Outras vozes, de Plínio Camillo: contos sobre o negro escravizado no Brasil
Cátia Maringolo*
O escravo
João Domingos
comeu
comigo-ninguém-pode
até relinchar.
A crioula
Joana Adelaide,
achada
toda torta,
finada
com a língua grande e roxa.
O doméstico,
João Afonso,
descoberto
atrás do pasto
com o rosto
todo contraído
a estrebuchar.
Plínio Camillo
2015
As narrativas tão amplamente disseminadas e recorrentemente mostradas em filmes, livros de história e novelas açucaradas de final de tarde pintam um quadro da escravidão no Brasil que perpassa pela narrativa de feitores benignos e a favor da igualdade entre todos e todas, brancos ou negros, ou de negros e negras escravizados conformados com a situação de opressão, humilhação e violência. A história do negro entre nós aparece como uma narrativa homogênea e uníssona, onde simplesmente é esquecida – ou apagada – a voz do próprio negro, daquele que foi constantemente destituído de sua própria humanidade, a fim de garantir a manutenção do sistema.
As outras vozes, vozes destes tornados outros, alheios e inumanos, questionam os discursos totalizantes e excludentes sobre a experiência real de negras e negros escravizados: ao invés de corroborar a ideia de que o regime no Brasil foi mais brando do que em outros países, ou mesmo de que a liberdade concedida foi fruto da assinatura de uma lei, ou que a experiência servil foi a mesma para todos os negros e negras, essas outras vozes possibilitam de forma contundente a não aceitação da narrativa que constrói uma postura submissa das vítimas perante a situação de opressão a que estavam condenadas. Ao contrário: vê-se aqui sua participação ativa e permanente na busca por liberdade e por novas formas de vida.
E, para além das dualidades opressor versus oprimido, conformismo versus ativismo, os contos presentes em Outras vozes (11 Editora, 2015) criam um leque multicolorido de experiências. E problematizam noções estanques sobre masculinidade, feminilidade, submissão, opressão, exclusão, homossexualidade, heteronormatividade, violência de gênero e racial. Se a luta pela liberdade não é esquecida e se realiza até mesmo pela via da morte do opressor ou do suicídio de quem arrasta as correntes; também se faz presente a corroboração do sistema, em que muitos libertos oprimem seus irmãos de cor.
O livro de Plínio Camillo apresenta trinta e três narrativas que percorrem a memória da escravidão no Brasil. Utilizando como argamassa para a escrita registros e documentos históricos, as contribuições dos estudos de Kangni Alem, professor, escritor e crítico literário togolês sobre a diáspora africana, e também as personagens do romance Um defeito de cor (2006) de Ana Maria Gonçalves, Camillo instaura uma impertinente reflexão sobre o problema que contradiz, ou pelo menos problematiza, os discursos dominantes sobre a questão. Com uma multiplicidade e diversidade de personagens, Camillo propicia a emergência de vozes que foram, e muitas vezes continuam sendo, estigmatizadas, silenciadas e oprimidas.
Em Outras vozes, A narrativa da escravidão não é mais pautada pelo ponto de vista dos senhores, mas dos que, durante séculos, foram constantemente violentados, tanto física quanto psicologicamente. Nos contos, temos as histórias de negras e negros que não se conformaram com a vida a que foram submetidos do lado de cá do Atlântico.
Alguns deles, como João Domingos, Joana Adelaide, João Afonso ou Zulmira, “quando seus filhos são vendidos: come terra” (p. 27); outros pegam em armas e partem para a luta, como o alufá Bilal Licutan, figura histórica da Revolta dos Malês e que, mesmo diante da quase impossibilidade de sobreviver às 1200 chibatadas a que fora condenado, não perde sua fé em Alá, nem a crença por dias melhores, pela liberdade plena. “― Regozijam-se com a mercê e com a graça de Deus, e Deus jamais frustra a recompensa dos fiéis” (p.53); e outros que não pensam duas vezes e atentam contra a vida de seus irmãos e seus iguais de modo a garantir a existência de espaços de luta e liberdade, tendo em vista um bem comum, como no conto “Amaral”, onde a personagem se recusa constantemente a morar em quilombo, sendo posteriormente morta pelo próprio irmão. O conto chama a atenção para a linha tênue que separa liberdade e prisão, imposição ideológica e livre-arbítrio.
Também temos a importância da nomeação: cada personagem tem um nome, uma experiência particular de vida, e assim deixa de ser apenas mais um na multidão. A nomeação se alia a outros procedimentos narrativos para fazer com que, mesmo estando em situações tão perversas e desumanas, tais sujeitos reconquistem sua dignidade. Assim sendo, cada narrativa torna-se única e, ao mesmo tempo, coletiva.
No primeiro conto, “todo dia” – construído a modo de fluxo da consciência, sem pontuação ou parágrafos –, a rotina diária é entrecortada por situações “banais” vividas por cada um dos personagens. Na repetição cotidiana das mesmas tarefas, encontramos a delicadeza de alguém que “vê uma borboleta azul e lembra da mãe que não conheceu”.Em meio à exaustiva sequência de trabalho, “todo dia pelas quatro e meia da manhã já tomaram café escuro e forte de deixar a boca torta de tanto açúcar tem negrinho que já acorda morto”, o que, num primeiro momento, parece ser apenas uma repetição compactada de tarefas, mostra-se um todo fragmentado. O discurso totalizante da rotina é desfigurado pelas experiências pessoais de cada um: “escravos choram até não poder levantar enxada duelam com a terra [...] e depois dormem” (p. 17). Vemos também a multiplicidade de etnias e credos, num ambiente onde nem todos falam a mesma língua, mas compreendem a situação pela qual estão passando.
