O Aiê[1] de Lívia reflete no abebé o Orun[2] de Lili: A filha de Oxum escreve e reescreve sua infância

Alen das Neves Silva*

No campo literário brasileiro, as palavras negras são via de regra colocadas à margem e, desta forma os leitores, e possíveis leitores, não possuem um extenso corpus dessa escrita fazendo com que muitas questões urgentes não venham às rodas de discussões entre amigos e familiares, e nem nas escolas brasileiras. Assim, ao acrescentar um qualificador e um determinante para o conceito de literatura brasileira, no caso o negra e o infantil, os produtos desta são quase sempre deixados à margem do acervo presente em nossas escolas. 

Autores como Monteiro Lobato, Ziraldo, Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, entre outros, tocam em vários temas, porém a questão do negro não figura ou, quando há, são personagens rasos, estereotipados e sem expressividade, assim como seus costumes, cultura e crenças são ridicularizados e/ou silenciados. Hoje, estas questões estão vindo à baila, graças aos esforços de autores que são provenientes da cultura afrodescendente e que a assumem sem receio dos empecilhos que suas produções possam sofrer.

A afrodescendência é um dos elementos que a professora, poeta e ficcionista Lívia Natália traz à superfície em As férias fantásticas de Lili (2018), com sua escrita sensível e estruturalmente clássica. Quando se diz clássica, refere-se à escolha do poema narrativo, que carrega uma atmosfera do “épico”, aqui entre aspas, para marcar um uso da estética para subverter a ordem deste tipo textual, tão solidificado. Será por meio da paródia que a autora irá narrar um fato corriqueiro para a maioria das pessoas: as férias.  Na escrita de Lívia Natália, o leitor entra em contato com Lili. A menina pode ser considerada uma semideusa, pois é filha de Oxum e assim como Hércules passa por provações que a fazem compreender-se enquanto sujeito.

A personagem tem uma travessia de reconhecer-se por dentro e perceber que sua história e descendência são tão ou mais emocionantes que as de seus colegas de escola. A presença de personagens da cultura afro-brasileira congrega o ato de valorizar sua proveniência e será neste intento que a protagonista entra em seu trabalho hercúleo, o de vencer o mais perturbador e angustiante deles: o preconceito internalizado que ela precisará vencer, para que todo o exercício de autoconhecimento possua realmente um sentido em sua vida. 

Com essa obra, a autora apresenta reflexões sobre ser e sentir-se parte de uma sociedade, mesmo que para tal seja preciso estar completamente deslocada da “normalidade”, que Lili acreditava ser o regente da vida. Os versos que compõem a obra trazem uma referencialidade aos itans[3], ou seja, o seu caráter oral e mítico. Ao retomar esta forma de expressão promove uma fluidez para a leitura da obra. Além disso, o ambiente fantástico auxilia ao leitor adentrar no texto de Lívia Natália, que também se apoiará nas refinadas aquarelas de Carolina Teixeira (Itzá), capazes de captar toda a narrativa e criar uma visualidade plástica que, além de embelezar contam esta aventura, na qual a jovem Lili se lança para que possa se conhecer e, assim, ter a capacidade de se dizer parte dessa cultura. A trajetória de Lili de sua casa à escola pode ser lida como uma fábula, pois o tom moralizante se desenha em cada palavra que a autora escreve, para que sua personagem possa reescrever suas memórias e vivências.

