Receita de multiculturalidade

Marilene Weinhardt*

A autorreferencialidade é característica frequentemente apontada como marca pós-moderna. Nos últimos anos do século passado, a ficção que se volta sobre si mesma, dialogando com o fazer ficcional e com a história da literatura, tomou impulso na produção brasileira. Entre os primeiros nomes a ilustrar essa prática constou o autor cujo nome consta na capa deste livro, ficcionista que ocupa posição pioneira na apropriação de Machado de Assis, senda percorrida por muitos outros na sequência. Recolocar em cena a personagem mais enigmática da literatura brasileira oitocentista e fazer o próprio Machado migrar para o texto ficcional, acompanhado ou não de suas criaturas, rendeu vários títulos. No entanto, aproveitar a circulação das personagens no espaço contemporâneo da escrita para assim figurar o modo de ser de uma comunidade continuava prerrogativa de Enquanto isso em Dom Casmurro, lançado em 1993, título de estreia na ficção romanesca do professor de literatura anglo-americana José Endoença Martins.

Nos anos seguintes o nome do escritor catarinense apareceu em outras modalidades discursivas. Quase duas décadas depois do primeiro romance, mais precisamente em 2012, ressurgiu na forma romanesca, com o surpreendente Legbas, Exus e Jararacumbah Blues. Quem tem a turística imagem da cidade de Blumenau como uma porção germânica encravada num vale catarinense, pureza quebrada no máximo pela presença de descendentes de italianos, surpreende-se com a figuração de uma mesclagem muito mais acentuada e fecunda, com a intervenção de afrodescendentes e sua cultura marcando aquela comunidade, que é o burgo do Fundador, mas é também Jararacumbah, “estranha combinação – linguística – de serpente e água”. Os problemas locais, sejam os decorrentes desse convívio de indivíduos de origem diferente, sejam aqueles provenientes da situação geográfica e topográfica, com as habituais e nem por isso menos dramáticas enchentes que assolam a cidade, estão lá ficcionalizados. Entretanto, a linha do horizonte não é próxima. O localismo é quebrado graças à visada do estudioso de tradução e de culturas diversas, que permite associar o orixá do negro nascido no Sul do Brasil à voz do afro-americano que expressa sua dor compondo e cantando blues.

Se do primeiro para o segundo lançamento transcorreu considerável lapso de tempo, agora já se anuncia novo título. O dom de Casmurro traz tudo o que estava disperso nos romances anteriores e muito mais, agilidade que evidencia projeto amadurecido e que permite ler o conjunto como uma trilogia, talvez mais um eco machadiano, deliberado ou não, ou quem sabe assim percebido pelo condicionamento do leitor de Machado.

O procedimento que se evidencia de imediato resvalando da primeira para a nova obra é justamente o diálogo com o cânone brasileiro por excelência, mais especificamente com o título de abertura da trilogia machadiana. E mais, com o próprio romance Enquanto isso em Dom Casmurro. Agora o Casmurro – sempre e exclusivamente referido por esse nome – evade-se das páginas do original e, transmutado em negro, transformação explicada no transcurso narrativo em termos de realismo mágico, cai na Universidade de Jararacumbah (UJ) e envolve-se em luta que, não sabia ele de chegada, tem caráter político-policial, ou melhor, militar, uma vez que o tempo é o dos “anos de chumbo”, expressão reiterada ao longo da narrativa, época em que o campus universitário é vigiado permanentemente. Essa escolha da temporalidade inscreve a obra também em outra linha de força da produção latino-americana, a da tematização das ditaduras e seus efeitos na sociedade, linhagem que continua rendendo expressões de relevo.

De Legbas, Exus e Jararacumbah há a personagem que é o centro da narrativa, também no novo romance, ainda que a posição de narrador não lhe seja exclusiva. O professor Bento, a despeito do prenome coincidente com o do memorialista machadiano, comporta traços de alter ego do autor. Aí reside outra inscrição, em modalidade que vem engrossando nos últimos anos, a da autoficção. É outra via de leitura possível.

À intratextualidade integra-se a intertextualidade. À conjugação com o texto machadiano e, por extensão, ao shakespeareano, que não é limitado ao Otelo, e à poética dos afro-americanos, herança dos títulos anteriores, vem se somar a interação, que ressoa como homenagem, com expressões fortes da literatura catarinense. Além de evocações eventuais, percebidas ou não pelo leitor conforme seu repertório, os diálogos mais acentuados ocorrem em relação à migração de personagens. Eileen é buscada no romance Verde Vale (1979), de Urda Alice Klueger, Anamária é emprestada da poesia de Lindolfo Bell (Anamárias, 1971, 1979), enquanto Bertília, fechando o círculo, é personagem constante dos dois romances precedentes, do próprio autor. Três mulheres, três missivistas que escrevem a Capitu dando conta de como iniciaram seu marido nas três culturas que se cruzam e interagem na cidade, distribuídas em três vias urbanas, a denominada Von Seckendorf Strasse, a Strada Giuseppe Dalfovo e, de permeio, a reduzida, mas resistente, rua Felipa Xavier da Rocha. A relação triádica é reforçada nos cognomes metafóricos assumidos por essas iniciadoras, remetendo, além da origem étnica, à situação espacial: Blumenalva, Nauemblu e Negritice. Os vários triângulos superpostos são equiláteros, não há hierarquização. O romance é construído sob a égide dos prefixos multi- e inter-, procurando borrar movimentos de dominação. O cenário construído é marcado pela multiculturalidade. O convívio entre as diferenças está no plano estético e no plano temático da obra. A produção identificada como pós-moderna recusa escalonamentos. A proposta de alcance sociológico inscrita na narrativa de José Endoença Martins é a da interação entre descendentes de colonos, escravos e autóctones remanescentes.

Estes comentários já se alongam indevidamente. É Machado de Assis quem adverte, na voz de Brás Cubas, que a “obra em si mesma é tudo”. Cumpre ainda dizer que a percepção desses diálogos todos não dependeu da argúcia como leitora. A generosidade do romancista registrou todos os créditos e débitos em nota final. E mais, o discurso narrativo é pontuado pela reflexão teórico-crítica. A voz da Capitu que migrou de D. Casmurro para Enquanto isso em Dom Casmurro e fez novo movimento de mudança para O dom de Casmurro ensina: “Para o escravo, para o negro e, depois, para o escritor negro, significar sempre implicou a aplicação de quatro estratégias de reescritura diante da hegemonia branca, na cultura, na língua e na literatura: imitação, repetição, revisão e diferença.” Nos quatro substantivos está a chave de leitura por excelência para o romance, de estrutura com amarração sólida e coesa. Ao leitor cabe apreender como e com que efeitos se realizam as quatro fases aí anunciadas. Quem sabe o que ainda se esconde, pronto para se revelar a outros leitores que se disponham a desvendar esses processos, nas brumas de Brumalva, nas névoas de Nauemblu, nas nuanças de Negritice.

Referência

MARTINS, José Endoença. O dom de Casmurro. Curitiba: Appris Editora, 2016.

* Marilene Weinhardt, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral na Universidade de Lisboa, é professora sênior da Universidade Federal do Paraná. É bolsista de produtividade do CNPq, pesquisadora de Literatura Brasileira, atuando principalmente nos temas: ficção histórica, ficção brasileira contemporânea, romances do Sul. Tem publicados, entre outros, os volumes Ficções contemporâneas: história e memória (2015), Ficção histórica: teoria e crítica (2011) e Ficção histórica e regionalismo (2004).