Por outro lado, há escravizados que se tornam opressores e seguem a lógica do sistema, que condiciona um melhor tratamento e, mesmo, alguma ascensão à violência contra os subalternos. Descontruindo simplismos e dualidades, os enredos mobilizam seres humanos, guiados por medos, paixões, egoísmos, ganância, crueldade. O personagem Ditão retorna à África após a abolição, torna-se comerciante, aprende “facilmente a língua e a enganar nas medidas” (p.139), e, mais tarde, ganha prestígio e posição. “Ordenava surras de chicote em quem o chamasse de Ditão. Agora era senhor Benedito, comendador, patrono das artes, da família e dos bons costumes” (p.144).
Perfilam diante do leitor personagens castigados pela situação de miséria e violência constante, pela falta de justiça, ou por uma justiça seletiva, como no conto “Ambrozina”, que narra a história de uma menina acusada injustamente de matar a patroa e que, mesmo diante de tantas provas a seu favor, vê a justiça tapar os olhos e os ouvidos, e se guiar pela lei dos mais fortes.
Ambrozina, com doze anos, disse que foi.
Depois, afirmou que não foi.
Ninguém ouviu. Tinha cinco homens brancos com mais de 30 anos, confiáveis, com profissão e esposas que juraram sobre os Evangelhos que a negrinha havia matado a machadadas a patroa. (p.135).
Tem-se também a problemática da Igreja como beneficiária do sistema e agente mantenedor do estado de subjugação, como a narrativa da tortura infligida a João Crioulo, para que confessasse onde se encontravam seus companheiros. O preso recusa a delação e é irônico o modo como o narrador descreve o sábio médico que vai atendê-lo e o misericordioso padre ali presente para garantir que ele confesse seus pecados e entregue a localização dos companheiros. “O compadecido padre achou que tinha ouvido o moribundo cantar. O sábio médico pensou na negrinha na casa dele” (p.42). Ambos representam o status quo em sua tentativa de sobrevivência: o médico e o padre mostram-se alheios ao sofrimento de Crioulo e, mais do que isso, alheios às misérias de todos os escravizados, sua preocupação se faz presente apenas quando implica ganho monetário ou garantia de manutenção do regime.
As narrativas de Outras vozes são entrecortadas por anúncios publicados na imprensa da época, que operam como contraponto aos dramas encenados. Nesses enxertos, negros e negras tornam-se objetos venais, destituídos de qualquer dignidade, como no anúncio “Urgente: criança doente”. Já os enredos de Camillo sublinham a humanidade diversificada destes sujeitos, emparedados entre a generosidade e a perversidade.
No conto “Júnia”, entremeado à homogeneidade do discurso feliz da personagem principal, tem-se o eco de outras vozes, aterrorizadas por medos banais e quase irrealistas. A protagonista tem uma vida feliz, com família, filhos e amigos: “Júnia nasceu escrava no dia de São João. De olhos abertos. Sorrindo. Nada a fazia chorar” (p. 113). E sua vida termina da mesma maneira que começou: “morreu feliz, em uma quinta, cercada pelos devotos filhos de sangue e de peito, por todos os carinhosos netos de coração e o fiel companheiro dos últimos dez anos” (p.113). Mas, para os demais personagens da narrativa, a vida é um constante medo. A avó “tinha uma desconhecida abominação pela Lua e o avô, que experimentava um terror perverso por qualquer poça d’água” (p.111); ou a “mãe que passava muito mal toda vez que sentia o cheiro de borboletas, e o Mateus, que sofria uma ojeriza por aranhas brancas” (p.112).
No conto “Sacramentos”, sobre a vida da personagem João Criolo, mais uma vez o regime escravista é narrado pelo olhar do oprimido, obrigado a se calar desde cedo, a fim de garantir a sobrevivência: “Nunca falou nada, nem quando o menino Ricardo, que morreria cedo de gonorreia, fez ele de mulherzinha na mesma despensa. Foi adestrado na chibata a cuidar da sua própria vida” (p.121). Por outro lado, se João Criolo é o violentado e subjugado, no conto “Cinco negrinhos”, que narra a vida de cinco irmãos após a Lei Áurea, a perversão é encarnada por um homem negro, Ditinho. Ele é abusa de crianças e acaba linchado pela população. Depois de ser preso e castigado pelos próprios companheiros de sela, Ditinho decide então não deixar “moleque nenhum sobrar para contar história” (p.143).
Sublinha-se em ambas as narrativas o poder da fala, da narração da própria história e da experiência de vida particular de cada um destes personagens. Uma maneira de garantir a opressão é por meio do silenciamento dos discursos dissonantes, problematizadores e questionadores. Uma vez que essas personagens ganham voz e fala, o discurso homogeneizante e totalizador cai por terra, e a noção de escravidão benigna, ou de passividade dos escravizados perante a sua condição cai por terra em enredos marcados pela revolta.
Retomando a fala de Conceição Evaristo (2007) – “a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. concluímos que Outras vozes, de Plínio Camillo, não deve ser lido como uma história de ninar, que objetiva a manutenção do status quo opressor, mas sim como discurso dissonante, voltado para incomodar. Longe de construir uma narrativa única e dualista, Camillo cria uma colcha de retalhos de narrativas e experiências de vida, restituindo a humanidade negada aos negros e negras vítimas da escravização.
Referências
CAMILLO, Plínio. Outras vozes: contos sobre o negro escravizado no Brasil. Jaú, SP: 11 Editora, 2015.
EVARISTO, Conceição. Da Grafia-Desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, M. A. (Org). Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p 16-21.
* Cátia Maringolo é professora, Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais.