Circo de pulgas: a escrita afro-brasileira de Manto Costa

Harion Custódio*

Os signos linguísticos, isto é, as materialidades voltadas para a comunicação, são carregados de marcas ideológicas (BHAKTIN, 1988). Isso, por conseguinte, confere à prática textual – falada ou escrita – um poder político não neutro que pode ser alienante (no pior sentido da palavra) ou emancipatório. O discurso literário não é uma exceção. Historicamente, boa parte da teoria literária tem tratado esse texto como uma forma artística voltada somente para fins estéticos. De acordo com essa visão tradicional, a motivação primeira da linguagem literária seria, estritamente, criar um efeito do belo que alcançasse uma essência sublime, relegando os aspectos políticos e culturais para um plano inferior, com pouca ou nenhuma importância. Entretanto, esse “purismo estético” (DUARTE, p. 3) funciona, de maneira velada, como um impedimento que silencia e exclui as “representações vinculadas às especificidades de gênero e etnia” (Idem, ibidem). Na perspectiva desse ramo acadêmico, textos que representam segmentos da cultura popular – em especial a afro-brasileira – e incorporam em sua veia narrativa elementos linguísticos e temáticos referentes ao mundo não hegemônico, ou seja, não branco e eurocêntrico, são tidos como inferiores e, consequentemente, estigmatizados.

Apesar dessa “violência epistêmica” (SPIVAK, 2010, p. 47) operada pela crítica conservadora, na história da literatura brasileira sempre houve sujeitos resistentes a esse apagamento, movimento que, felizmente, vêm se intensificando nos dias hoje, através de autores que se empenham em criar espaços de enunciação apropriados para resgatar e ressignificar elementos sociais e culturais historicamente marginalizados. Nessa vertente se insere Manto Costa, autor do livro de contos Circo de pulgas.

A primeira frase do conto que abre o livro, “O domador de pulgas”, assim como sua temática, é reveladora: “O velho Aruanda abriu a porta com um leve sorriso nos lábios” (COSTA, 2014, p. 9). Logo, já de início, o personagem remete ao preto-velho da mitologia afro-brasileira. Ele, com sua extrema experiência e sabedoria, transmite seus ensinamentos àqueles que o procuram, através de conselhos que possuem efeito e utilidade positiva, ora fáceis de assimilar, ora circunscritos em uma complexa rede metafórica. E por ser um sábio ancião, seu sorriso leve no rosto é um indicativo de sua humildade em lidar com a experiência humana. E o nome “Aruanda” é mais um elemento da cultura afro-brasileira que reforça seu caráter elevado1.

Ao lançar mão desses personagens provenientes da cultura negra e popular, de forma não estereotipada e muito menos ridicularizada, com todos os elementos semânticos abarcados por eles, a narrativa de Circo de pulgas adquire uma feição renovadora (no sentido de desenvolver um discurso que se reapropria de espaços estigmatizados, ressemantizando-os) e uma importância que aponta para uma função ética da narrativa, característica essa contida no simbolismo próprio ao preto- velho.

E é isso que o protagonista do conto “O domador de pulgas” capta em seu aprendizado com o velho Aruanda. Apesar do narrador em primeira pessoa ser um repórter que constrói sua experiência a partir da análise do outro2, isto é, do grupo que frequenta a tenda do circo de pulgas – lugar semelhante, em parte, a um terreiro de Umbanda: “O ar era purificado com um leve perfume de mirra.3 (COSTA, 2014, p. 10). Nesse movimento de observador, o personagem se envolve na trama e, após o primeiro contato com o grupo, reage à postura moralmente incorreta e sensacionalista do jornal onde trabalha que, aliás, deve ser lida como uma crítica aos meios midiáticos de massa que contribuem e potencializam o preconceito e os estereótipos negativos construídos sobre camadas marginalizadas da sociedade: “Eu quero o ridículo! Eu quero o bizarro! E cadê a foto?” (Idem, ibidem, p. 14), esbraveja o chefe da redação.

