Um mais um é sempre mais que dois 

Laura Oliveira*

 Em seus livros Memórias dos meus carvoeiros e No reino da carapinha, publicados em 2017 e agrupados num só volume, Fausto Antônio traz a rememoração da ancestralidade e da cultura negra em diálogo com a ficção. O autor é professor da UNILAB, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira e Doutor em Teoria Literária e Historia da Literatura pela UNICAMP. Ficcionista, poeta, crítico e dramaturgo, Fausto Antônio tem participação em várias edições dos Cadernos Negros.

Na capa de No Reino da carapinha, há no centro uma imagem de uma grande carapinha. O cabelo crespo é um símbolo muito forte de resistência da cultura negra ao longo da história, uma forma de afirmação de beleza não vinculada ao estereótipo eurocêntrico que foi adquirindo um forte sentido político ao longo do século XX e permanece atual.

Nilma Lino Gomes (2002) afirma que “o cabelo tem sido um dos principais símbolos utilizados nesse processo, pois desde a escravidão tem sido usado como um dos elementos definidores do lugar do sujeito dentro do sistema de classificação racial brasileiro.”

O livro também é sobre resistência, sobre conhecer uma cultura para mantê-la viva. Como pode ser observado pela capa, a edição obedece uma lógica ousada:   a capa e a contracapa representam contos diferentes. O conto infantojuvenil “No reino da carapinha” narra a aventura de sete crianças em um reino chamado Carapinha. Elas conhecem o reino através das histórias contadas por sua avó, e toda uma cosmogonia negro-africana e negro-brasileira que vai sendo desvendada ao longo do texto por essas crianças e por nós leitores. Elas adentram o reino da carapinha com uma missão de descobrir e conhecer sobre suas ancestralidades e suas origens. Descobertas essas que são feitas pela oralidade, marca muito presente na transmissão da cultura afro-brasileira e africana, como pode ser visto no trecho abaixo.

[…] vocês terão, no Reino da carapinha, de recuperar um livro muito antigo de histórias. Mas não é um livro escrito, é um livro falado e que ficou escondido, quando ainda existia trabalho escravizado, num cofre de segredos guardados pela Senhora do Tempo. Parte desse livro está nas minhas histórias e outras tantas partes nas histórias contadas por muitos e muitos griots e griotas. (p. 23-24).

 Em Memórias dos meus carvoeiros, a figura do Baobá, também centralizada na capa, representa a tradição de uma cultura ancestral, protagonista de várias lendas que fazem parte da cosmogonia africana e afro-brasileira. Pode chegar a ter mil anos, sendo testemunha da história que a cerca, é também um símbolo de religiões de matrizes africanas.

Conto de um único parágrafo, retrata a vida de um adolescente e suas memórias, atravessadas por varias temporalidades, numa espécie de sobreposição temporal. Memórias essas que também são de seus familiares carvoeiros. No trecho abaixo podemos perceber um certo fluxo de consciência, que teve origem no modernismo europeu e que é amplamente usado na literatura contemporânea:

[...] Assim estão postas as coisas, as lembranças da minha mãe carvoeira, do meu tio Ernesto também carvoeiro e dos meus avós sujos de carvão, queimados pelo fogo da lenha e pelas palavras interditadas por um ditado mudo no papel, que fervilha de ideias, de vozes, de cores e de memórias que o dono da fazenda suprimia e marcava a ferro. E as marcas cresciam no caderno da quitanda. (p. 9).

Pode-se perceber ao longo do conto o empobrecimento dessa família, a falta de escolaridade, consequências de um passado escravocrata e os efeitos que isso causou e causa a população negra brasileira. Neste trecho a mãe do personagem tenta escrever uma carta para sua ex-patroa, resquício de um passado de servidão e de uma estranha relação de gratidão aos senhores das “casas grandes”.

Mamãe queria mandar uma carta, noticias suas para Dona Amélia. Ela insistia, ela foi uma ótima patroa. Eu menino sinuoso e escuro como o tempo que não volta, indagava. Mamãe, por que a senhora nunca foi registrada? Os olhos enchiam de lágrimas. A conversa encurtava. (p. 24).

Ambos os contos de Fausto Antonio, trazem em si um ato de resistência, feita através de traços dos mais velhos e sobre suas vivências negras.  Ato de suma importância para o reconhecimento da literatura afro-brasileira e para o conhecimento de uma cultura que foi durante muito tempo apagada.

 

Belo Horizonte, 05 de março de 2018.

 

 

Referências

ANTONIO, Fausto. No reino da carapinha, Fortaleza: Edições UFC, 2017.

ANTONIO, Fausto. Memórias dos meus carvoeiros, Fortaleza: Edições UFC, 2017.

GOMES, N. L. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, p. 40-51, 2002.


* Laura Oliveira é concluinte do Curso de Letras da FALE-UFMG e bolsista de Iniciação Científica do Projeto literafro – Portal da literatura afro-brasileira, fase 2.

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