas: Oiá, Oxum, Yemanjá, Olocum, Ajê Xalungá e Oduduá.  Na presente obra, encontramos os seguintes contos: 1) Oiá e o búfalo interior; 2) Oxum e seu mistério; 3) Iemanjá e o poder da criação do mundo; 4) Olocum e o segredo do fundo do oceano; 5) Ajê Xalugá e o seu brilho intenso; 6) Oduduá e a briga pelos sete anéis; vejamos as sínteses das referidas histórias.

A menina Oiá, por exemplo, é uma linda princesa, cujos atributos são: “a beleza, a graça, a rapidez, a determinação e a genialidade” (p. 9). É ela a amiga inseparável de Ogum que tinha várias ferramentas e pensava ao vê-la: “Como a princesinha é linda!” e suspirava admirando, a espreitando. E, ao ser interpelada pelo amigo que descobre seu segredo, ela lhe responde:

 – Toda menina, toda mocinha e toda mulher tem dentro de si a força e o poder de um animal selvagem sagrado que, em certos momentos, devem ser colocados para fora, devem explodir para o universo com a mensagem de que fazemos parte de tudo isto. Quando colocamos essa força para fora, muitos meninos e meninas, mocinhos e mocinhas, homens e mulheres não compreendem e, por isso, devemos mantê-la em segredo (OLIVEIRA, 2009, p. 15). 

As ilustrações, embora com um preto grotesco, não são para ressaltar estereotipia dos traços da menina Oiá nem dos demais personagens enredados na narrativa. Por outro lado, reconhecemos que os fenótipos negros são endossados através da linguagem verbal e abrem fendas para a identificação de leitores. Assim, temos personagens com seus cabelos crespos, “empoderadas” e exaltadas pelos atributos físicos e psicológicos.

Em Oxum e seu mistério, ilustrada ao centro, em uma página iluminada pela cor amarela simbolizando o ouro, a riqueza, a sua exuberância, seus principais arquétipos (REIS, 2000). Afinal, relata o narrador: “Oxum era muito linda e perfumada e todos os meninos e meninas desejavam ficar perto dela” (OLIVEIRA, p. 17, 2009).

Um dos problemas da nossa literatura infanto-juvenil no tocante ao preconceito racial foi a associação do negro à sujeira, conforme identificado nos anos 80 (OLIVEIRA, 2003; JOVINO, 2006). Em consequência, sofriam os males da solidão e desprezo. Isso também foi e continua sendo recorrente em muitos espaços escolares, conforme constatado por estudiosas da área, a exemplo de Ana Célia da Silva (2001), ao pesquisar o livro didático.

Em se tratando do conto Oxum e seu mistério, o leitor poderá ampliar o olhar em face dessa complexa personagem, posto que o narrador destaca a beleza da Oxum menina que é vaidosa, atrevida, determinada e guerreira, entre outros atributos favoráveis à sua afirmação identitária. Logo, descreve: Oxum “preferia cuidar de sua beleza: das unhas, de seus cabelos, de sua pele e das joias que só ela possuía” (p. 17). Além disso, a menina Oxum “tinha conhecimentos que ninguém mais tinha: ela conseguia hipnotizar com a sua beleza quem ela quisesse (p. 17). Então, seguia encantando “a todos com a sua beleza e o seu perfume”. Essa menina era “só brilho”, ressalta o narrador. Aqui, é possível observar que a negra tez se associa à luz, ao brilho e não às trevas, ao que é tenebroso, assustador e negativo (ROSEMBERG, 1985). Há, assim, uma inversão da estereotipia1 anteriormente reiterada na literatura, a exemplo de muitas obras dos anos 80 e períodos anteriores. 

Por fim, há Ajê Xalugá, a irmã caçula de Iemanjá, entre outros Orixás infantis.  Salienta-se a sua beleza. Tanto é que “todos os peixinhos do oceano eram apaixonados por ela”. Seus atributos são “a beleza, a vaidade, a impetuosidade, a curiosidade, o empoderamento, o orgulho, a determinação e a coragem” (p. 30). Fica, portanto, o convite a mergulhar nesse mar de emoções, desafios e dilemas existenciais em cada conto, no qual podemos aumentar outros pontos e romper com os ranços racistas, adultocêntricos e brancocêntricos (OLIVEIRA, 2014). 

Em Omo-Oba: histórias de princesas, de Kiusam de Oliveira (2009) existem  protagonistas negras: meninas e meninos ativos, altivos, destemidos e determinados. Eles/as não são objeto de discurso e, sim, sujeitos de discurso pelo papel de agir e fazer valer seus desejos (PROENÇA-FILHO, 1997). Não são, por outro lado, idealizados e vivenciam relações afetivas sem deixar de ser, em alguns momentos, conflituosas.

Os caracteres de Oxum, reiteramos, é o atrevimento, o cheiro inebriante, além da beleza realçada quando solta “seus lindos cabelos negros e crespos”. (OLIVEIRA, 2009, p. 20). Logo, difere das princesas loiras, europeias, tais quais as dos contos de fadas que povoaram e povoam nosso imaginário. Assim, abrir-se-á outras possibilidades para vislumbrar espaços sociais africanos e, nele, alguns seres ficcionais. Assim, se insurgirão negras princesas, delicadamente descritas e ilustradas. Oxum é apenas uma delas, além de Olocum e o segredo do fundo do oceano, por meio da qual se poderá sentir os dilemas e desejos dessa “linda princesa, porém, misteriosa e triste”, cujos caracteres era a  “introspecção, a contemplação, a timidez e a quietude” (OLIVEIRA, 2009, p. 30).

Enfim, vale lembrar que estamos a uma década de obrigatoriedade de se trabalhar a história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica e carecemos de produções que visem à valorização dos seres ficcionais negros e, por conseguinte, dos espaços nos quais são situados.  Eis a proposta central de nossa breve reflexão. Assim sendo, procuramos estabelecer um diálogo que se aproxime mais de um convite à leitura do referido livro, trazendo à tona alguns dos seus aspectos mais relevantes. Outros mais poderão ser identificados, obviamente, dependendo do ponto de vista de quem se deter sobre as narrativas em questão.

Referências

BROOKSHAW, David.  Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil. In. SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (Org). Literatura afro-brasileira. Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 179-217. 

OLIVEIRA, Kisuam de. Omo-Oba: histórias de princesas. Belo Horizonte: Mazza, 2009.

OLIVEIRA, Maria Anória de J. Negros personagens nas narrativas literárias infanto-juvenis brasileiras: 1979-1989. 2001, Dissertação (Mestrado em Educação) – Departamento de Educação da UNEB, Salvador, 2003.

PIZA, Edith. O caminho das águas: estereótipos de personagens negras por escritoras brancas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-arte, 1998.

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1997, pp.159-177.

REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé: A panela do segredo. São Paulo: Mandarim, 2000.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.

SILVA, Ana Célia da. As transformações da representação social do negro no livro didático e seus determinantes.  2001, Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da UFBA, Salvador, 2001.


Notas

1 Estereótipo é compreendido como uma ideia generalizada e cristalizada em relação a um grupo, a partir de preconceitos, um deles é o etnico-racial, conforme abordado por Piza (1998), Brookshaw (1983), citando aqui apenas estudioso cujas pesquisas centram-se na literatura.  


Sobre as autoras

* Docente da UNEB (da Graduação em Letras e do Mestrado em Crítica Cultural/Pós-Crítica).

** Mestra em Letras/UNEB (Programa de Mestrado em Crítica Cultural/Pós-Crítica/UNEB).


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