A construção, de Andressa Marques: trajetórias negras e pertencimento na universidade

Elisangela Aparecida Lopes Fialho

(...)

 

 cota é só a gota

meta de quem pagou e paga

desmedido preço de viver imposto

e agora exige

seu direito a voto

na partição do bolo

 

(...)

 

Cuti, Negroesia

A biografia de Andressa Marques, escritora nascida em Taguatinga-DF, doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB), com pesquisa e estudos relacionados à formação do leitor e autoria negra, sinaliza a nós o seu “lugar de fala”, o ponto de partida da visão de mundo que irá sustentar a narração do seu primeiro romance: A construção. Livro lançado em 2024, pela editora Nós, foi ganhador do prêmio Toca Literária, promovido por Marcelino Freire, com o intuito de dar visibilidade a novos escritores.

 

Neste romance, o leitor irá conhecer Jordana, uma jovem estudante que inaugura um novo caminho: o acesso à universidade pelas cotas raciais. Os dilemas vivenciados por ela, entre os muros da UnB, dizem respeito à construção do seu pertencimento étnico, mas também refletem a reconstrução de sua própria vida, enquanto se concretizam nos espaços e comportamentos, bem como nas práticas incrustadas no coração da capital federal.

 

A epígrafe do livro - “Mesmo quando a gente ainda não sabe, nossos bisnetos já estão aqui.”, de Mateus Aleluia, cantor e pesquisador da ancestralidade musical africana - faz-se presente como um sinal, pois, à narração do cotidiano da protagonista, Andressa Marques vai adicionar uma profunda reflexão sobre os que vieram antes de nós, pautada pela necessidade de ressignificar a vida-presente. A narração, nas páginas deste livro, são registros de memórias, reconstrução de sentidos: “sei que a memória é água com sedimentos. A gente deixa a parte mais limpa em cima, mas isso leva tempo.” (MARQUES, 2024, p. 11).** No caso da autora e também da protagonista, levará o tempo de construção de uma vida inteira.

 

Dividido em XV capítulos, nos quais passado e presente se misturam no tempo da enunciação, a história se inicia pela retomada dos tempos idos, marcado por um fato trágico que deu origem a um dos cartões postais de Brasília. A construção da capital federal sedimentou narrativas - e vidas - que serão reconstruídas e ressignificadas nas próximas páginas deste livro.

 

Acompanhamos o início da nova vida de Jordana, ingressante na Universidade de Brasília, por meio do primeiro vestibular com cotas raciais. As dificuldades enfrentadas pela jovem abarcam desde a interação com a classe, a relação com o primeiro professor, a apropriação daquele espaço. Uma cena corriqueira pode ser marca deste ponto-de-vista interno e subjetivo: estudantes do curso de medicina, diante do cardápio do Restaurante Universitário, torcem o nariz e saem em busca de “algo melhor”; então Jordana conclui: “A opção para elas, era o único jeito para nós” (p. 13).

 

O cotidiano de Jordana na universidade vai se transformando: novas relações de amizades surgem, o despertar do sentimento amoroso irrompe/brota sem dar grandes sinais, e um jogo amoroso se forma. Ela se aproxima de outras pessoas, envolvidas com o movimento estudantil e com o movimento negro. A prática do racismo institucional se faz presente em um ataque ao espaço de debate, arte e cultura, ocupado por estes estudantes e, então, juntos e munidos de sentimentos comuns - permanecer e resistir -, Jordana começa a se sentir parte deste grupo.

 

Os versos de Cuti — “cota é só a gota / meta de quem pagou e paga [...]” — escolhidos como epígrafe para esta resenha, ecoam o percurso da protagonista Jordana, cujo ingresso na universidade por meio das cotas raciais simboliza não um favor, mas a expressão de uma dívida histórica. Ao acompanhar sua luta por pertencimento, o romance explicita o “preço de viver imposto” à população negra e a urgência em “exigir o direito à partição do bolo”, conforme o poema anuncia. A trajetória da personagem transforma a experiência universitária em palco de disputa por justiça, visibilidade e pertencimento.

 

Há no livro momentos muito marcados por uma distância geracional, entre Jordana e Marco, seu pai. Ele, trabalhador, envolvido desde jovem com o sindicado, com o movimento negro, cobra da filha não só a desenvoltura necessária para se tornar, de fato, uma estudante da universidade pública, mas também atribui a ela a responsabilidade com seus ancestrais e outros jovens negros que não tiveram oportunidade similar. Essa tensão é mediada principalmente por um grande amigo do pai, a quem ela chama de Tio Leite. De certa forma, é ele quem lança luz sobre a potência de Jordana no ambiente universitário, despertando nela aquilo que era alvo das cobranças paternas.