O narrador, por um momento, reluta e cede à vontade do editor. Porém, após ter entrado em contato direto com as figuras humildes da tenda, como a linda Bianca, jovem aspirante a bailarina, mas impedida devido a sua condição – “não sou uma bailarina de verdade. [...] A minha bolsa na escola de balé não foi renovada. Mas como a minha mãe é faxineira lá, eu entro na hora em que não há aula e faço meus exercícios sozinha. [...] eles explicaram que eu não tenho o biotipo certo para balé clássico.” (Idem, ibidem, p. 13) –, o mecânico Zé Ruela e o próprio velho Aruanda – que de tão extraordinário, faz de um espetáculo de pulgas (seres primordialmente abjetos) uma atração fantástica e impressionante –, o jornalista rompe com a farsa e se volta contra seu chefe, apelidado Beato Salu: “Na portaria do prédio peguei um jornal de assinante empilhado com outros e corri direto para a página do ‘Mundo Bizarro’. Estava lá com todas as letras: ‘O mundo bizarro de Beato Salu’.” (Idem, ibidem, p. 17). Ao final, o ancião acolhe o narrador, sabendo que este tomou a decisão certa: “E me vi novamente diante do velho Aruanda, que sorriu orgulhoso de mim. Ele pegou seu pequeno bastão de pulgas e o colocou numa de minhas mãos. Era a dignidade, enfim”. (Idem, ibidem, p. 18).

Traços da mitologia afro-brasileira voltam a aparecer no conto “Festa de Preto-Velho”, e este desta vez se confunde com o próprio narrador, um morador de rua: “Eu calculo as horas, somo o tempo, conto a vida. Do alto dos meus 80 anos nada mais me surpreende, mas tudo me diverte. Sou um preto-velho, e por isso sou considerado por muitos um sábio.” (Idem, ibidem, p. 39). Em uma escrita performática, que incorpora modos de dizer específicos da entidade e da linguagem dos terreiros de Umbanda – “Eu gosto da cantoria e canto alto os pontos mais bonitos: Oxalá meu pai, tem pena de nós, tem dó, a volta do mundo é grande, teu poder é ainda maior” (Idem, ibidem, p. 40) – o olhar crítico do idoso é voltado para a dinâmica de estratificação injusta da nossa modernidade tardia. Na calçada, do outro lado da rua, ele observa a ostentação da fachada do terreiro de Umbanda, frequentado por pessoas de classe média alta que, em pleno 13 de maio, comemoram o “Dia do Preto-Velho”... Mas não se trata de uma crítica gratuita à apropriação das religiões de matriz africana por parte da elite brasileira. A intensidade do conto reside no movimento dialético de comparações entre presente e passado, escassez e opulência, feitas pelo narrador:

Há um desfile de carros e gente bacana na frente do templo. A casa tem fachada de mármore e uma pequena cachoeira de mármore no jardim, mas houve um tempo em que nem pintura o terreiro tinha. Agora o nome João de Aruanda brilha numa moldura em neon, dá gosto de ver. [...] É curioso ver aquelas madames e aqueles senhores de preto comerem feijoada. Assim como no tempo da senzala, não tem garfo, não tem colher, não tem faca. (Idem, ibidem, p. 39-40).

Eis novamente um conto de trabalhada beleza, com uma forma irônica que mobiliza a ética da narrativa: o mendigo negro é colocado frente a frente com a imagem do Preto-Velho postada na rica fachada do terreiro, ao lado de uma fonte artificial que simboliza a “Cachoeira de Oxum”. Ao ler o texto, é impossível não refletir sobre os processos históricos que mantêm e operam a desigualdade, assim como sobre a postura indiferente de setores abastados da sociedade frente à estrutura que os privilegia. O terreiro serve a estes como mais um espaço dedicado ao exibicionismo e o “vereador de tantas eleições” ali está apenas “em busca de mais um mandato.” (Idem, ibidem, p. 40).

