Chica da Silva – O romance de uma nova personagem

Lorena Barbosa*

E m seu primeiro livro, lançado em meados de 2016, a jornalista Joyce Ribeiro traz à luz Chica da Silva – Romance uma vida, lançado pela editora Planeta. A narrativa tem como perspectiva desmistificar a imagem histórica que foi construída sobre Chica, uma escrava alforriada que se tornou a primeira dama-negra da nossa história, apresentando aos leitores uma faceta que poucas pessoas são capazes de imaginar na vida de mulheres negras: a do amor e da afetividade.

A autora do livro, conhecida também por ser ativa na luta por direitos dos negros e das mulheres, constrói uma narrativa que perpassa desde o nascimento de Chica, na senzala do Arraial do Milho Verde, até a sua morte como cidadã livre no Arraial do Tejuco. A obra, narrada terceira pessoa, recupera o viés romântico que humaniza a personagem. Ao longo do texto, a espera pelo seu amor, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, é colocada em destaque e revela uma mulher que, antes de tudo, amou e foi fiel ao ex-senhor e companheiro durante dezesseis anos. Todavia, por mais que o livro possa sugerir a presença de um “conto de fadas” amoroso, a bibliografia arrolada ao final aponta para uma minuciosa pesquisa, em que se encontram trabalhos de peso, como o de Júnia Furtado, o que confere a ele a marca do romance histórico.

Inspirada desde a infância pela mulher meticulosa que Chica foi, a autora reconstitui a vida da personagem, os seus sentimentos, seus medos e, sobretudo, o seu íntimo, para criar uma narrativa tão rica em detalhes que o leitor se confunde na linha tênue entre ficção e realidade. Logo no prefácio da obra, Joyce Ribeiro relata que:

a verdadeira Chica da Silva tem outros contornos que, aos poucos, vão sendo revelados. Talvez o fato de ter ousado quebrar padrões de comportamento e de ter conquistado o respeito e o amor de um homem poderoso tenha contribuído para que fossem colados à sua memória rótulos nada satisfatórios e que diminuíam sua real estatura. Uma tentativa, quem sabe, de acabar com a grandeza de sua personalidade. (2016, p. 7).

A Chica de Joyce Ribeiro surge então como uma mulher forte, decidida e que jamais se curvou à servidão que se esperava das mulheres de sua época. A condição de escrava nunca a fez agir como uma. Dona de si, conquistou o amor de um dos homens mais poderosos da colônia e com ele teve quatorze filhos. Todavia, o relacionamento é interrompido já no início do livro, em que se narra a partida de João Fernandes para Portugal, no momento em que tanto ele quanto ela acreditavam viver sempre juntos. No tempo que se segue à partida, a narrativa transita entre a vivência de Chica no Brasil e os problemas enfrentados por seu marido em Portugal. Mas já no prólogo, intitulado “Tão longe, de mim tão distante”, o romance destaca também a força do sentimento de alguém que ama e sofre a separação:

[Chica] desaba sobre a cama, que ainda guarda o cheiro dele. E chora. Copiosa, silenciosamente. Deixa que os soluços a dominem. O corpo, tão afeito aos movimentos do amor, agora se contorce em agonia. Antes fossem as dores do parto. (2016, p.14).

No livro, perda e sofrimento convivem com vigor e atitude. Por mais que a personagem seja narrada como uma mulher afetada pelos seus sentimentos, a força nunca a deixou de seguir. Não era do seu feitio andar pelos cantos em lamúrias. Acostumada desde pequena a lutar pelo que é seu, Chica surge como mulher forte, de corpo e espírito.

Os capítulos seguintes desenvolvem um vasto flash-back, em que a memória do nascimento, infância e juventude da escrava são narradas, até o momento em que é comprada pelo futuro marido. Desde então, foi amor à primeira vista. Chica da Silva deitou-se com o seu senhor e os dois, numa espécie de encontro marcado, acharam as suas almas no corpo de outrem. A carta de alforria veio pouco tempo depois e a cativa se torna, oficialmente, uma mulher livre, ademais, membro da elite e que não economizava nos gastos, nos vestidos luxuosos e nos bailes que oferecia à sociedade local:

A casa rescende a bom trato. Não há cômodo que pareça merecer menos cuidado. Nem vidro de janela opaco por falta de limpeza. A mesa é farta, da primeira à última refeição cotidiana. Impressiona os convidados, e não falta a quem aceite partilhar da generosidade hospitaleira do desembargador, rapidamente integrado à rotina do Tejuco. (2016, p. 43).

