Uma reflexão sobre os lugares de enunciação do negro na contemporaneidade

 

Marcos Antônio Alexandre*

 

Aldri Anunciação nasceu em Salvador, em 17 de julho de 1977. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o bacharelado em Teoria Teatral pela UNIRIO – Universidade do Rio de Janeiro. Como ator, vem desenvolvendo trabalhos no cinema, no teatro e na televisão. Namíbia, não!1 é seu primeiro texto publicado, com o qual foi agraciado com o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Ficção Juvenil”, em 2013. O espetáculo estreou em 17 de março de 2011, sob a direção de Lázaro Ramos, tendo no elenco, como protagonistas, o próprio Anunciação e o ator Flávio Bauraqui2. A peça tem como objeto de enunciação a vida do negro, mas aqui, diferentemente de outros textos representantes da dramaturgia negra, este sujeito não está representado sob o olhar de classe dos menos favorecidos da sociedade brasileira. As personagens trazidas para a cena são dois primos, André e Antônio, advogados que pertencem à classe média. Eles tiveram acesso à educação, têm reconhecimento social, mas são surpreendidos por uma Medida Provisória do Governo brasileiro que obriga a todos os cidadãos com características que indiquem uma ascendência africana – no texto nomeados como “sujeitos com melanina acentuada” – a regressarem a seus pretensos países de origem. Todos devem ser capturados e devolvidos às nações de África, sob o pretexto de “corrigir” o erro histórico da escravização dos africanos nas terras brasileiras. A história recebe uma leitura futurista, pois, segundo as orientações do autor, as ações do texto devem passar cinco anos adiante do tempo atual de sua montagem.

É interessante observar que o autor propõe com seu texto uma leitura crítica sobre a situação dos negros no país e, neste caso, a questão do preconceito não se limita aos pobres. Busca-se demonstrar que a discriminação não se centra somente entre a população negra das periferias. Segundo o olhar crítico de Henry Thorau:

A peça evita, consequentemente, elementos folclóricos do morro, do afrossincretismo, do carnaval, mas também não entra no campo da sexual otherness, de certas construções de virilidade e de feminilidade. Ela não se define dentro do esquema da alteridade e da diferença cultural. Ao contrário. Os dois protagonistas funcionam perfeitamente na sociedade, eles representam a normalidade. A diferença se reduz unicamente à cor. A cor é o crime! Esse fato real-simbólico aumenta o medo dos antagonistas, que define a ameaça para o sistema estabelecido. (THORAU, 2014, p. 243)

O autor chama a atenção para o fato de Aldri Anunciação não se deter nos aspectos geralmente comuns quando se trata do teatro negro, ou seja, o texto não se atém ao relato da situação das personagens que vivem nas periferias ou à questão das religiões afro-brasileiras, outro elemento que costuma aparecer nas peças com a temática negra. Anunciação propõe uma reflexão sobre o lugar do negro na sociedade contemporânea e isso é feito a partir de uma visão irônica e, algumas vezes, até cômica, como pode ser observado nos diálogos dos primos destacados:

ANDRÉ – Basta, Antônio, Cansei dessa história de Melanina Acentuada... De melanina exaltada... Destrambelhada!

ANTÔNIO – (surpreso) O que isso, André? Você vai aceitar essa Medida Provisória desastrosa, que acha que está fazendo um favor para gente? (irritando-se) Não vai me dizer agora que você quer ir para aquela terra estranha?

ANDRÉ – (surpreso) Como assim terra estranha? Vai querer negar agora? Vai negar sua origem? Sua cultura?

ANTÔNIO – (irritado) – Eu não estou negando nada! Somente estou lhe dizendo que a África para mim, hoje é um continente estranho. Não conheço ninguém lá!

ANDRÉ – E nossos parentes que ficaram lá?

ANTÔNIO – Devem estar cagando para mim! Cagando para você! Assim como o mundo caga pra eles! André! Você acha o quê? Que a gente vai chegar lá e vai ser recebido com honrarias no aeroporto? (Antônio pulando pela sala, em alegria irônica) Fogos de artifícios para receber os parentes que se foram séculos atrás e nunca mais mandaram notícias! (ANUNCIAÇÃO, 2012, p. 52-53).

A crítica está no fato de que hoje em dia já não temos contato com as nações de África, muito menos sabemos a origem das populações negras e de nossos ancestrais. O discurso assume um tom de contestação que nos faz voltar o olhar para nós mesmos e para a relação com a quantidade de melanina que possuímos em nossos corpos e que, muitas vezes, determina o lugar de pertença social de milhões de brasileiros: Glória Maria, a famosa jornalista, é detida enquanto participa de um programa de entrevistas, e, neste caso, não se “valoriza” sua posição social. Diante destas premissas, ficam-nos algumas perguntas: o que passará com os outros, Jayme Sodré, Ney Lopes, Neguinho da Beija-Flor, Benedita da Silva, Milton Nascimento, todos, de alguma maneira, também reconhecidos no cenário intelectual e artístico brasileiro, mas com “melanina acentuada”? E com a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida? Todos serão deportados... No entanto, segundo a discussão dos primos, Camila Pitanga – atriz negra, famosa, mas com a pele mais clara – será um caso facultativo, ou seja, ela poderá eleger… mas o que acontecerá com os que têm vitiligo? Lançam a indagação em tom de piada e ironia. Neste sentido, o questionamento fica como uma provocação latente dirigida ao leitor/espectador.

O texto de Aldri Anunciação revela várias reflexões que são caras para o teatro negro brasileiro e, sem sombra de dúvida, merece ser lido, estudado e divulgado por aqueles que se dedicam aos estudos afro-brasileiros.

Referências

ANUNCIAÇÃO, Aldri. Namíbia, não! Salvador: EDUFBA, 2012.

Namíbia, não! Entrevista com o autor e fragmentos de Imagens do Espetáculo. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=WbufHgY2XV8>. Acesso em 21 set. 2014, às 22h.

_______. Imagens do Espetáculo e depoimentos sobre o espetáculo. <https://www.youtube.com/watch?v=ykdtjtW2ReY>. Acesso em 21 set. 2014, às 22h.

THORAU, Henry. Back to the roots? Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação. In: Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 43. p. 235-245, jan./jun. 2014. Brasília: UNB. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/estudos/issue/current/showToc>. Acesso em 21 set. 2014, às 22h.

 

1 O texto foi selecionado para o Núcleo de Leituras – Negro Olhar, no Centro de Cultura Laura Alvim, onde teve boa recepção do público, sendo premiado, junto com mais outros dois autores, com o Prêmio Fapex de Teatro de 2012, e editado pela Editora EDUFBA, em 2012. Uma entrevista com o autor, fragmentos de imagens montagem e depoimentos do público sobre o espetáculo podem ser vistos em: <https://www.youtube.com/watch?v=ykdtjtW2ReY> e <http://www.youtube.com/watch?v=WbufHgY2XV8>.

2 Atualmente, o parceiro de cena de Aldri Anunciação no espetáculo é o ator Sérgio Menezes.

* Marcos Antônio Alexandre é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor da Faculdade de Letras desta Instituição. Publicou, entre outros, Representações performáticas brasileiras (2007); Mayombe: arquivos da memória, dramaturgia, pesquisas e práxis cênicas (2011); e O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba (2017). É também um dos organizadores da coletânea Falas do Outro: literatura, gênero, etnicidade (2010).

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