O fantástico na obra de Lívia é ancorado na mitologia afrodescendente. Ao trazer os Orixás, ela promove a união entre o Orun e o Aiê, presentes na mitologia iorubana. Estes são personificados na figura da garotinha Lili, que, por ser considerada semideusa, apresenta aos leitores a dualidade entre humano e sagrado que convivem, conflituosamente, em nossa heroína. Porém, o fantástico não se limita a ela; a presença dos próprios orixás dá à narrativa essa espacialidade mítica. Os clamores de Oxum, os avisos de Exú e a decisão de Xangô e, por fim, as ações dos erês criam este ambiente. O teórico Tzvetan Todorov, em Introdução à literatura fantástica, assevera que

O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 1980, p. 15-16)

Partindo de toda esta ambiência mítica, a história de Lili é instigante e bastante instrutiva, pois traz à sociedade questões espinhosas que necessitam ser material de reflexão já na primeira infância. As crianças que entrarem em contato com a literatura de Lívia Natália poderão discutir temas como preconceito por crença, identidade e condição socioeconômica que, mesmo tratadas com leveza, escancaram as diferenças como armas poderosas nas mãos dos desinformados, pois estes as utilizarão para diminuir e condenar àqueles que não estão dentro de um padrão sociocultural e etinicoreligioso pré-estabelecido. As crianças, público-alvo desse poema-narrativo ou poema-fábula, encontrarão informações sobre a cultura e religiosidade afro-brasileira de uma maneira leve a ponto de as colocarem em flutuação. Isto se dará pela linguagem simples, no sentido de palavras e expressões que a protagonista utiliza para narrar sua aventura pelo mundo encantando dos Orixás.

O diálogo da autora com o leitor é realizado, como em Monteiro Lobato, por meio de estratégias estéticas e linguísticas que vão mergulhá-lo numa aventura instigante e instrutiva. Nas obras de Lobato há um elemento mágico, que transporta os personagens para as mais longínquas terras. O mesmo acontece com Lili que, por meio de um alimento é levada para dentro de sua essência para entender-se enquanto semideusa e afrodescendente.

Para esta viagem, a escolha da prosa em versos se justifica devido à sua estrutura. A estratégia de produzir um poema apoiado na fábula nos dias atuais é um modo delicado de reavivar, na forma, o clássico e mesclá-lo ao contemporâneo, a cultura afro-brasileira. O leitor perceberá presença da proposição, da invocação, e da dedicatória, entre outros elementos que caracterizam a epopeia. Porém tais componentes figuram como apropriação crítica da narrativa épica – com suas marcas de discurso monológico lastreado no poder masculino. Em As férias fantásticas de Lili, tal postura é relegada quando do relato das experiências infantis encenadas no texto.

Lívia Natália utiliza elementos do épico e do conto maravilhoso com a leveza que a literatura infantil necessita. Sobre a proposição, apresentação da heroína, a autora a descreve como “silenciosa”, com cabelos cacheados e ornados com fitas vermelhas e, assim conhecemos a forte Lili; que podemos entender também como inscrição da memória da escritora, que jamais se deve deixar extinguir. A narrativa está calcada no rememorar que Lili apresenta aos seus leitores. Nesse ambiente de reviver, no qual personagem caminha vigiada, guiada e amparada por seus ancestrais, desenham-se na literatura infantil relações de respeito, confiança, amizade e amor, que transbordam a cada verso que a escrita faceira e graciosa de Lívia nos oferece para que possamos degustá-la como, segundo conta o narrador, “O pedaço delicioso de galinha, tão gostoso, levou a menina a uma linda jornada” (p.12).

E todo este caminho culminará na moral do poema-fábula: ser diferente é ser parte da normalidade. Para Lévinas, a alteridade não é apenas uma qualidade do outro, é sua realidade, sua instância, a verdade do seu ser e, por isso, para nós, torna-se muito fácil uma permanência na coletividade e na camaradagem – difícil e sublime é co-habitar.” (2009, apud HADDOCK-LOBO, 2006. p. 48).

O amparo de seus zeladores espirituais configura a invocação, mais uma herança da épica popular que o texto carrega, até como contestação à ordem que este estilo carrega em sua essência, como, por exemplo, nos versos “Minha filha está chorando! Olorum, antes fosse eu! / Mande alguém lá, Xangô, para ver o que aconteceu!” (p.9). A invocação se faz presente, mas os versos revelam a relação mãe-filha na qual o amor é o combustível e, também, uma presença da alteridade. Para Lévinas “o Eu (Moi) diante do Outro é infinitamente responsável” (LÉVINAS, 2009, p. 53). Com estas noções, nota-se que Oxum e Lili são a alteridade em essência.

