Temas caros aos direitos humanos na crônica de Cidinha da Silva

 

Sueli Carneiro*

A carreira de escritora de Cidinha da Silva coexiste com a de ativista pelos direitos humanos e tem foco privilegiado nas questões de gênero e raça. Acompanho o florescimento de sua escrita desde seus 19 anos de idade quando chegou a São Paulo e para mim sempre foi nítido que Cidinha estava decidida a conquistar essa cidade e a partir dela o país e o mundo. Não estou exagerando não! Quem a conhece sabe que ela tem uma autoestima de fazer inveja a qualquer argentino ou nigeriano. Mas ela não blefa! Por isso acreditamos nela.

Percebi que estava diante de uma promessa que logo se confirmaria quando a conheci ainda no início da universidade, numa das edições do Tribunal Winnie Mandela, promovido por Geledés. Cinco anos depois de sermos apresentadas, ela seria incorporada às estratégias do Programa de Direitos Humanos de Geledés, sob minha coordenação.

Em poucos anos se iniciaria uma jornada singular de ativismo político que articularia pela primeira vez uma parceria estratégica entre uma organização da sociedade civil, uma empresa e um órgão governamental, na execução do primeiro projeto de ação afirmativa do Brasil, o Geração XXI, nos idos de 1990, sob a liderança de Cidinha da Silva.

Idealizado pela Fundação BankBoston, administrado pelo Instituto Geledés, e com o apoio governamental da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, o Geração XXI começou no início de 1999 quando 21 estudantes negros de idades entre 13 e 15 anos passaram a estudar em escolas particulares e a receber acompanhamento pedagógico, vale-refeição, bolsa mensal e assistência médica e odontológica, além de vasto programa de formação cultural.

O projeto, exitoso, cumpriu a sua intenção inicial de impulsionar o debate e multiplicar experiências de ações afirmativas, sobretudo nas empresas, e está na origem das experiências corporativas nesse campo, além de expandir as perspectivas da missão institucional de Geledés, notadamente na área de educação que, desde então, tornou-se um programa estrutural da organização, coordenado por Cidinha ao longo de vários anos.

Inquieta e fiel à volição interior que a impulsiona a novos desafios e ao perfeccionismo, Cidinha abandona sem pena os lugares de conforto de uma ativista reconhecida que desenvolveu experiências exemplares e inovadoras no campo dos Direitos Humanos − notoriamente à esfera da educação para a promoção da igualdade de oportunidades − e que ousou, também, ser o quadro mais jovem de Geledés a candidatar-se e tornar-se presidente da nossa organização.

Nesse tempo, a literatura já se impunha como um chamado a ser atendido com a mesma urgência daquela que conhecemos quando estamos sob coação de orixá e que somente a feitura resolve! Assim, me parece, foi sua entrega à literatura que me fez temer que a talentosa escritora subsumisse ou inviabilizasse a intervenção sócio-político-cultural de uma das lideranças emergentes mais destacada em sua geração.

Porém, longe de evadir-se de suas origens e compromissos de ativista a vimos ampliar sua intervenção em contextos mais amplos e firmar-se como formadora de opinião para diferentes públicos como atesta a sua presença na web e nas redes sociais. E é nesse território que podemos encontrá-la exercitando todas as suas potencialidades de pensadora negra.

No artigo “Letramento Racial - a saga” (versão publicada no Portal Geledés), Cidinha demarca de forma inequívoca o seu compromisso e responsabilidade com a causa racial afirmando-se "obrigada a continuar escrevendo sobre racismo, branquitude e privilégios raciais, o que decorre da certeza do papel social e político que desempenho como escritora negra que não pode se furtar de continuar escrevendo sobre estes temas, pelo menos, como afirma, até que esse estado de coisas mude de maneira substantiva".

É assim que Cidinha vem enfrentando as diferentes dimensões da questão racial como a intolerância religiosa tratada com apuro estético em textos como "A menina dos olhos de Oyá exuzilhou o racismo religioso na avenida".

Entre vários elogios de seguidores do Portal Geledés ressalto este do padre Mauro Luiz da Silva, da Arquidiocese de Belo Horizonte, que assim se manifesta: "Nenhuma novidade pra quem já se acostumou com a perfeição estética e literária de Cidinha da Silva, a quem tenho orgulho de chamar de amiga e inspiração, e a quem confiei meu letramento racial”.

