A masculinidade hegemônica e suas violências no ambiente
familiar em Santo de Casa, de Stefano Volp
Kelvin Jorge Batista Silva
Autor de livros como O Beijo no Rio (2022), Nunca Vi a Chuva (2023), O Segredo das Larvas (2021) e o homônimo livro de contos Homens Pretos (Não) Choram (2022), já resenhado e publicado no Portal Literafro, Stefano Volp inicia o ano de 2025 com mais um romance, Santo de Casa (Editora Record, 2025). Em sua mais recente produção, Volp narra a história de uma família, habitante de cidade pequena, que acaba de perder o pai (e a esposa o marido) por um curioso ataque de uma onça.
Partindo dessa perda, os filhos retornam à cidade em que cresceram para velar e se despedir de ente paterno. Esse homem de família vivia uma dupla identidade: para os amigos e as pessoas da localidade, era visto como um bom e respeitado senhor, um santo, porém, em casa, era violento com a esposa e com seus filhos. O ditado popular que inspira o título – “santo de casa não faz milagre” – reflete essa dualidade do pai que, nas ruas, agia de uma forma e, dentro de casa, de outra.
O reencontro familiar se torna o ponto inicial da trama, que irá abordar as masculinidades, a violência contra a mulher, a transgeneridade, a homossexualidade e o assombro da morte, que leva as personagens a enfrentar seus traumas e refletir sobre o perdão depois de tanto sofrimento. A família é composta pela mãe Rute, o pai José Maria e os filhos: Alex, Betina e Alan. Cada integrante da família carrega a sua própria ferida em relação ao falecido, que foi abusivo ou violento por conta da sua rigidez moral e dos padrões comportamentais que a masculinidade tóxica e hegemônica impõe como o ideal para os homens. O romance aborda o quanto a masculinidade conservadora – que possui valores como a violência, a virilidade, a agressividade, a heterossexualidade, o machismo e a LGBTfobia – pode ser muito hostil, a ponto de desestabilizar o ambiente familiar.
Ao mesmo tempo que o retorno ao lar pode trazer a sensação de conforto e nostalgia, esse processo pode ser também uma revisita às memórias dolorosas que as personagens acabam revivendo, junto aos traumas que os perseguem ao longo de suas trajetórias. Volp consegue transparecer esse sentimento de incômodo e estranheza, de um lar marcado pela violência, por meio de capítulos que narram o ponto de vista de cada um dos envolvidos no processo, utilizando uma forma e uma estrutura de linguagem que cria um ar de proximidade com os personagens, por fugir da normatividade da escrita formal. Esse recurso faz com que o leitor sinta empatia por eles, pois a narrativa estreita a distância entre o leitor e enredo, além de também possibilitar o diálogo sobre a importância e a necessidade do perdão para que haja a a cura, mas, claro, sem santificar a figura do pai. Zé Maria era um santo aos olhos dos moradores da cidade, a família vivia reprimindo suas dores pelo bem da imagem do falecido e de uma família perfeita e funcional. Ao trazer para o mundo esse motivo, o autor traz à tona a discussão de uma realidade que acontece em muitos lares brasileiros e evoca a importância do debate acerca da violência que assombra muitas casas.
A mãe Rute viveu em silêncio, por muitos anos, em relação às agressões físicas e psicológicas que sofria de Zé Maria; além disso, esse silêncio foi reforçado por uma religião dogmática, que culpabiliza a mulher, caso a família seja disfuncional, uma vergonha aos olhares de julgamento social. O peso de carregar essa missão fez com que Rute se desviasse do seu verdadeiro eu, quando conheceu José, a ponto de se tornar uma mulher silenciosa, anulada e reprimida, como muitas vítimas de violência de gênero. A vergonha, o medo e a preocupação com os filhos fizeram com que a personagem ficasse presa àquela relação abusiva, mesmo após a saída de seus rebentos para o mundo. Entretanto, com a morte do marido e, assim, com sua liberdade, a mulher se vê perdida diante de uma realidade que sempre almejou. A ausência de seu marido revela para ela o quanto sua existência estava sob apoio e ameaça de seu falecido marido.