A breve, porém densa narrativa de “Relíquias da Cultura Nacional” aborda o carnaval carioca e o desfile das Escolas de Samba, concentrando em seu interior uma abordagem crítica dos mecanismos de apagamento e silenciamento da empreitada moderna. Ironicamente, o núcleo dramático gira em torno do atropelamento de um antigo sambista – famoso em seu tempo, mas relegado ao esquecimento e à miséria – por parte de um monumental carro alegórico que traz sobre si réplicas de consagrados sambistas como Nelson Cavaquinho, Noel Rosa e Ismael Silva. Aparentemente, o velho compositor chamado Zé Menino enfartou ao se deparar com as figuras míticas dos sambistas, e nem mesmo o narrador em terceira pessoa, pretensamente objetivo, sabe da verdadeira causa da morte do personagem. Apesar de sua história ser parcialmente conhecida por uma “velha baiana vendedora de cocada”, a verdadeira origem de Zé Menino é desconhecida: sua história é da ordem do não dito, do irrepresentável, condição essa imposta cruelmente sobre os sujeitos vulneráveis da malha social. “A escola tinha que passar e, é claro, com sua principal alegoria. ‘Joga esse velho no mangue’, ele ordenou a dois operários da escola”. (Idem, ibidem, p. 34). E nem mesmo a memória do incidente pode ficar intacta nesse processo esmagador: “A ordem, conforme os seguranças da escola disseram, era apagar a história do atropelamento”. (Idem, ibidem, p. 36). Por um lado, há um microplano que revela o modo desumano com que o velho sambista é tratado: atropelam sua figura mísera e friamente tentam apagar o incidente jogando-o no canal imundo que corta o centro da cidade. Por outro, há um macroplano que demonstra como a própria estrutura da sociedade moderna, baseada em uma hierarquia classista, engendra um sistema exploratório e desigual, disfarçado sobre a máscara discursiva do progresso. A imagem final do conto sintetiza essa interpretação:

O prefeito da cidade, após beijar a bandeira da agremiação, desmanchava-se em lágrimas diante do carro Mestres do Samba. E discursava de forma eloquente para as câmeras de televisão:

– Foram eles que escreveram a nossa história, por isso nós os reverenciamos. São as relíquias da cultura nacional, são os nossos mestres! Os donos do carnaval! (Idem, ibidem, p. 37-38).

Novamente tem-se a figura do repórter que se comove com a situação e se inscreve como um possível agente de denúncia do acontecimento brutal. E novamente a voz narrativa se coloca em contradição com o discurso hegemônico, desse embate resultando a vertente irônica que perpassa esta e outras histórias presentes no livro de Manto Costa. O exercício da ética da narrativa perpassa todos os contos de Circo de pulgas.

Em “O homem que esperava ondas”, a simbologia da água marinha invoca o universo do Orixá Yemanjá, condensando questões filosóficas que remetem ao questionamento do sentido próprio da vida, assim como de nossa relação com o mundo. “Os sete castiçais de ouro” e “Barracão de Zinco” dramatizam situações relativas ao universo periférico, trazendo para o núcleo da representação a forma com que os integrantes dessas comunidades excluídas subsistem. O ambiente violento e precário de ambos os contos não surge apenas como elemento que satisfaz a demanda do mercado, mas sim como imagem que provoca um movimento de reflexão no leitor. Não se trata de textos que obedecem à lógica de exotismo em vigor na indústria cultural, mas de personagens complexamente construídos e não estereotipados.

Circo de pulgas, além de sua inegável qualidade, é um livro que desafia a crítica literária e renova o campo das letras nacionais. Seu trabalho de linguagem, que lança mão de elementos da oralidade e da cultura afro-brasileira, juntamente com representações pouco exploradas no campo literário, formam um texto inovador, que pede uma leitura com olhos livres.

Referências

BAKHTIN, M. M; LAHUD, Michel; VIEIRA, Yara Frateschi. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 4a ed. São Paulo: Hucitec, 1988. 196p.

COSTA, Manto. Circo de pulgas. Rio de Janeiro: Pallas: Biblioteca Nacional, 2014.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afrodescendência. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/literafro/>. Acesso em: 20/07/2015.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução de ALMEIDA, S. R. G.; FEITOSA, Marcos Pereira; FEITOSA, André Pereira. Belo Horizonte: editora UFMG, 2010.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

1 Aruanda, de acordo com a cosmovisão umbandista, é uma cidade do plano espiritual na qual espíritos experientes e benéficos residem para auxiliar os seres dos planos inferiores que necessitam de ajuda.

2 A respeito desse movimento de distanciamento de parte das narrativas contemporâneas, é recomendável a leitura de O narrador pós-moderno de Silviano Santiago, 1989.

3 As folhas de mirra são frequentemente usadas para defumar um terreiro de umbanda.

* Harion Custódio é graduando em letras pela UFMG.

Texto para download