Ainda caminhando pelo campo da estrutura do poema-fábula, percebe-se a dedicatória que na obra de Lívia Natália confere todo um ambiente maternal que a sua mãe Oxum carrega: “Para Kiluanji, o filho que Osun me deu. / E para Sophie Awena, Artur e Kalile. (p.2), ao iniciar agradecendo por seu filho e trazendo outros nomes, esse gesto configura todo o sentimento maternal que a autora carrega, pois os coloca em seus braços os acalentando com toda a proteção que ser lembrado confere àqueles que o são.

Na trajetória de nossa heroína percebemos que o fantástico a envolve desde que se inicia a ação. E ela o mantém em toda sua trajetória de compreender-se. As linhas de Natália são como os desenhos que os enegrecidos pés dos adeptos do Candomblé riscam e rabiscam no chão dos terreiros, pois ao levantarem a poeira envolvem aos participantes – em nosso caso, leitores – no maravilhoso e inebriante ambiente da cultura afro-brasileira.

Deste modo, as palavras da autora na última estrofe condensam a tomada, ou a possessão para os praticantes desta religião, de quem entra em contato com sua literatura porque mescla o sonho com a realidade, ou seja, essa mistura a representa, pois Lili é uma semideusa e como tal, tem o melhor dos dois mundos, a capacidade de estar entre os mortais e a de ir aos mais distintos lugares para repor suas energias e viver momentos únicos. Estar na incerteza é para a jovem protagonista sua maior descoberta: “E esta história que eu contei aqui nem eu sei que fim levou. / Pois jamais saberemos se o que eu aqui contei ela viveu ou sonhou. (p.21).

Enfim, ler As férias fantásticas de Lili é um conhecer-se e ver se você é o que promove a chacota ou o que a sofre. Trata-se de uma obra que coloca em discussão o que é fantástico, a simplicidade ou a grandiosidade que o dinheiro pode pagar? Todos que entrarem em contato com a escrita faceira de Lívia perceberão que, para dizer de si para os outros é necessário que tenha dito a você primeiro, por isso, que o rememorar é o mecanismo que mais auxilia aos que pretendem falar de si. Assumir que suas memórias são relevantes e merecem ser repassadas se dá após ter compreendido que para viver férias fantásticas, por exemplo, não requer dinheiro, mas sim uma boa companhia... seja ela humana, mítica ou literária como esta obra de Lívia Natália.

Referências

HADDOCK-LOBO, Rafael. Da existência ao infinito: Ensaios sobre Emmanuel Lévinas. São Paulo: Loyola, 2006.

NATÁLIA, Lívia. As férias fantásticas de Lili. 1ªed. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

PÓVOAS, Ruy do Carmo. Itan dos mais-velhos: contos. 2. ed. Ilhéus-BA: Editus, 2004.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura Fantástica. – São Paulo: Perspectiva, 1992.

 

[1] Aiê: na mitologia iorubá, é a Terra ou o mundo físico, paralelo ao Orun, mundo espiritual. Tudo que existe no Orun coexiste no Aiyé através da dupla existência Orun-Aiye.

[2] Orun: palavra que define, na mitologia iorubá, o céu ou o mundo espiritual.

[3] Segundo Ruy de Carmo Póvoas(2014), a palavra nagô ìtán designa não só qualquer tipo de conto, mas também essencialmente os ìtán àtowódówó, histórias de tempos imemoriais, mitos, recitações, transmitidos oralmente de uma geração a outra, particularmente pelos babaláwo, sacerdotes do oráculo Ifá. Os ìtán-Ifá estão compreendidos nos duzentos e cinqüenta e seis “volumes” ou signos chamados Odù, divididos em “capítulos” denominados ese.

 

* Alen das Neves é professor, graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.