Cidinha se empenha especialmente em revelar com toda a sua argúcia as complexidades do racismo e do sexismo, ideologias perversas que se desdobram em outra multiplicidade de temas que têm sido esquadrinhados pedagogicamente em seus artigos, em suas pílulas de letramento racial e em suas crônicas. Não lhe tem escapado os assuntos mais espinhosos, em relação aos quais muitos silenciam, e que agora estão reunidos neste volume, a saber: a violência racial e policial, os Autos de resistência, a redução da maioridade penal, o genocídio do povo negro e a violência de gênero.

Sobre essas questões nenhuma tergiversação tal como ocorre no artigo "Os meninos do Morro da Lagartixa”, que discute o fuzilamento de cinco jovens negros pela PM do Rio. As responsabilidades e conivências são expostas sem medo ou reservas. Diz Cidinha:

O Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, se pronunciou e eximiu a Corporação Militar de responsabilidades, haja vista que em sua opinião não houve um problema de despreparo profissional dos responsáveis pela matança. Configurou-se um problema de caráter dos matadores. Assim fica fácil! Alivia-se a barra da Corporação. Difícil mesmo foi a vida dos rapazes assassinados, que nunca gozou de garantias constitucionais básicas. Difícil é a vida das famílias que precisarão administrar dores, revolta e desamparo, sem tempo para o luto, porque se fraquejarem seus mortos apenas comporão a cifra das 82 vidas de jovens negros perdidas a cada dia no Brasil. O problema da carnificina de Costa Barros é que a Polícia Militar é o braço armado do Estado, autorizado a matar, a exterminar jovens negros e pobres. Quilombolas e indígenas. Moradores de favelas, periferias, palafitas, alagados e todos os demais quartos de despejo do Brasil endinheirado e branco.

Seus artigos são, via de regra, contundentes, e têm o poder de produzir choques de consciência como os manifestos nos comentários de diversos leitores que tanto refletem gratidão pela reflexão produzida e generosamente compartilhada, como também expressam o efeito catártico que eles produzem sobre muitos leitores; o poder de conquistar mentes e corações e/ou gerar indignação, solidariedade, engajamento etc…

Ressalte-se esse seu momento de exuberante fertilidade em que é possível encontrá-la em diferentes sites, abordando diversos assuntos quase que simultaneamente, com uma profusão de reflexões sem prejuízo de sua reconhecida qualidade. Parte significativa desses textos foi reunida neste #Parem de nos matar!

Cidinha também extrai da ficção matéria-prima para pautar a opinião pública os desafios interpostos às pessoas negras para alcançar inclusão social, sobretudo nas políticas públicas, como as ações afirmativas.Suas crônicas têm essa pretensão, emocionar a muitas pessoas e provocar reflexão, mudar mentalidades. E as reações a seus textos demonstram sua capacidade de realizá-lo.

Seus amigos e admiradores esperam agora pela conclusão de seu doutorado, recém-iniciado, do qual esperam ver desaguar a sistematização dessa multiplicidade de intervenções sócio-político-culturais, feitas por essa pensadora vigorosa, de quem se espera renovação e ousadia no fazer acadêmico, tal qual tem demonstrado em todas as áreas em que tem atuado.

Referências

CARNEIRO, Sueli. Temas caros aos direitos humanos na crônica de Cidinha da Silva. Prefácio. In: SILVA, Cidinha da. #Parem de nos matar!. São Paulo: Ijumaa, 2016.

SILVA, Cidinha da. #Parem de nos matar!. São Paulo: Ijumaa, 2016.

* Sueli Carneiro é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra – primeira organização negra e feminista independente de São Paulo. Teórica da questão da mulher negra criou o único programa brasileiro de orientação na área de saúde física e mental específico para mulheres negras, onde mais de trinta mulheres são atendidas semanalmente por psicólogos e assistentes sociais. A filósofa também é autora da obra Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil que traz uma abordagem crítica dos comportamentos humanos e apresenta os principais avanços na superação das desigualdades criadas pela prática da discriminação racial – indicadores sociais, mercado de trabalho, consciência negra, cotas, miscigenação racial no Brasil, racismo no universo infantil, obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas do País, entre outros.