A obra também vai demarcando, como Chica da Silva foi ascendendo socialmente e construindo o seu nome na história brasileira. Não foi de repente que Francisca, como antes era conhecida, tornou-se uma senhora de escravos. Enquanto foi pertencente ao seu antigo senhor, desconhecia a expressão “dona de si”. Contudo, com a sua alforria no natal de 1753, as coisas vão acontecendo naturalmente. É também aos poucos, que se consagra como “da Silva”, que nem chega a ser oficialmente um sobrenome nesses tempos coloniais e sim uma denominação genérica, aplicada a todos os que não tinham uma origem patriarcal, embora tivessem pai e mãe no registro de batismo.

Não foi, também, por causa da sua fama sexual como escrava que Chica da Silva conquistou o coração de João Fernandes. Na obra, a negra perpassa pelos comentários maldosos nas terras do reino de cabeça erguida:

[...] a fama da sensualidade das mulheres negras é uma fantasia que se espalha e que um caso como o de João Fernandes só faz ampliar [...] ela mesma sabe muito bem as histórias que inventam a seu respeito, até porque não faltam más línguas em seu próprio território. Chica da Silva é mais ela. (2016, p. 116,117).

Trechos como este estão presentes na obra, com o intuito de questionar a imagem que veio sendo construída desde então sobre da escrava negra, como alguém que tinha no corpo e nos dotes sexuais as únicas formas de ascensão social. Contudo, com Chica é diferente. João Fernandes a ama intensamente e é correspondido. Ela o aguarda por dez anos, até que recebe a notícia de seu falecimento em Portugal. Exemplo de força inabalável, vive ainda dezesseis anos de viuvez até falecer, em seu antigo casarão, deixando na história brasileira marcas muito mais profundas do que se pode imaginar.

Chica da Silva deixa a sua marca no sertão das Minas Gerais. Indelével. Resistente ao passar do tempo. Muitas vezes mal-entendida e registrada com preconceito. Em especial nos escritos conservadores no Reino, mesmo depois da Independência do Brasil”. (2016, p. 185).

Diferentemente da personagem construída no filme de Cacá Diegues, em 1976, a obra retrata o lado estritamente humano dessa mulher. Interpretada por Zezé Motta nas telas do cinema, Chica da Silva é narrada como a mulher promíscua e caricata que construiu todo o seu império físico e simbólico à base de favores e trocas sexuais. Na a trilha sonora de Jorge Benjor, ela é cantada como “Chica dá... Chica dá... Chica dá... Silva”. Outras produções que vieram após esse período também reforçaram o estereótipo da mulata sobre Chica e, até mesmo na década de 1990, na telenovela exibida pela Rede Manchete, com Taís Araújo, o quadro se repetiu. Contudo, todas essas representações estigmatizadas não foram suficientes para diminuir a grandeza feminina que Chica teve. Aos poucos, a sua história vai sendo recontada e reconstituída sob a ótica de seus iguais e de pessoas que respeitam a sua trajetória de vida. Obras como a de Joyce Ribeiro são extremamente importantes para a memória das mulheres negras que perpassam a história do Brasil. Num processo de ressignificação de sentidos, romances e produções bibliográficas mais recentes priorizam uma versão humanizada de personagens historicamente estigmatizados. Foi exatamente isso que Joyce Ribeiro fez em seu romance: refez Chica a partir de uma série de valores humanos que foram esquecidos pelas narrativas anteriores. E o fez com o devido mérito.

Referências

RIBEIRO, Joyce. Chica da Silva – Romance de uma vida. São Paulo: Planeta, 2016.

*Lorena Barbosa é graduanda do curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de iniciação científica do NEIA – Núcleo de estudos interdisciplinares da Alteridade – em que desenvolve pesquisas focalizadas nas escritas de mulheres negras. Possui formação em Artes Visuais pela Oi! Kabum – Escola de Arte e Tecnologia em BH. É blogueira e colunista do site Mulher Mineira.

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