Memórias, histórias e vidas reescritas ao sabor de Rio Negro, 50...

Adélcio de Sousa Cruz*

Nei Lopes traz à tona de nosso tumultuado mar de leituras outras faces da recente história do país. Rio Negro, 50 vem apresentar ao público leitor aspectos pouco ou nada conhecidos sobre a intelectualidade negra brasileira e seu duplo, simultâneo, e incômodo lugar: dentro e fora, fora e dentro, tanto da comunidade de origem quanto da cidadania. Lopes escolhe um dos momentos cruciais da brasilidade – o day after da derrota da copa de 1950, em pleno Maracanã – para iniciar mais uma narrativa sobre a população afro-brasileira, concluindo com o despontar da década de 1960. Os personagens vão se apresentando à medida que o enredo transcorre pelo Rio de Janeiro do Café e Bar Rio Negro – fina ironia em relação ao Barão do Rio Branco, patrono e fundador da carreira diplomática no Brasil. O prólogo do romance abre os olhos dos leitores a fórceps: uma cena de linchamento, que no livro possui o nome de “Crime da Copa”. É o país sendo desarquivado a partir das diversas histórias que possuem como ponto de encontro, além do citado café, o bar-restaurante Abará, ambos na região da Cinelândia.

A novidade neste romance é que o narrador nos presenteia com uma rica galeria de personagens “anônimas” que “contracenam” e convivem na mesma cidade e nos mesmos ambientes com Abdias Nascimento, o maestro Moacir Santos, Donga, Pixinguinha, Paulo Moura, Johnny Alf, Agostinho dos Santos, Dolores Duran, além de craques do futebol daquela época. A cena política possui uma presença-ausência constante – Getúlio Vargas – e até mesmo o integralista Plínio Salgado dá os ares de sua graça em parte decisiva do enredo, contribuindo para a perseguição dos intelectuais negros.

O mundo do samba continua povoado e coroado com histórias de Zé Keti, Aniceto do Império, somente citando dois expoentes. O universo cultural e do show business carioca na década 1950 também está estampado e entremeado no que denomino estrutura episódica da narrativa, revelando ainda, em parte, o porquê da centralidade da então capital do país na vida e produção cultural brasileira. Para tanto, o narrador vai se cercando de uma gama cada vez maior de personagens históricos – por sua vez transmutados em seres de ficção – ao lado da gente do povo que habita o romance.

É esse recurso arriscado – o grande número de personagens – que Nei Lopes manuseia com a maestria e desenvoltura de seu narrador, que ora costura, ora pontua levemente, ora apenas faz com que histórias se cruzem furtivamente, nos arredores do Rio Negro ou em torno das conversas de mesa e balcão do Abará. O narrador, que às vezes se denuncia como personagem, permite que episódios sobre acontecimentos históricos e tradições afrodescendentes sejam narrados por vozes anônimas – pelo menos, no que diz respeito aos discursos da “história oficial” – possibilitando que saiam da névoa silenciadora das alteridades consideradas pelo poder como “subalternas”.

Outro ponto de riqueza do cenário constituído a partir da estrutura episódica é a ligação com a diáspora africana nas Américas, seja atravessando as histórias contadas pela personagem Isa Isadora sobre suas turnês “fantásticas” pela América Latina, seja com a incorporação de visitas de expoentes das artes afro-americanas como Dizzy Gillespie (que no enredo, vem ao Brasil para rever Paulo Moura) e Josephine Baker. Estes nomes de peso, entretanto, quando pisam no solo da “democracia racial”, descobrem o “racismo à brasileira”: Mrs. Baker é impedida de hospedar-se em um hotel de “melhor” qualidade. O motivo, segundo a recepção é que “não havia vagas”. Mas e a reserva antecipada, não vale? Já Mr. Gillespie causa espanto nos jornais da época, quando decide visitar o subúrbio, a favela e, consequentemente, conhecer as práticas religiosas afro-brasileiras. Vale citar a passagem que nos revela outro motivo da viagem do músico estadunidense:

Tem gente, entretanto, que jura de mãos postas que a intenção de Mr. Gillespie é mais política do que outra coisa. As chamadas “fontes fidedignas” dizem que ele, nessa escapulida que agora dá, com Candeia Filho e sua rapaziada, até a casa do Chico Santana, fala é em nome do movimento pelos direitos civis, em seu país e nas Américas. (LOPES, 2015, cap. 7).

E mais, o jazzista teria vindo a partir, ainda, de um encontro com um dos intelectuais que frequentavam o Rio Negro, Paulo Cordeiro, em exílio político-racial nos EUA, desde a investida do líder integralista sobre o grupo que se reunia naquele já conhecido ponto de encontro de pensadores e ativistas da “negritude” carioca. Paulo Cordeiro é também um misto de “embaixador” e “correspondente internacional” do grupo, e é ele que narra, em carta datada de 4 de julho de 1956, um dos fatos/gatilhos do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos: a recusa de Rosa Parks a dar o seu lugar a um branco, nos últimos assentos de um ônibus, na cidade de Montgomery, estado do Alabama. Estas informações adicionadas como introdução e tempero à vinda do músico adepto, então, do Be Bop, podem servir de reflexão sobre a falta ou pouca conexão entre as lideranças da diáspora africana nas Américas.

O que também chamará, e muito, a atenção do público leitor é o retrato de um Rio de Janeiro em período anterior àquele narrado por Paulo Lins em Cidade de Deus (1997). O enredo proposto por Paulo Lins localiza-se temporalmente na sequência daquele apresentado por Nei Lopes. Ambos os escritores diferem-se ainda em relação à parcela da comunidade representada ficcionalmente. E, muitas vezes, a vida real faz parecer, como na ficção, que tais subjetividades não convivem ou compartilham mesmos lugares e espaços... É Nei Lopes que, juntamente com Ana Maria Gonçalves, começa a trazer para o romance de viés histórico-memorialístico, com maior intensidade representacional, a intelectualidade negra. O livro de Lopes ainda atua como suplemento, no sentido derridiano, ao romance Agosto, de Rubem Fonseca, que passeia ficcionalmente pelo derradeiro período do governo de Getúlio Vargas.

Interessante notar ainda a semelhança com o cenário político atual, momento de ressurgimento de discursos e práticas para lá de conservadoras – no pior sentido do termo – e a memória recuperada na narrativa de Rio Negro, 50. Também assistimos a outra derrota do “escrete nacional” em casa... Alguém se recorda do Alemanha 7, Brasil 1? Pois é, temos o costume de jogar os vexames para debaixo do tapete do esquecimento. A literatura possui esta característica fundamental de nos reavivar a memória mesmo que, aparentemente, isto não esteja entre seus propósitos primordiais...

E, muito embora, na recriação ficcional de Lopes, os intelectuais afro-brasileiros frequentassem, preferencialmente, o Bar e Café Rio Negro, as trocas de experiências entre eles e a comunidade negra daquele Rio de Janeiro da década de 1950 não se resumiam às rodas de conversa, chorinho e samba. Confira como tais caminhos se entrelaçam nessa instigante narrativa que, ao final, vem assinada pelas iniciais “NL” e datada em 2013. Desconfio, muito mineiramente, que seja mais um dos jogos ficcionais propostos àquelas pessoas que se dedicarem à leitura do recente romance deste perspicaz e surpreendente Nei Lopes. Seja muito bem vindo, Rio Negro, 50!

* Adélcio de Sousa Cruz é doutor em Letras, Estudos Literários (UFMG), professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura do Departamento de Letras da UFV; pesquisador dos núcleos NEIA e NELAP, ambos da UFMG; autor de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz (7 Letras, 2011).

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