Alex, Betina e Alan também sofreram com a masculinidade tóxica e abusiva do pai. De acordo com Robert William Connell (2005:143), na sociedade patriarcal, para o homem que é gay, existe alguma falta ou uma pequena masculinidade. Como resultado desse pensamento, a homossexualidade vai ser totalmente desaprovada socialmente e irá operar na opressão de corpos que fogem da heteronormatividade. Alan, o mais novo, reprime sua sexualidade desde a infância, por medo da figura paterna. Importa salientar que muitos meninos gays ou bissexuais crescem em cenário semelhante, não são acolhidos e/ou sofrem algum tipo de abuso, por não se identificar como heterossexuais e com a heteronormatividade.
De modo distinto, a transgeneridade não escapa às garras do conservadorismo, que também irá perseguir esses corpos, tendo em vista o fato de contestarem os padrões de gênero. Betina, por outro lado, sempre desafiou a figura paterna e os costumes tradicionais dos habitantes da pequena cidade. Desde cedo, ela foi uma menina que não deixava se anular por conta dos preconceitos alheios. Assim como o seu irmão Alan, Betina também saiu da cidade para que pudesse viver livremente sua expressão de gênero, sem que o peso da transfobia a impedisse de ser quem ela realmente era. A homofobia e a transfobia começam muitas vezes no seio familiar, e uma das alternativas para fugir dessa opressão é o abandono da própria moradia, para que, assim, o indivíduo consiga viver e se expressar seu verdadeiro eu.
Volp é um autor que costuma, criticamente, abordar e trazer, em suas diversas publicações, as violências e as realidades de pessoas LGBTQIA+, e, em Santo de Casa, não seria diferente. O trabalho do autor diante de sua comunidade ajuda a ampliar a importância da luta contra a LGBTfobia, além de humanizar os corpos que sofrem constantes apagamentos nos meios de representação e nas artes. Sendo assim, em seus livros não se observam sujeitos isolados, que surgem de qualquer forma nas narrativas, mas eles se posicionam em foco, com profundidade, identidade e subjetividades. Dessa forma, a representação desses indivíduos não ocorre de forma meramente básica, rasa e estereotipada. A literatura brasileira ainda sofre com a ausência dessa diversidade e ainda há muito a ser falado, denunciado.
Alex, o filho mais velho, diferente de seus dois irmãos, era o orgulho do pai por ser aquele que performava a mesma masculinidade de seu progenitor. Apesar de ser bem visto pelo pai, também sofria as agressividades impostas por ele. No entanto, torna-se o filho que, a todo momento, tenta agradá-lo em busca de uma validação. Ao buscar a sua validação e a afirmação, Alex perde a sua identidade e a possibilidade de performar uma masculinidade que não fosse tóxica, nem para si nem para outras pessoas.
Com Santo de Casa (2025), Volp busca narrar um íntimo e complexo drama familiar, em que muitos leitores poderão encontrar similaridades com suas próprias vidas, no âmbito das problemáticas evidenciadas na narrativa. Isso ocorre por vivermos em uma sociedade patriarcal, que busca privilegiar os homens e outrificar os demais que se opõem aos comportamentos e padrões masculinos tradicionais. Por meio da figuração familiar, Volp, nesse romance, provoca e critica as raízes coloniais e patriarcais que até hoje são base do modelo de constituição social e, assim, relata e evidencia suas consequências no contexto doméstico. Ademais, a obra instiga a reflexão sobre os modelos relacionais preestabelecidos, revelando que nunca é tarde para que ocorra a cura nesses espaços em que há o costume de se normalizar a supressão e a contenção de sentimentos.
Santa Luzia, setembro de 2025.
Referências
CONNELL, Robert William. Masculinities. University of California Press, 2005.
VOLP, Stefano. Santo de casa. Rio de Janeiro: Record, 2025.
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* Kelvin Jorge Batista Silva é graduado em Biomedicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), graduado no bacharelado em Inglês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Mestre em Estudos Literários, Área Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. Atua como pesquisador no Literafro - Portal da Literatura Afro-Brasileira disponível no endereço http://www.letras.ufmg.br/literafro/.