 

A mudança local proporcionada pela chegada dos primeiros cotistas fica sintetizada na fala de Beatriz, também ela uma estudante negra: “quando a escola não nos quer, ela não nos olha. Nossa vida de estudante era exercida à margem e se queria interior, mas não era convidada a entrar” (p. 604). Com o convite estabelecido por força de lei, a universidade precisou passar a olhar para um novo público: mais diverso e com novas reivindicações.

 

A permanência de Jordana na universidade está ancorada no pertencimento, nas relações com os seus manos e minas, mas também na oferta de oportunidade. Tornar-se bolsista de uma professora negra, de certa forma, traz para a jovem a certeza de que ela pode “fazer história”. Em suas palavras: “Me sentia parte de um todo e aquela sensação boa tinha uma força interna que ganhava a potência para se desenvolver no espaço externo” (p. 710)

 

A narração do cotidiano universitário é atravessada por outras histórias. Estas dizem respeito ao conhecimento e ressignificação da trajetória familiar da protagonista. A busca pelos seus antepassados, cujas vidas foram marcadas pela escravidão, pela servidão, pelo preconceito, mas também pela força da religiosidade de matriz africana, que emerge como uma grande herança, se intercalam pelas páginas da obra. As vidas de Mãe Matilda, Iran e Rita são marcadas pelo acolhimento e pela esperança que acabam por convergir em um termo: “Cidade Livre” - acampamento destinado àqueles que eram responsáveis por erguer a nova capital federal.

 

A construção de Brasília, a reconstrução da história familiar e a ressignificação da própria vida estão entrelaçados neste romance, a sustentar uma narrativa potente e imponente, como um arranha-céu. Sobre o livro, Marques (2025, n.p), em entrevista ao Estado de Minas, afirma:

 

No intuito de escrever sobre essa história emblemática no imaginário da cidade – a dos trabalhadores que morreram em sua construção – acabei descobrindo muito mais. Quando a história da minha família se revelou para mim por meio de arquivos e sorte, ela surgiu tão imensa que eu não parava de pensar em quem foram aquelas pessoas. Então, entendi que só a ficção chegaria tão longe no preenchimento das lacunas dessa história desconhecida.

 

O romance A construção preenche lacunas historiográficas ao dar voz a uma subjetividade negra marcada por tensões sociais, afetivas e políticas. Sua estrutura polifônica, aliada a jogos de linguagem que expandem o sentido simbólico do próprio título, fazem dele leitura essencial para os espaços escolares e formativos. Assim como De onde eles vêm?, de Jeferson Tenório — obra à qual Andressa Marques faz referência em entrevista —, este romance convida o leitor a acessar, de forma sensível e ficcional, um território ainda marcado por disputas: o das cotas raciais. Trata-se de uma narrativa que não apenas representa, mas também tensiona a realidade, oferecendo uma perspectiva interna e afetiva que falta nos discursos oficiais. Diante disso, sustento um pensamento: a bola está em campo, mas não há jogo ganho. E uma certeza: educadores precisam conhecer, reconhecer e trabalhar essas histórias narradas por quem viveu a travessia, pois só assim será possível abrir a porta estreita para mais corpos, vozes e histórias negras, nas universidades, nas editoras, e em todos os espaços que estes sujeitos desejarem ocupar.

 

Belo Horizonte, maio de 2025.

 

 

Referências

 

CUTI. Negroesía. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

 

MARQUES, Andressa. A construção. São Paulo: Nós, 2024.

 

TENÓRIO, Jeferson. De onde eles vêm. São Paulo: Companhia das Letras. 2024.

Cicatrizes nas construções de uma cidade e de uma identidade. Entrevista Andressa Marques. Estado de Minas. Caderno Pensar. 15 mar. 2025. Disponível em https://www.em.com.br/pensar/2025/03/7084732-cicatrizes-nas-construcoes-de-uma-cidade-e-de-uma-identidade.html

 

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* Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais - IFSULDEMINAS; Diretora de Ingresso na mesma instituição. Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC-Minas; Mestre em Teoria da Literatura pela FALE/UFMG. Pesquisadora do portal literafro.

** A leitura do livro foi realizada no formato e-book, por isso as referências bibliográficas no corpo desta resenha indicam a posição em que se encontram os trechos.

 

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